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Bonecos Vampiros Gigantes

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Shirlei Massapust

Muito se discute se BJD de tamanho 1/1 é algo para além de um mero boneco. A Fonte (1917) de Marcel Duchamp é um urinol, todavia se expõe como obra de arte. BJD de tamanho 1/1 é boneco, mas raramente é tratado como tal. Aparece mais como representação artística daquilo que de fato é.[1] Estes sobrebonecos são sofregamente achados em galerias de arte ou leilões onde as vezes se paga até para dar lances perdidos. Seus produtores são bonequeiros conhecidos. A Geração Y viveu para ver Marmite Sue, Bleuacide (Taissia Abdoullina) e Marina Bychkova deixando o comércio de colecionáveis para mergulhar nas brumas do mundo invisível da alta sociedade.

O tamanho máximo para um BJD que o homem médio asiático planeja ter em casa varia de 55 a 75 cm, muito raramente obtendo também algum de 80 ou 90cm. A maioria dos colecionadores não chega a consumir figuras humanas em escala 1/1 por não terem onde guardá-las e porque nem tudo convém levar para casa. É mais cômodo adquirir periódicos, livros de arte e outros materiais impressos, donde vem o costume entre os escultores-bonequeiros de trabalhar em dupla com fotógrafos.

No século XIX já existia isto que nos países de língua inglesa é chamado de “ball jointed doll” (BJD), nos de língua francesa de “sujet de la jointure à boules”, nos de língua alemã de “das kugelgelenk”, etc. Porém eram brinquedos infantis, bonecos ocos articulados com juntas esferoides e esqueleto de elástico. Quem primeiro os julgou impróprios para menores de oito anos e teve a ideia de produzir BJD em escala 1/1, para apreciação do público adulto, foi o alemão Hans Bellmer (1902-1975).[2]

A junta universal – que gira para todos os lados – surgiu na época transitória da substituição do astrolábio geocêntrico pelos globos terrestres. Graças a ela a caneta tinteiro deu lugar à esferográfica e a mobilidade dos bonecos foi ampliada ao ponto da imitação fidedigna dos movimentos humanos. Por este motivo Hans Bellmer imaginou que o manejo do BJD pode estimular o engendramento de novas aplicações da junta universal na elaboração de teorias científicas, criação de máquinas e artesanato.

Isto nos permite identificar precisamente a função da boneca, que é o “estimulador poético”. Não importa se mais ou menos realista ou confusa — flutuando, como costuma fazer, entre os papeis de animado ou inanimado — nós sempre estaremos olhando para uma coisa móvel, passiva e incompleta que pode ser personificada. Em última análise, no quadro geral cujo princípio do objeto articulado parece atender à demanda, nós devemos estar tratando do fator mecânico por trás da mobilidade: A junta universal. [3]

Hans Bellmer definia os jogos de interpretação como uma categoria de poesia experimental. Por isso chamava a projeção do humano em relação ao boneco de “das Du”, na segunda pessoa singular, repudiando termos usados em psicologia (ego e id são Ich ou self e Es em idioma alemão). Ficção não se mistura com realidade; logo, a réplica guarda sua própria natureza enquanto objeto de abstração e espelhamento.

1) Antiga fotografia anônima duma boneca de Hans Bellmer em exibição temporária no Art Institute of Chicago.[4]

 2) Antiga fotografia de La Poupée (1935) de Hans Bellmer.[5]

 

O gênero de bonecos Iki-ningyō (生人形) retrata fielmente a imagem humana e, não raro, critica a realidade em que vivemos. Sua tipologia assimilou o hiper-realismo difundido nos EUA e na Europa desde 1969, porém uma forma primária já existia no Japão desde o século XIX permeando a confecção de bonecos de todos os tamanhos.

