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Thelema é Fascista?

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Texto de Frater Mem-Aleph Rho-Xi. Traduzido por Caio Ferreira Peres. Utilizada a tradução de Vitor Cei para os versos dos Livros Sagrados de Thelema publicada no ano de 2018 pela Madras Editora.

Vocês terão que me desculpar por começar com esse título: hoje em dia, só se consegue chamar a atenção com hipérboles. A verdadeira tese deste artigo não é que Thelema seja necessariamente fascista, mas que Thelema tem o potencial inerente de ser interpretada de forma fascista. E essa interpretação tem suas raízes em Aleister Crowley, não nos fascistas modernos.

Pessoalmente, acredito que Thelema tem o potencial de florescer em algo muito mais maduro, mas esse potencial exigiria cuidados delicados para florescer, para que a erva daninha do fascismo não se instale em nosso jardim. A semente do fascismo em Thelema foi plantada por Crowley, sim, mas não precisamos simplesmente deixar essa erva daninha crescer.

Este artigo não tem o objetivo de encorajar os fascistas, mas sim de alertar os antifascistas. Se você insiste que os fascistas são simplesmente ignorantes e alega basear sua posição em “Crowley disse”, você pode não vencer a batalha ideológica se realmente analisar a questão. Ou seja: Crowley disse muitas coisas que se assemelham a pontos de discussão fascistas. Não posso apresentar um resumo completo de tudo o que ele disse, nem pretendo me envolver em longos debates sobre a verdadeira definição ou natureza do fascismo. Portanto, minha intenção é usar o ensaio de Umberto Eco sobre o fascismo como uma espécie de estrutura interpretativa provisória para permitir a discussão.

Lista de Verificação Fascista de Umberto Eco

Em 1995, Umberto Eco escreveu o ensaio “Ur-Fascismo”, que lista várias características dos movimentos fascistas. Uma de suas citações mais memoráveis é:

“Houve apenas um nazismo… mas o jogo fascista pode ser jogado de várias formas, e o nome do jogo não muda.”

Umberto Eco, “Ur-Fascismo”

Nesse ensaio, ele lista 14 características dos movimentos fascistas. Quero analisar de forma simples e breve cada item e ver se há algo que Crowley tenha dito que se assemelhe a essa característica específica. Alguém poderia pensar que, se Thelema é inerentemente antifascista, como já vi alguns afirmarem, não haveria nenhuma ocorrência de qualquer uma dessas 14 características fascistas. Na verdade, esperaríamos ver citações de Crowley em oposição direta a esses ideais. Acho que descobriremos que a verdade é muito menos clara do que isso…

1. O Culto à Tradição

“Basta dar uma olhada no programa de estudos de cada movimento fascista para encontrar os principais pensadores tradicionalistas. A gnose nazista foi nutrida por elementos tradicionalistas, sincretistas e ocultistas.”

Umberto Eco, “Ur-Fascismo”

É discutível até que ponto Thelema é “tradicionalista”, mas é inquestionavelmente enquadrada como herdeira de uma tradição antiga. A ideia é uma Tradição antiga e perene que é sempre verdadeira, mas que ocorre em formas degradadas ao longo da história ou está oculta em linguagens perdidas como os hieróglifos.

Crowley certamente enquadrou Thelema como a herdeira dessa tradição eterna. A coleta “Os Santos” na Missa Gnóstica reflete essa ideia da sabedoria antiga transmitida por gerações. Poderíamos ser perdoados se interpretássemos a frase d‘O Livro da Lei, “Todas as palavras são sagradas e todos os profetas são verdadeiros, a não ser que eles entendam um pouco”, como se houvesse uma tradição antiga, mas o Livro da Lei é simplesmente o mais recente esclarecimento dela. O que é inequivocamente verdadeiro é que Thelema é sincretista — Crowley diz isso explicitamente em vários momentos e vê isso como uma qualidade positiva.

Umberto Eco escreve:

“Essa nova cultura tinha de ser sincretista. O sincretismo não é apenas, como diz o dicionário, “a combinação de diferentes formas de crença ou prática”; essa combinação deve tolerar contradições. Cada uma das mensagens originais contém uma prata de sabedoria, e sempre que elas parecem dizer coisas diferentes ou incompatíveis, é apenas porque todas estão aludindo, alegoricamente, à mesma verdade primordial.”

