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Um Banquete ao Amor: um diálogo entre Platão e Thelema – II

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Lucas Oltmann de Oliveira [1]

PARTE II: PAUSÂNIAS E A DEUSA CELESTE

Acima, o azul gemado é

O esplendor nu de Nuit;

Ela se curva em êxtase para beijar

Os ardores secretos de Hadit.

O globo alado, o azul estrelado,

São meus, Ó Ankh-af-na-khonsu!

(AL I:14)

Após apresentar, através do discurso de Fedro, que você confere no artigo anterior (Parte I), o Amor (Eros), enquanto a força impulsionadora da excelência humana, Platão irá, através de Pausânias, corrigir e aprofundar alguns aspectos do discurso anterior. Em fato, o discurso do político Pausânias se eternizará na história da filosofia e da mística amorosa, por se tratar da primeira reflexão no diálogo que apontará para a existência de mais de um tipo de Amor.

Isto é, o Amor passará a ser entendido como uma divindade capaz de comportar vários níveis de realidade diferenciados em si. Existe uma sofisticação, um aprofundamento, um refinamento da experiência erótica, que agora se torna capaz de expressar as mais variadas facetas dentro de seu mistério.

A DEUSA QUE É DUAS

Nenhuma, sussurrou a luz, esvaída & feérica, das estrelas, e duas. Pois estou dividida por causa do amor, pela chance de união.

(AL I: 28-29)

Notável, e sempre lembrada quando se trata de Platão, é a asserção de Pausânias de que, assim como o Amor (Eros) acompanha Afrodite, e Afrodite não é uma, mas duas, o Amor também será, assim, dois amores: um que será chamado de Amor Terrestre e o outro Amor Celeste.

A apresentação feita por Pausânias é teológica, recorrendo aos mistérios divinos dos mitos gregos para explicar a duplicidade da manifestação afrodisíaca. Pois, segundo a mitologia vigente, existiriam duas Afrodite – isto é, dois mitos (narrativas) diferentes sobre a origem da deusa. A primeira é aquela cantada por Hesíodo, em sua já citada Teogonia: quando Urano (o Céu), deus da unidade primordial, fora castrado por seu filho Cronos, uma gota de seu sêmen caiu sobre o Mar, dando origem a mais bela de todas as Deusas, Afrodite Celeste ou Urânica (isto é, nascida/pertencente aos Céus).

A outra, chamada Afrodite Pandêmica ou Terrestre, é filha de Zeus e de Dione, não sendo uma divindade primordial, mas, ainda assim, pertencente ao mundo da divindade.

Pausânias irá apresentar, portanto, a concepção de que existem duas formas de desejo erótico: um que presta suas homenagens à terra, pandêmico, e outro, celeste, fruto da Afrodite Urânica, que tem sua origem na Deusa do Céu. A distinção entre os dois amores está, principalmente, na qualidade dos mesmos. Nas palavras de Pausânias:

“Nem todo amor é em si mesmo louvável e bom, senão só o que nos incita a amar belamente” (p. 26)

O código de valor para um ato de amor reside não em uma implicância moral, como é característico da sociedade ocidental pós-cristã, mas na quantidade de beleza (kallós) envolvida naquela ação. Beleza essa que, para os gregos, é antes de tudo uma experiência – o fruir da sensação de beleza (kallós) no mundo. Experiência essa que, como dádiva de Afrodite, é entendida pelos platônicos como a verdadeira expressão do sagrado no cosmos.

profano se transmuta no divino diante de um ato contemplativo da beleza – a fruição dessa beleza pode surgir a partir de um flerte amoroso, de uma conversa, de um rito, de um ofício artístico, ou o que for. Platão, a partir da percepção das diferentes hipóstasis (níveis de realidade) de Afrodite, está nos convidando a perceber que a experiência de kallós que sentimos ao ver uma pessoa realmente bonita, é de todo modo semelhante àquela existente em outras esferas da existência.

O EROS DA ALMA E DO CORPO

Para tanto, se existem diversos níveis de beleza, também o é assim para o amor. O amor terreno, pandêmico, é aquele amor fugaz, cuja beleza se restringe à do corpo – a atração física que não se sustenta com o passar do tempo, desvanecendo assim que nasce. De outro natureza é, no entanto, o Amor da Alma, quando uma alma se apaixona por outra ardentemente.

Este amor se dá pela percepção de uma beleza (kallós) que não é meramente física, estética, ou subordinada à satisfação sexual, mas que se consolida na estabilidade de um relacionar-se entre almas. Um relacionamento que se constrói a partir de uma atração entre almas está trabalhando em um nível de Eros completamente diferente do mero Eros corpóreo: o relacionar-se torna-se uma exigência de um Desejo da Alma, não do corpo.

A capacidade de enxergar uma dimensão erótica na alma (psyché) levará a uma série de reflexões no mundo greco-romano, cujo exemplo mais nítido será o mito de Eros e Psyché, imortalizado na obra do theurgo e filósofo platônico Lucius Apuleius. A ideia de uma alma que deseja, que é nutrida por Eros (literalmente, tesão, libido), tem uma correspondência nítida com a noção de Verdadeira Vontade, que traduz nestes termos a potencialidade do Espírito em se envolver eroticamente com o mundo e com os elementos a ele pertencentes.