O Museu Nacional do Japão possui uma ala inteira destinada à exposição permanente 球体関節人形展・Dolls of Innocence, onde são exibidos vários bonecos com juntas esféricas em escala 1/1 ou maiores. A peça mais antiga é La Poupée (1935), criada por Hans Bellmer; um corpo feminino com dois sexos, quatro pernas e nenhum busto, notoriamente uma mulher em mitose. Essa é a boneca autorreplicante que se desdobra em dois corpos inteiros na introdução de três minutos e vinte e nove segundos que fez do filme Innocence (イノセンス, 2004) o produto da franquia Ghost in the Shell (攻殻機動隊) mais ovacionado pela crítica filosófica.

Depois desta amostragem da arte de Hans Bellmer, as bonecas mais antigas da referida exposição são peças datadas de 1986 produzidas pelo chinês Ryo Yoshida (吉田 良) e pelo japonês Jin Yamamoto (山本仁), os quais trabalharam com temas mórbidos, eróticos e infantis. Outros vieram depois, inclusive a japonesa Koitsukihime (恋月姫) que esculpiu quatro bonecas adquiridas pela curadoria do museu. Uma delas é uma graciosa menina deitada num caixão, produzida em 2003.

1) Criança no caixão, esculpida por Koitsukihime e fotografada por Mario Ambrosius na exposição 球体関節人形展・Dolls of Innocence do Museu Nacional do Japão.[6]

2) Vampiro da série Kamitsukitai (咬みつきたい) esculpido por Katan Amano e fotografado por Ryo Yoshida.[7]

 

Esta última pode ser uma vampira pois Koitsukihime[8] exibiu sua especialidade, em parceria com o fotógrafo Hiroshi Nonami (野波浩), na coleção de cartões postais Misericordia (恋月姫展 ミゼリコルディア; 2008), editada pelo Studio Parabolica. Nela vemos dezoito fotografias de treze bonecas esculpidas entre 1980 e 2006. Isso foi anunciado como matéria de capa do número especial sobre vampiros de revista de artes Yaso 夜想 ヴァンパイア (2007), também impressa pelo Studio Parabolica.

Posteriormente a escultora-bonequeira Mari Shimizu (清水真理) também publicou o livreto Ashes to Ashes, Dust to Dust (2014) contendo cinco fotos duma série de bonecas com temática vampírica, todas esculpidas por ela, junto a um conto bilingue (inglês/nihongo) escrito por Mari Ishigami (石神茉莉). Foi um projeto tão bem sucedido que, no ano seguinte, Mari Shimizu fez mais seis BJDs e uma escultura na série Kyūketsuki gensō (吸血鬼幻想), “Fantasia de Vampiro”, divulgada pelo Twitter.[9]

BJD vampiros em tamanho 1/1:

1) Escultura Harukanaru nemuri 「遥かなる眠り」 (sono distante), esculpida por Koitsukihime e fotografada por Hiroshi Nonami, reproduzida na capa da revista Yaso 夜想 ヴァンパイア (2007).

2) Capa do livreto bilingue Ashes to Ashes, Dust to Dust (2014) com fotografias de esculturas de Mari Shimizu e texto de Mari Ishigami.

 

Jovens vampiras estão na ponta dum iceberg que se avoluma numa profusão de outras coisas impressionantes que os apreciadores de horror e arte obscura podem encontrar no Japão do século XXI. A própria Koitsukihime esculpiu gêmeas siamesas. Entre as bonecas que se destacam há mulheres-violino, mulheres de ventre aberto e outros temas macabros esculpidos pelo bonequeiro Miura Etsuko (三浦悦子).[10] A bonequeira Tari Nakagawa (中川多理)[11] frequentemente esculpe cadáveres putrefatos. Uma cabeça enfaixada aparece na capa do livro Emmurée (アンミュレ, 1993) onde o fotografo Masaaki Toyoura (豊浦正明) expõe a arte de Yuriko Yamayoshi (山吉由利子).

Escultura Inside Vampire, da série Kyūketsuki gensō (吸血鬼幻想; 2005). Arte de Mari Shimizu. Fotos de Yukio Yoshinari.