Umberto Eco, “Ur-Fascismo”

Thelema é claramente uma combinação de tradições herméticas, egípcias antigas, budistas, muçulmanas, hindus, taoístas, cabalísticas e outras. Como a citação acima de Umberto Eco é diferente de quando Crowley escreve:

“Portanto, criamos um método sincrético-eclético que combina os elementos essenciais de todos os métodos, rejeitando todos os seus entraves, para atacar o Problema por meio de experimentos exatos e não por suposições… Somos sincretistas, extraindo a verdade de todos os sistemas, antigos e modernos; e ecléticos, descartando impiedosamente os fatores não essenciais de qualquer sistema, por mais perfeito que seja.”

Aleister Crowley, The Equinox I:2, “Editorial”

Umberto Eco também menciona que os fascistas tendem a ter “elementos ocultistas”. Não creio que seja necessário argumentar que Thelema seja de natureza ocultista. Os fascistas tendem a se desviar para o simbolismo e as crenças do ocultismo, geralmente por causa da qualidade seguinte…

2. A Rejeição da Modernidade

Não é incomum ver pessoas postando (em tom de brincadeira ou não) que devemos “Rejeitar a modernidade, Retornar [N. T.: No original, “Return”] à tradição”. Às vezes, os “U” são transformados em “V” (e.g., “RETVRN”), o que provavelmente é uma tentativa de imitar o estilo de letras da Roma Antiga. Umberto Eco escreve sobre essa qualidade:

“O Iluminismo, a Era da Razão, é visto como o início da depravação moderna. Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode ser definido como irracionalismo.”

Umberto Eco, “Ur-Fascismo”

Talvez Crowley tenha se posicionado de forma um pouco mais singular do que outros pensadores da época, na medida em que ele tem uma tendência modernista e também uma tendência antimodernista. Ele certamente gostava de racionalidade e até incentivava seus alunos a lerem Kant, Hume, Berkeley, Hegel, Keynes e filósofos orientais (por exemplo, na instrução “Liber Os Abysmi vel Daath”). No entanto, as crenças de Crowley em torno da racionalidade se concentram principalmente nos limites da razão e aprender esses filósofos, para Crowley, significava aprender como eles são, em última análise, inadequados.

O Livro da Lei diz claramente que “a razão é uma mentira”. Crowley gosta de dizer coisas como:

“Como a verdade é suprarracional, ela é incomunicável na linguagem da razão.”

Aleister Crowley, “Cartão Postal para Probacionistas” do The Equinox

Se alguém ler Crowley, encontrará repetidamente essa ideia de que a verdade espiritual está acima da razão. Thelema não é um sistema baseado na racionalidade, e o conceito de Verdadeira Vontade é repetidamente dito estar além da razão de uma forma ou de outra. Há um tipo de irracionalismo inerente à Verdadeira Vontade e, portanto, a todo o sistema de Thelema que se baseia nela, se a Verdadeira Vontade estiver “além” da capacidade da razão de entender ou governar.

Em última análise, a ideia de que a sociedade corrompeu nossa humanidade inerentemente pura e que devemos retornar a uma Tradição melhor é encontrada nos escritos de Crowley na forma de rejeição do Cristianismo e retorno a um tipo de paganismo mais puro. Um exemplo é encontrado na descrição de Crowley da Missa Gnóstica como “O CÂNON DA MISSA, de acordo com a Igreja Católica Gnóstica, que representa o cristianismo pré-cristão original e verdadeiro” (ênfase adicionada).

Esse é um exemplo claro do “retorno à tradição” e a consequente rejeição da modernidade da era do Iluminismo como base de nossa visão de mundo. Para reforçar isso, Crowley escreveu para WB Crow em 1944 que a OTO era “para restaurar o cristianismo ao seu status real como uma religião solar-fálica”. Toda a ideia por trás da OTO é que ela é a preservadora de uma tradição antiga que tem muitas formas simbólicas, mas uma verdade subjacente.

3. O Culto da Ação pela Ação

“Sendo a ação bela em si mesma, ela deve ser tomada antes, ou sem, qualquer reflexão prévia. Pensar é uma forma de emasculação.”

