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Shirlei Massapust
Entre as dezenas de livros sobre assuntos variados escritos pelo jesuíta alemão Athanasius Kircher (1602-1680) encontramos China Monumentis Illustrada (1667) onde o autor compilou narrativas orais e escritas sobre a China e o Tibete, coletadas por missionários jesuítas, resumindo o conhecimento europeu no século XVII. No meio de tudo vemos a xilogravura cattus volans representando um quiróptero de rosto felino.
Athanasius Kircher explicou que cattus volans é o retrato falado da fêmea duma espécie animal vista em lugares tão distantes quanto Caxemira, China e Brasil. Porém somente a variedade sul-americana se alimenta de sangue do gado.
O reino de Mogor tem uma província chamada Casmir. A província tem um clima favorável e não se pode encontrar em nenhum lugar da Europa tamanha variedade de animais, plantas, frutas e outras coisas que não abundam na Índia propriamente dita. Dizem que gatos voadores também são vistos e podem ser capturados nas densas florestas nas montanhas. A princípio isso me parecia uma fábula, mas ao examinar cuidadosamente as evidências, descobri que os gatos voadores são apenas morcegos que igualam ou superam as galinhas e os gansos em tamanho. Eles vivem nestas terras. Têm corpos peludos como um gato e sua cabeça lembra a de um gato. Portanto, eles geralmente são chamados de gatos voadores. Eles não têm asas emplumadas. Os que assim afirmam estão errados. Isso seria contrário à natureza, pois nenhum quadrúpede verdadeiro jamais foi encontrado com asas emplumadas. Algumas fábulas antigas falavam de monstros como esfinges, grifos e quimeras, mas essas histórias foram inventadas apenas por prazer. Os morcegos têm patágios, que não são emplumados. Eles voam com patágios assim como nossos morcegos. Essas asas de pele têm ossos e nervos em toda a sua extensão e, no contorno, lembram uma asa emplumada. Cobertos com essas membranas como que por uma espécie de saco, durante o dia eles ficam pendurados pelos dedos dos pés em troncos ocos e galhos de árvores e nos tetos das cavernas. Você pensaria que eles não eram animais, mas pequenos sacos pendurados para proteção contra seus inimigos. Eu sei que os nativos dessas áreas remotas da Índia caçam esses gatos noturnos como uma iguaria. Na China, Surata, nas ilhas vizinhas, e mesmo no Brasil existem monstros desse tipo que à noite se sustentam sugando o sangue dos rebanhos de gado e ovelhas. O ilustre e estimado explorador, o português Domino Francisco Manuel, me disse isso mais de uma vez em Roma.[1]
Eu nunca vi um bicho igual a esse seja na fauna ou no folclore chinês; a menos que seja um nekomata (猫また, também 猫又, 猫股, 猫胯) com poder de metamorfose. Pelo retrato falado notamos que o retratista-compilador fez uma grande confusão misturando narrativas que, antes, já não eram precisas, tamanha a quantidade de bocas pelas quais passaram. Hoje sabemos que o maior morcego do mundo, o Pteropus giganteus, é um Megachiroptera frugívoro encontrado no Paquistão, Nepal, Índia, Sri Lanka, Maldivas, Bangladesh e China. Ele é diferente do maior morcego do continente americano, oVampyrum spectrum, um Microchiroptera carnívoro que muitos europeus acreditavam erroneamente ser hematófago como o pequeno Desmodus rotundus.
Tony Faivre reproduziu a xilogravura cattus volans como exemplo de vampiro em Les Vampires (1962)[2] de modo que muitos que o consultaram tornaram a reproduzir.
Talvez não seja inútil acrescentar que havia algo similar ao cattus volans na arte europeia antes e depois de Athanasius Kircher. Encontramos a descrição alegórica dum felino oriental com asas de mamífero nos escritos de Dom Basilio Valentin (1394-1450): “Dá asas ao animal do oriente, como àquele do sul, para que se assemelhem. Pois o animal do oriente deve ser despojado de sua pele de leão e perder suas asas”.[3]
Um cão-morcego de ventre aberto carrega o título da xilogravura Melancholia I (1514)[4], de Albrecht Dürer (1471-1528), realizada numa localidade e período histórico onde morcegos cozidos foram recomendados como um remédio para melancolia.
Um morcego-fêmea com cabeça felina aparece aos fundos do Capricho nº 46, xilogravura da série Los Caprichos (1799) de Francisco Goya y Lucientes (1746-1828). Aqui muito provavelmente é uma fantasmagoria relacionada às bruxas bebedoras de sangue sempre presentes na arte metafórica e debochada de Goya. O subtítulo do Capricho nº 46 é Corrección (correção). O autor ou seus contatos explicaram: “Sem correção nem censura não se avançaria em nenhuma faculdade: a da Bruxaria necessita particular talento, aplicação, idade madura, submissão e docilidade aos conselhos do grande Bruxo, que dirige o seminário de Barahona”.[5]
Detalhe de Melancholia I, de Dürer
Detalhe do Capricho nº 46, de Goya
Notas:
[1] KIRCHER, Athanasius. China Illustrata. Trad. Charlers D. Van Tuyl. Oklahoma, Indian University Press, 1986, p 76-77. URL: <https://htext.stanford.edu/content/kircher/china/kircher.pdf>.
[2] FAIVRE, Tony. Les Vampires: essai historique, critique et litteraire. (Sexta edição). Paris, Le Terrain Vague, 1962, maço de papel fotográfico entre as folhas 92 e 93.
[3] VALENTIN, Dom Basilio. As Doze Chaves da Filosofia. Trad. Attílio Cancian. São Paulo, 1976, p 33.
[4] A palavra μελαγχολία significa bílis negra. Hipócrates criou a teoria dos quatro humores corporais que resultam em doenças quando em desarmonia. Um deles é a bílis negra. Os sintomas vão desde desalento até depressão.
[5] BAUDELAIRE, Charles e outros. Os Caprichos de Francisco Goya. São Paulo, Editora Imaginário, 1995, p 45.
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