Este texto foi lambido por 1265 almas esse mês
Shirlei Massapust
Um dos grandes feitos de Debby Hershman, a curadora de culturas pré-históricas do Museu de Israel, foi organizar a mostra “Face to Face: The Oldest Masks in the World”, exibida entre 11 de março e 13 de setembro de 2014, após dez anos de esforço na intenção de reunir e autenticar doze máscaras de calcário provenientes de dois sítios arqueológicos na Caverna Nahal Hemar, no Deserto da Judeia, e da gruta Horvat Duma, em El-Hadeb, nas proximidades das colinas de Hebron. Acredita-se que tais peças, datadas em cerca de nove mil anos, foram feitas no período neolítico e são as mais antigas máscaras conhecidas.
As pessoas que as produziram foram os primeiros agricultores daquela região, o primeiro povo que realmente viveu em aldeias em grandes grupos, criando uma civilização. As doze máscaras possuem características estilísticas marcantes, onde sobressaem grandes buracos para os olhos e bocas escancaradas.1 Segundo Debby Hershman, “é importante ressaltar que não são pessoas viventes, mas sim espíritos”.2 São rostos de mortos, com traços de caveira, um deles com dentes finos, longos e numerosos. Não há distinção entre dentes incisivos, caninos pré-molares ou molares. São doze dentes tipo agulha na arcada superior e outros doze na inferior (humanos tem trinta e dois dentes no total, mas somente onze costumam ser vistos na arcada superior, em um sorriso largo, mais alguns embaixo).
Máscara neolítica proveniente da região de colinas no sul de Israel, conhecido como Shephelah.
Aparentemente as doze máscaras neolíticas representam onze espíritos humanos e um transumano dotado de atributos físicos que nos levam além de nossa natureza. Seria uma intervenção estética? Na história recente dentes serrilhados esculpidos sem uso de anestésicos já foram padrão de beleza para os bravos guerreiros do povo Mbuti, no Congo, e para as mulheres das ilhas Mentawai, no oeste da Sumatra, Indonésia. Neste último caso a prática de limar ou afiar os dentes, chamada “Kerik Gigi”, era um rito de passagem realizado por xamãs para indicar que a mocinha já atingiu a maturidade.
Ota Benga (1883-1916), membro do povo Mbuti, e jovem noiva das ilhas Mentawai.
O povo Mentawai também é adepto da tatuagem (titi) que intensifica a prática xamânica e facilita o reconhecimento dos descendentes pelos antepassados após a morte. Até os dias de hoje representações em madeira e olaria da deidade solar hindu Agni (अग्नि) as vezes ganham dentes serrilhados em culturas sincréticas africanas. Existem “agnis” machos e fêmeas. Tais peças de arte costumam apresentar traços felinos indicando uma fusão entre o humano e o espírito animal na prática xamânica. Eu gostei muito disso aqui:
Máscara antropomorfa com traços felinos, de 50 cm, entalhada em madeira albacia (Falcataria moluccana), produzida por uma cooperativa de escultores de Lombok. Participou de uma exposição no Stand da Indonésia, na Art Mundi, que aconteceu em São Paulo no ano de 2008.
Traçar uma linha em ziguezague é o modo mais fácil de desenhar fileiras de dentes pontiagudos que só os sobrenaturais possuem. Crianças comumente desenham bonecos de palito desse jeito. É um símbolo semiótico universal. Entretanto, no ocidente e também na Ásia o padrão iconográfico vem sendo constantemente ressignificado.
Na franquia multimidia Kuroshitsuji (黒執事) o personagem do núcleo de comédia Grell Sutcliff (グレル・サトクリフ) pertence à raça shinigami (死神), que são os deuses da morte. Mas ele não usa foice. Grell prefere serra elétrica e, por isso, seus dentes remetem ao formato da corrente de motosserra. Quando a mangaká Yana Toboso (枢 やな) elegeu apenas um personagem para ter dentes serrilhados – o mordomo de Jack, o Estripador – ela não entrou em pormenores filosóficos sobre a razão de sua aparência. Todavia outros refletiram sobre a temática.
Uma cabeça “MiniMee” para corpos de boneco tipo BJD, tamanho 1/3, produzida pela Doll In Mind (D.I.M.), na China, em 2010.
Anteriormente já escrevi muitas páginas sobre os objetos vivificados, com poder de metamorfose, que o folclore nipônico chama de bakemono (化け物). Talvez não seja inútil acrescentar, em adição ao previamente esclarecido, a desconstrução e reformulação do akuma (悪魔) ou devil (デビル) pelo mangaká Tatsuki Fujimoto (藤本 タツキ), elogiado pela crítica por dominar o método narrativo kishōtenketsu (起承転結) ao contar a história da franquia multimídia Chainsaw Man (チ ェ ン ソ ー マ ン).
Pois bem, por mais irreais que os vultos monstruosos de seu universo possam ser, Tatsuki Fujimoto dá explicações muito interessantes para a existência deles, introduzindo e amadurecendo discussões incômodas para a sociedade pós-moderna. Quanto mais medo coletivo se tem de qualquer coisa, maior será a probabilidade desse medo virar um preternatural; e, quanto maior for esse medo, mais poderosa a criatura será. O medo de armas de fogo gera um problema imenso. O medo de frangos decapitados, nem tanto.3
Por exemplo, a fobia de morcegos gerou o quiróptero diabólico Kōmori no Akuma (コウモリの悪魔); a fobia de sanguessugas deu corpo à Hiru no Akuma (ヒルの悪魔); a fobia de bonecos produziu Ningyō no Akuma (人形の悪魔); etc. Em certas condições, é possível que um akuma passe a habitar o corpo de um humano que faleceu, herdando parte de suas memórias e personalidade. Denji (デンジ), o protagonista humano da série, se tornou capaz de hibridar o próprio corpo com partes de motosserras ao fazer um pacto com Chensō no Akuma (チェンソーの悪魔), uma estranha entidade benigna gerada pelo medo de motosserras, carinhosamente chamada Pochita (ポチタ).
Voltamos ao caso de Grell Sutcliff. Quando vi pela primeira vez a cabeça de boneco customizada pela fã Alientune eu desconhecia totalmente a arte de Yana Toboso. A visão do personagem fez-me rememorar histórias da infância, narrativas sobre o bicho papão, o sorriso do inspetor Edward C. Burke (Lon Chaney) nas fotos promocionais do filme London After Midnight (1927). Por tudo isso, sob a minha perspectiva, Grell Sutcliff refletia uma energia e beleza da mais remota antiguidade. Doze anos depois a série Hazbin Hotel apresentaria uma profusão de personagens com dentes serrilhados com vibe similar.
Dentes serrilhados são esparsamente associados com vampirismo em filmes de horror, quando se deseja despojar o antagonista de qualquer estereótipo de sensualidade. Dois exemplos recentes são Renfield (2023) dirigido por Chris McKay, e Abigail (2024), cm direção de Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett.
Dia 22/02/2025 a cabeça Four (também chamada 沉迷笑容) da 返組 Rebeldom esteve em exposição em um evento de produtores e colecionadores de bonecos ocorrido no Salão de Assembleia 1F, Distrito de Sanchong, Cidade Nova Taipei, Taiwan.
Alimente sua alma com mais:

Conheça as vantagens de assinar a Morte Súbita inc.