Umberto Eco, “Ur-Fascismo”

Essa característica é vista com muita clareza nas interpretações de Crowley sobre O Livro da Lei. Crowley endossa inequivocamente essa visão quando escreve:

“O adepto fará melhor se confiar n’O Livro da Lei, que constantemente incita à ação. Mesmo uma ação precipitada é melhor do que nenhuma, segundo essa Luz: deixe o mago argumentar que sua loucura faz parte da ordem natural que funciona tão bem.”

Aleister Crowley, “Liber DCXXXIII: De Thaumaturgia”

Isso está ligado à característica anterior do fascismo, que geralmente envolve a rejeição da Razão. Por exemplo, Crowley escreve:

“Não há nenhuma ‘razão’ para que uma estrela continue em sua órbita. Deixe-a ir embora! Toda vez que o consciente age, ele interfere no Subconsciente, que é Hadit. É a voz do homem, e não de um Deus. Qualquer homem que ‘escuta a razão’ deixa de ser um revolucionário.”

Aleister Crowley, Novo Comentário ao Livro da Lei

A citação acima contém especificamente a qualidade mencionada por Umberto Eco, segundo a qual ouvir a razão não é apenas ruim, mas emasculante e desempoderador.

Podemos até ver algumas conexões entre essas ideias, como o fato de que a “ação correta” se baseia em dar ouvidos à nossa sabedoria genética herdada em vez de à razão e ao pensamento:

“Há aqui uma percepção da profunda lei que opõe o pensamento à ação. Agimos, quando agimos corretamente, com base na sabedoria instrutiva herdada dos tempos. Nossos ancestrais sobreviveram porque foram capazes de se adaptar ao seu ambiente… A Ética do Liber Legis é a da própria evolução. Somos apenas tolos se interferirmos.”

Aleister Crowley, Novo Comentário ao Livro da Lei

Pode-se dizer que todo o Livro das Mentiras é um grande tratado sobre a inadequação da razão e um conselho geral para que a ação prevaleça sobre o pensamento. Até mesmo um senso de autorreflexão, um senso de si mesmo ou de “eu”, é considerado uma falha, como uma mancha contra a pureza da ação pela ação, como quando Crowley escreve em o Livro das Mentiras: “Portanto, o homem só é ele mesmo quando está perdido para si mesmo na Carruagem” ou simplesmente “A dúvida inibe a ação”.

4. Discordância é Traição

Uma coisa que Crowley sempre defendeu, pelo menos quando escreveu sobre Thelema, foi a liberdade de pensamento e de expressão, que é antitética ao tipo de autoritarismo coletivista do fascismo. Na prática, entretanto, Crowley era especialmente exigente com seus alunos e, essencialmente, queria submissão total a ele. Isso também fazia parte de seu ideal de como os alunos o tratavam: eles agiriam “como um cadáver” (perinde ac cadaver), o que implica uma submissão completa da vontade de um ao outro, o Mestre.

“O pupilo deve obedecer ao seu professor, perinde ac cadaver.”

Aleister Crowley, Confessions

E também:

“O Professor deve então procurar, gentil e firmemente, educar o aluno, pouco a pouco, até que a obediência siga o comando, sem referência ao que esse comando possa ser; como Loyola escreveu: ‘perinde ac cadaver’. Ninguém entendeu a Vontade Mágica melhor do que Loyola; em seu sistema, o indivíduo foi esquecido. A vontade do General era instantaneamente ecoada por todos os membros da Ordem; assim, a Companhia de Jesus tornou-se a mais formidável das organizações religiosas do mundo.”

Aleister Crowley, Book Four: Magick

Não é de se admirar que os fascistas possam usar Thelema para seus próprios fins: O fato de Crowley bajular a estrutura autoritária dos jesuítas é apenas um exemplo de muitos de seus elogios a esse tipo de governo. Há também exemplos históricos de Crowley não lidando bem com discordâncias, incluindo a expulsão de muitas pessoas diferentes por uma série de razões (seja Norman Mudd ou WT Smith ou outro).