A percepção, no entanto, do erotismo psíquico inicia-se, no método platônico, a partir de uma atenção reflexiva direcionada aos instintos mais primitivos do corpo humano, àquela parte da alma que os platônicos posteriores chamarão de Therion (o animal, a besta presente no ser humano, a totalidade de seus desejos e afecções, conscientes ou inconscientes, relacionados ao mundo externo da corporeidade).

Uma noção bastante paralela a de Nephesh, cujo desenvolvimento e reflexão, a partir de uma perspectiva thelêmica, pode ser encontrada em o “Ordálio de Nephesh: a escravidão da alma sensual“.

Platão também irá introduzir, através do discurso de Pausânias, a noção de insatisfação perpétua inerente ao Eros Terreno. Ao projetar-se para o ambiente externo, para o mundo dos sentidos, carente de estabilidade, em complexo devir e em profunda mutação, o desejo acaba por envolver-se em decepção, frustração:

“Por indigno entendo o tipo vulgar que mais se apaixonado pelo corpo que pela alma. Tal amor é por natureza inconstante; porque, tendo por objeto a beleza efêmera do corpo, se arrefece quando a beleza decai, e corre a novas experiências, mentindo às promessas feitas” (p. 30)

Ao apresentar a instabilidade do desejo mundano, que muda constantemente de um objeto para outro, sempre se frustrando, Platão propõe uma terapia para os desejos através do logos (fala), que permite o desenvolvimento de noções como estabilidade, disciplina, autocontrole, moderação, temperança.

Para escutar o Eros da Alma, o amante precisa moderar as pulsões instáveis de seu animal pessoal, servo e escravo da satisfação imediata dos sentidos. Como ele próprio afirma, convém mais ser “livre através da escravidão à virtude”.

QUANDO AS ALMAS SE CASAM: A CONSECUÇÃO DA DEUSA CELESTE NA VIDA HUMANA

 

Deixai aquele estado de multiplicidade limitado e repugnante. Assim com vós todos; tu não tens direito senão fazer a tua vontade.

AL I:42

Também, tomai vossa plenitude e vontade de amor como vós quiserdes, quando, onde e com quem vós quiserdes! Mas sempre para mim.

AL I:51

A imagem proposta por Platão, para ressaltar a concretização dos dois tipos de amor, é a oposição entre o amor fugaz, com vistas apenas ao uso do outro para própria satisfação, à instituição do casamento, o sacramento da estabilidade. O parto da Afrodite Celeste, a Deusa dos Céus, se dá na disciplina do casamento, que envolve uma dinâmica de renúncia e comprometimento.

Pausânias, personagem que personifica no diálogo um administrador da cidade, preocupado especificamente com a estabilidade das relações humanas, em diversos momentos enfatiza a longa jornada necessária para a concretização de um relacionamento sólido entre dois. Se Fedro, um jovem guerreiro, abre o seu discurso ao Eros como uma adoração ao elemento ígneo presente no ato de amor, personificando-o no flamejante e ardente Aquiles como ideal de homem erótico, Pausânias irá nos apresentar o sacramento da terra, a potência da estabilidade, e seu avatar erótico, diferente de Aquiles, será o ser humano casado, aquele que adquiriu a consecução erótica através da estabilidade.

Como Urano e Gaia, ele se tornou parte do eterno casamento das coisas – construiu com anos de esforço e labor um altar em sua vida à Afrodite Celeste.

Aos que trilham o caminho iniciático à luz da filosofia de Thelema, podemos transpor a simbologia para o próprio plano da consecução espiritual, não somente das relações humanas. A possibilidade de se pensar um amor divino, que emana das profundezas libidinosas da alma, filho da Deusa que habita os céus, nos convida a perceber a dimensão erótica como parte do próprio corpo de Nuit, nossa Afrodite Celeste.

O casamento, entendido como resultado de uma disciplina e um refinamento do Eros terreno, um constante atentar-se para o sacramento da estabilidade, pode ser entendido como o próprio Ordálio de Nephesh, a preparação para a consumação do casamento estelar, a conjunção com o Santo Anjo Guardião e a dedicação religiosa a uma vida dedicada ao exercício da Verdadeira Vontade. Para aqueles que tomam o caminho espiritual não como um flerte, mas como um casamento, Platão nos ensina a duvidar de nossos próprios desejos, na mesma medida em que nos convida a perceber dimensões mais profundas dos mesmos.

O discurso de Pausânias aprofunda o de Fedro, realizando a primeira jornada da escada erótica platônica. De um Eros não elaborado, reativo e corpóreo, somos convidados a atravessar a senda de Malkuth para perceber a dimensão erótica a partir de um novo olhar, mais reflexivo e para além da imediatez dos sentidos, penetrando na dimensão psíquica. Nos próximos discursos, a escada se estenderá cada vez mais, até atingir o ápice de sua consecução com o discurso da Sacerdotisa Sagrada do Amor, Diotima, amante e mestra de Sócrates, o maior de todos os filósofos e o mais religioso devoto do Deus do Amor.

Lucas Oltmann de Oliveira (@oltmannsmask) é  escritor, historiador e professor. Autor dos livros “A Festa das Máscaras” e “O Demônio do Deserto“.


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