O escultor-bonequeiro Katan Amano (天野可淡; 1953-1990) produziu alguns croquis aquarelados de arte conceitual e pelo menos quatro bonecos – três vampiros masculinos e uma vítima feminina – destinados à montagem de cenas vampirescas na série Kamitsukitai (咬みつきたい), “Eu Quero Morder”, fotografada por seu parceiro e biógrafo Ryo Yoshida (吉田 良).[12] A inspiração foram os filmes clássicos do cinema ocidental, com Bela Lugosi e Christopher Lee. Os bonecos estão vestidos como o Conde Drácula, com smoking e capa de ópera, e posando à semelhança dos atores. Também dormem no caixão e, num croqui, o vampiro voa como homem-morcego.

Outras esculturas de humanoides com asas de morcego, que nos lembram vampiros, podem ser representações de animais comuns que se tornaram bakemono, como os tsukumogami transformados aos noventa e nove anos. A mulher-morcego com relógio no ventre (腹時計蝙蝠婦人), de Kai Akemi, é metáfora da vida noturna.

1) Mulher-Morcego (腹時計蝙蝠婦人). Arte e foto © 1995, Kai Akemi. 2) Fotografia de Ryo Yoshida duma escultura de Katan Amano (天野可淡, 1953-1990), no livro Katan Doll (1989).

Quando alguém tão celebre quanto Katan Amano sai da vida para entrar para a História tendo deixado cópias fieis do mitologema e da iconografia padronizada pelos filmes ocidentais, ao esculpir vampiros articulados, é porque falta um toque original, regional, no projeto… Seu bebê morcego é muito melhor que seus Dráculas.

Notas:

[1] Exceto casos excepcionais como o da coleção trinity doll da Dollmere, composta de bonecas de 1,05 m de altura, reproduzidas em série e vendidas junto com outros bonecos de tamanho pequeno, da mesma marca.

[2] Hans Bellmer (1902-1975) foi um fotógrafo, escultor, escritor e pintor associado ao movimento surrealista.

[3] BELLMER, Hans. The Doll. Trad. Malcolm Green. London, Atlas Press, 2005, p 60.

[4] BUNYAN, Marcus. Exhibition: ‘shatter rupture break’ at the Art Institute of Chicago: Exhibition dates: 15th February – 3rd May 2015. Publicado em Art Blart, 19/03/2015. URL: <https://artblart.com/2015/03/19/exhibition-shatter-rupture-break-at-the-art-institute-of-chicago/>.

[5] EQUIPE EDITORIAL. Hans Bellmer e suas bonecas perturbadoras: Seu polêmico trabalho destacava temas do subconsciente, sonhos, sexualidade e morte. Em: Arte Ref, 02/05//2022. URL: <https://arteref.com/escultura/hans-bellmer/>.

[6] AMBROSIUS, Mario. 球体関節人形展・Dolls of Innocence. Tokyo, Nippon Television Network Corporation, 2004, p 46.

[7] YOSHIDA, Ryo. Katan’s Vampire. 「吸血鬼人形に込められた思い」 Em: YASO 夜想 ヴァンパイア. Japão, Studio Parabolica, 2007, p 53.

[8] Para obter bonecas em tamanho 1/1 de Koitsukihime o colecionador de arte deve preencher um cadastro em nihongo no portal Chateau de Lune <http://koitsukihime.jp>, verificar a disponibilidade do artesanato na área reservada, pagar o preço combinado e viajar ao Japão para buscar sua escultura em terracota de boneca gigante.

[9] 清水真理 作品集発売中。@shimizumari. Publicado no Twitter em 09/06/2016 5:34 AM. URL: <https://twitter.com/shimizumari/status/740824451298758656>.

[10] MIURI ETSUKO. Site oficial: <http://www.miuraetsuko.com/>.

[11] KOSTNICE: Tari Nakagawa Doll Site. <https://www.kostnice.net/>.

[12] YOSHIDA, Ryo. Katan’s Vampire. 「吸血鬼人形に込められた思い」 Em: YASO 夜想 ヴァンパイア. Japão, Studio Parabolica, 2007, p 47-53.


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