Na prática, nos tempos modernos, há uma grande conformidade de pensamento em Thelema. Embora a diversidade de pensamento seja amplamente celebrada, ela não é muito praticada: Os thelemitas fazem piadas sobre como são diferentes uns dos outros, mas, no final das contas, todos repetem o mesmo tipo de crenças sobre Thelema. A discordância não é enfrentada com execução violenta, mas, às vezes, com exclusão social, mas isso é simplesmente uma versão menos agressiva do mesmo princípio.

5. Medo do Diferente

“O primeiro apelo de um movimento fascista ou prematuramente fascista é um apelo contra os intrusos. Assim, o Ur-Fascismo é racista por definição.”

Umberto Eco, “Ur-Fascismo”

Uma coisa que Crowley tinha de bom era que, apesar de seu traço nacionalista de patriotismo pelos britânicos em alguns momentos (ou escoceses ou irlandeses em outros), essa não era uma característica particularmente definidora de sua interpretação de Thelema. Em vários momentos, ele menospreza praticamente todas as nacionalidades de várias maneiras, inclusive a sua própria. No entanto, ele chega a associar suas ideias às de Hitler em Magick Without Tears [N. T.: Magia Sem Lágrimas], com a ressalva de que não há coletivismo inerente à elite:

“O Livro anuncia uma nova dicotomia na sociedade humana; há o mestre e há o escravo; o nobre e o servo; o ‘lobo solitário’ e o rebanho). (Nietzsche pode ser considerado um de nossos profetas; em um grau muito menor, de Gobineau). O “Herrenvolk” de Hitler é uma ideia não muito diferente; mas não há nenhum volk nele; e se houvesse, certamente não seria o alemão amante da rotina, obcecado por uniformes, cumpridor da lei e em busca de refúgio; o britânico, especialmente o celta, um anarquista natural, está muito mais próximo do alvo. Os britânicos nunca se unirão para nada, a menos e até que cada um deles se sinta diretamente ameaçado.”

Aleister Crowley, Magick Without Tears

É comum distinguir a seriedade de Crowley de seus comentários sarcásticos, mas parece que “não há nenhum volk nele” implica que ele vê esses “Mestres” como indivíduos e não como membros de uma raça específica. Uma visão semelhante pode ser encontrada em todos os seus escritos, como sua ideia em “Postcards to Probationers” de que a sociedade progride por meio de gênios, mas que eles não dependem de nenhuma teologia ou moralidade específica (e, portanto, também presumivelmente de onde nasceram). Crowley chegou a escrever em seus diários:

“Proponho que um homem, aderindo a Thelema, se torne um ‘homem sem país’, cumprindo as leis de qualquer país em que esteja, mas considerando-se um estrangeiro em visita a ele.”

Aleister Crowley, Magical Diaries of Aleister Crowley: Tunisia, (July 30, 1923)

Na medida em que Crowley não era casado com o nacionalismo ou com fronteiras de qualquer tipo específico, a “ameaça de intrusos” fascista não aparece com frequência nos escritos de Crowley. O mais próximo disso seria sua desconfiança em relação às pessoas comuns e, portanto, há uma espécie de antipopulismo. Crowley é conhecido por ter declarado:

“O eleitor médio é um idiota. Ele acredita no que lê nos jornais, alimenta sua imaginação e acalma suas repressões no cinema, e espera se libertar de sua escravidão por meio de jogos de futebol, prêmios de palavras cruzadas ou descobrindo o vencedor do jogo das 15h30. Ele é ignorante como nenhum camponês analfabeto é ignorante: ele não tem poder de pensamento independente. Ele é a presa do pânico. Mas ele tem o voto. Os homens no poder só podem governar empurrando-o para as guerras, jogando com seus medos e preconceitos até que ele concorde com a legislação repressiva contra seus interesses óbvios, jogando com sua vaidade até que ele esteja totalmente cego para sua própria miséria e servidão.”

Aleister Crowley, “The Scientific Solution to the Problem of Government”

É difícil argumentar contra seus pensamentos prescientes, já que escrevemos isso em meio à Suprema Corte dos EUA derrubando Roe v Wade e em meio a guerras intermináveis e intratáveis. Na verdade, esse não é um sentimento tão incomum. Winston Churchill é famoso por ter dito:

“O melhor argumento contra a democracia é uma conversa de cinco minutos com o eleitor comum.”

Winston Churchill

Dito isso, não acho que essa quinta qualidade dos movimentos fascistas tenha muito a que se agarrar nos escritos de Crowley.

6. Apelo à Frustração Social

“Uma das características mais típicas do fascismo histórico foi o apelo a uma classe média frustrada, uma classe que sofria de uma crise econômica ou de sentimentos de humilhação política e que estava assustada com a pressão dos grupos sociais inferiores.”

Umberto Eco, “Ur-Fascismo”

Thelema não parece apelar para uma classe média frustrada que sofre com crises econômicas ou humilhações políticas. Acredito que, historicamente falando, Thelema é diametralmente oposta a isso: ela tem atraído aqueles que estão confortáveis em sua classe média, que não sentem pressão econômica ou política e que são – em outras palavras – muito privilegiados. Muitas vezes, é somente no contexto da segurança material que a pessoa tem a capacidade mental para sequer pensar em estudar coisas arcanas e esotéricas como o ocultismo ou Thelema. Como Thelema como um “movimento” ainda é insignificantemente pequeno, é astronomicamente raro alguém se deparar naturalmente com Thelema em uma forma coerente sem essencialmente buscá-la ativamente.

Para esse item específico, Thelema não é fascista, mas eu também não diria que é antifascista. A complacência de uma classe média pequeno-burguesa, satisfeita com o espaço que conquistou dentro de um sistema de exploração, muitas vezes é o combustível que leva ao inevitável incêndio de um levante populista e potencialmente fascista que está descontente com esse sistema. Isso pode ser visto, por exemplo, na vitória de Trump em 2016 sobre Hillary Clinton, que simbolicamente representava o auge do neoliberalismo centrista. Em outras palavras, Thelema ocupou historicamente o espaço que o liberal ocupa atualmente nos Estados Unidos, o “moderado branco” das cartas de Martin Luther King Jr., em contraste com a direita, que é abertamente teocrática e fascista. Mas um alimenta o outro, como vimos.

7. A Obsessão por uma Conspiração

“Assim, na raiz da psicologia Ur-Fascista está a obsessão com uma conspiração, possivelmente internacional. Os seguidores devem se sentir sitiados.”

Umberto Eco, “Ur-Fascismo”

Eu não diria que há uma obsessão com um complô internacional em Thelema, ou que seja semelhante a essa ideia. Crowley certamente endossou algumas ideias antissemitas em alguns momentos, mas em nenhum momento parece ter a visão conspiratória típica da direita de que “os judeus controlam o mundo”.

Dito isso, os thelemitas são propensos ao pensamento mágico (encontrar conexões entre coisas que não existem). Ultimamente tem se falado muito sobre “conspiritualidade”, que combina conspirações típicas sobre o mundo com espiritualidade. O motivo é que há uma enorme quantidade de sobreposições entre esses grupos de pessoas, incluindo, no mínimo, uma desconfiança da realidade consensual compartilhada na sociedade. Tanto os teóricos da conspiração quanto os thelemitas acreditam que estão a par de uma verdade esotérica que é mascarada para a pessoa comum devido à sua ignorância.

Dessa forma, infelizmente, acredito que os thelemitas correm o risco de serem vítimas desse ponto específico da lista de Eco devido à semelhança do pensamento não racional e da busca de padrões que parece existir em comum entre a espiritualidade esotérica e as teorias da conspiração.

Há também a teoria da conspiração “positiva” de que o mundo é governado pelos Chefes Secretos. De certa forma, essa é a mesma ideia de um grupo nefasto que controla os eventos mundiais, mas, em última análise, é positiva, na medida em que Crowley geralmente acredita que eles estão aqui para evoluir a humanidade e ajudar certos indivíduos a alcançar a maestria espiritual. Isso não leva a um sentimento de estar “sitiado” da mesma forma que uma conspiração antissemita internacional, por exemplo, mas o modo de pensar é quase idêntico. Aqueles que se dedicam ao campo da conspiritualidade certamente estão cientes das tendências de muitos de seus proponentes de se desviarem para visões de mundo xenófobas, antissemitas e outras intolerantes de extrema direita.

8. O Inimigo é tanto Forte quanto Fraco

“Por meio de uma mudança contínua de foco retórico, os inimigos são ao mesmo tempo muito fortes e muito fracos.”

Umberto Eco, “Ur-Fascismo”

Esse item depende dos anteriores, na medida em que, depois de estabelecer limites para o nacionalismo e decidir quem é do grupo interno e do grupo externo, temendo a conspiração do grupo externo para arruinar o grupo interno, você necessariamente começa a propagandear o grupo externo como “o inimigo”. As táticas comuns envolvem posições lógicamente contraditórias, mas isso é visto constantemente nos pontos de discussão da extrema direita. Por exemplo, “os imigrantes são efêmeros, fracos, estúpidos e infestados de insetos”, mas ao mesmo tempo eles também estão “tomando todos os nossos empregos e nossas mulheres”. Não encontro muita base para esse argumento em Thelema porque o “inimigo” não é claro nessa teologia. Podemos ser bonitinhos e dizer que o inimigo é Choronzon ou algo assim, mas não é disso que estamos falando, pois estamos falando de seres humanos e suas tendências políticas de cair no fascismo.

9. Elogio à Guerra e à Luta

“Para o Ur-Fascismo não há luta pela vida, mas, ao contrário, a vida é vivida para a luta. Assim, o pacifismo é o tráfico com o inimigo. Isso é ruim porque a vida é uma guerra permanente.”

Umberto Eco, “Ur-Fascismo”

Essa ideia de que a vida é uma guerra é encontrada em toda Thelema. De fato, Crowley usa uma linguagem quase idêntica cerca de um século antes de Eco escrever esta lista:

“O preço da existência é a guerra eterna.”

Aleister Crowley, O Livro das Mentiras

Muitos thelemitas gostam de fingir que o terceiro capítulo d’O Livro da Lei não existe, mas ele começa com a frase:

“Que assim seja primeiramente compreendido que eu sou um deus de Guerra e Vingança.”

O Livro da Lei III:3

Umberto Eco diz ainda:

“Isso, no entanto, gera um complexo de Armagedom. Como os inimigos têm de ser derrotados, deve haver uma batalha final, após a qual o movimento terá o controle do mundo. Mas essa “solução final” implica uma nova era de paz, uma Era de Ouro, o que contradiz o princípio da guerra permanente.”

Umberto Eco, “Ur-Fascismo”

Não existe uma mitologia específica sobre uma batalha final em Thelema, embora exista uma mitologia sobre os Aeons que se encaixa livremente nisso. Atualmente, estamos no Aeon de Hórus, caracterizado por uma guerra generalizada, e, por fim, evoluiremos para o Aeon de Ma’at (ou “Ma” ou “Thmaist” ou “Themis”, a julgar pelos comentários de Crowley, mostrando seu sincretismo em ação mais uma vez). O Aeon da Guerra prepara o caminho para o Aeon da Justiça e do Equilíbrio. Crowley escreve sobre isso:

“A força preparará o Reino da Justiça. Devemos começar desde já, como eu acho, a considerar essa Justiça como o Ideal cujo Caminho devemos preparar, em virtude de nossa Força e Fogo.”

Aleister Crowley, Novo Comentário ao Livro da Lei

10. Desprezo pelos Fracos

“O elitismo é um aspecto típico de qualquer ideologia reacionária, na medida em que é fundamentalmente aristocrático, e o elitismo aristocrático e militarista implica cruelmente o desprezo pelos fracos.”

Umberto Eco, “Ur-Fascismo”

Uma verdade incômoda sobre as tendências políticas de Aleister Crowley é que ele era consistentemente antidemocrático (por causa de sua desconfiança em relação às pessoas comuns, já mencionada) e consistentemente aristocrático e elitista. Há uma clara preferência pela força em detrimento da fraqueza. O Livro da Lei é bastante claro sobre esse ponto:

“Que meus servidores sejam poucos & secretos: eles governarão os muitos & os conhecidos.

Nós nada temos com o excluído e o incapaz: deixai-os morrer em sua miséria. Pois eles não sentem. Compaixão é o vício dos reis: pisai nos desgraçados & fracos.: esta é a lei do forte: esta é a nossa lei e a alegria do mundo….

O Livro da Lei

Isso também é evidente em outros Livros Sagrados, como o Liber Tzaddi:

“Somente se estais desolados, ou cansados, ou enraivecidos ou desassossegados; então podeis saber que perdestes o fio de ouro, o fio com o qual eu vos guio ao coração dos bosques de Elêusis. Meus discípulos são orgulhosos e belos; eles são fortes e velozes; eles controlam seu caminho como poderosos conquistadores. Os fracos, os tímidos, os imperfeitos, os covardes, os pobres, os chorosos – estes são meus inimigos, e eu vim para destruí-los. Isto também é compaixão: um fim para a doença da terra. Uma extirpação das ervas daninhas: uma irrigação das flores.”

Liber Tzaddi vel Hamus Hermeticus, um Livro Sagrado de Thelema

O típico desvio filosófico realizado pelos thelemitas modernos é que isso se refere apenas a lutas internas, à fraqueza dentro de nós mesmos e assim por diante. Isso não tem base textual em nada do que Crowley escreveu – quando muito, ele insistiu que as batalhas devem ser travadas externamente também:

“Temos que lutar pela Liberdade contra os opressores, religiosos, sociais ou industriais; e somos totalmente contrários a concessões. Toda luta deve ser uma luta até o fim… Que todo homem carregue armas, rápido para se ressentir da opressão, generoso e ardente para desembainhar a espada em qualquer causa, se a justiça ou a liberdade o convocarem!”

Aleister Crowley, O Novo Comentário ao Livro da Lei

Além disso, as duas ordens que Crowley deixou para trás – OTO e A.’.A.’. – são ambas de natureza estritamente autoritária e hierárquica. Elas são inerentemente elitistas em muitos aspectos, especialmente a A.’.A.’. Se era assim que ele acreditava que as coisas deveriam ser administradas, certamente é possível ver a conexão entre os fascistas que acreditam em sua palavra e interpretam Thelema através de uma lente fascista.

No geral: Há muita carne aqui para os fascistas se agarrarem, caso queiram, e acho que muitos thelemitas reconhecem isso, pelo menos no fundo de suas cabeças. Como não há base textual para tratar essas linhas como sendo puramente um psicodrama interno, não creio que esse seja um ponto de vista sustentável, pelo menos para aqueles que se consideram antifascistas. Eles devem perceber que esse tema de desprezo pelos fracos tem sua base nos próprios escritos de Crowley, no Livro Sagrado central de Thelema (o que, se você acredita em revelação divina, significa que Deus está lhe dizendo isso) e nas organizações históricas.

11. Todo Mundo é Educado para se Tornar um Herói

“Nessa perspectiva, todo mundo é educado para se tornar um herói. Em toda mitologia, o herói é um ser excepcional, mas na ideologia ur-fascista, o heroísmo é a norma.”

Umberto Eco, “Ur-Fascismo”

Seria difícil negar que Thelema inculca essa ideia de que todos são heróis a cada passo do caminho. O Livro Sagrado central de Thelema começa basicamente com estas palavras:

“Todo homem e toda mulher é uma estrela.”

O Livro da Lei I:3

Todos são literalmente considerados o centro de seu próprio universo. Essa ideia é repetida ad nauseum por Crowley. De fato, ele instrui:

“Descubra que você é o centro de seu próprio Universo.”

Aleister Crowley, “Dever”

A própria ideia de Verdadeira Vontade é uma espécie de teologia do tipo “cada um é o herói de sua própria história”, de certa forma. Podemos ver como isso seria obviamente fortalecedor para muitas pessoas, mas, ainda assim, também poderia se encaixar no 11º tema da lista de Eco.

12. Machismo e Armamento

“O machismo implica tanto o desprezo pelas mulheres quanto a intolerância e a condenação de hábitos sexuais fora do padrão, desde a castidade até a homossexualidade.”

Umberto Eco, “Ur-Fascismo”

Alguém poderia pensar que seria ridículo encontrar isso em Thelema, mas os thelemitas modernos encontraram uma maneira. Há certamente alguns thelemitas que defendem o casamento tradicional e, essencialmente, os valores judaico-cristãos tradicionais. Felizmente, a maior parte disso não tem base alguma nos escritos de Crowley. Entretanto, seus comentários misóginos são bem conhecidos, incluindo a afirmação de que as mulheres não têm alma. Mais uma vez, muitas vezes é difícil distinguir entre sarcasmo e seriedade, mas, mesmo assim, ele escreveu inequivocamente coisas misóginas e não tratou muitas mulheres muito bem em sua própria vida. Portanto, há um precedente histórico para isso.

Também poderíamos ser perdoados por pensar que O Livro da Lei aconselha um tipo de masculinidade tóxica de ser agressivo, forte e dominador. Até mesmo as simples linhas citadas anteriormente neste artigo demonstram isso em boa medida.

13. Populismo Seletivo

“Para o Ur-Fascismo, entretanto, os indivíduos como indivíduos não têm direitos, e o Povo é concebido como uma qualidade, uma entidade monolítica que expressa a Vontade Comum. Como nenhuma grande quantidade de seres humanos pode ter uma vontade comum, o Líder finge ser seu intérprete.”

Umberto Eco, “Ur-Fascismo”

Certamente há uma ideia da Vontade Universal em alguns dos escritos de Crowley, mas há uma distinção repetida de que cada indivíduo tem sua própria Vontade única que não está incluída em um todo maior. Esse também é um item em que, de acordo com os escritos de Crowley, não se esperaria encontrar populismo seletivo de forma alguma.

14. Novilíngua

“Todos os livros escolares nazistas ou fascistas usavam um vocabulário pobre e uma sintaxe elementar, a fim de limitar os instrumentos para um raciocínio complexo e crítico.”

Umberto Eco, “Ur-Fascismo”

É difícil encontrar isso nos escritos de Crowley sobre Thelema. Quando muito, eles são deliberadamente obscuros e opacos, extremamente obscuros em suas referências. No entanto, foi observado que os thelemitas modernos frequentemente empregam rotineiramente clichês semelhantes que acabam com o pensamento a fim de “limitar os instrumentos para um raciocínio complexo e crítico”. Para limitar o debate e o pensamento, em outras palavras. O fato é que esse vocabulário empobrecido, um interesse reduzido no debate e na complexidade, pode ser encontrado com frequência nos thelemitas modernos. De muitas maneiras, não é particularmente surpreendente que uma coisa que muitas pessoas consideram uma religião não seja abordada com lentes altamente racionalistas ou críticas.

Conclusão

De modo geral, o objetivo deste artigo não foi convencê-lo de que Thelema é inerentemente fascista ou que todos os thelemitas são fascistas. Devemos ver que há, em primeiro lugar, alguma base para as pessoas interpretarem Thelema por meio de uma lente fascista devido ao fato de as próprias palavras de Crowley refletirem os 14 princípios fascistas de Eco. Isso não é simplesmente ignorância dos escritos de Crowley ou interpretação errônea de suas palavras. As sementes do fascismo foram plantadas em seus escritos. É claro que há outros escritos e ideias que contradizem essas ideias que parecem mais fascistas, mas ignorar um lado em favor do outro seria a mesma escolha seletiva da qual os fascistas são frequentemente acusados. Aqueles que se dedicam a uma Thelema antifascista precisam lidar com essas questões. Pessoalmente, desejo-lhes sucesso em sua cruzada antifascista, mas temo pelo nosso futuro.

Ultimamente, tem havido um aumento de Thelemitas nominalmente antifascistas on-line, talvez devido à ascensão global da extrema direita ou a algum outro fenômeno. Ultimamente, tem havido tendências de se tornar um pouco “Pedrinho e o Fascista” (como no Pedrinho e o Lobo). Muitas coisas são chamadas de fascistas sem razão ou justificativa. Isso prejudica o antifascismo.

Esperamos que este artigo possa esclarecer certos aspectos de Thelema que realmente são fascistas, em vez de simplesmente jogar o rótulo por aí. Em vez de analisar as mensagens ocultas ou os apitos de cachorro nas postagens do Twitter, se as pessoas estiverem realmente interessadas em combater o verdadeiro fascismo, o tipo que tem poder político para ser violento e acabar com os direitos das pessoas, considere se os apelos estão fazendo muito. O verdadeiro fascismo toma o poder diante de espectadores complacentes; ele não vai parar por “pegadinhas” ou por ser “cancelado”. O verdadeiro poder não vem de postagens ou rótulos, vem da organização e do exercício da influência.

Amor é a lei, amor sob vontade.

Link para o original: https://thelemicunion.com/thelema-is-fascist/


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