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O Sagrado Anjo Guardião

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por Erwin Hessle[1]. Traduzido por Caio Ferreira Peres.

Uma revisão abrangente e completa do ‘Sagrado Anjo Guardião’ e a obtenção do ‘Conhecimento e Conversação’ dele, conforme esses conceitos são descritos nas obras em prosa publicadas de Aleister Crowley.

7 de março de 2010 e.v.
Sun in 17 Pisces, Anno IVxvii
Copyright 2010[2] – Erwin Hessle

Um dos tópicos mais importantes nas obras de Aleister Crowley (1875-1947) é o “Sagrado Anjo Guardião” (SAG) e, implicitamente, a realização do “Conhecimento e Conversação” dele (CCSAG). Ele também é um dos tópicos menos compreendidos do corpus de Crowley, sem dúvida em parte devido às maneiras às vezes ambíguas na qual ele o apresentou. Numerosas interpretações do Sagrado Anjo Guardião abundam, desde do “subconsciente” e uma “projeção da personalidade” em um extremo da balança, até mesmo de um alienígena extraterrestre real no outro.

O objetivo deste ensaio é fornecer uma revisão compreensiva e abrangente das ocasiões em que Aleister Crowley escreveu sobre o Sagrado Anjo Guardião em suas obras publicadas em prosa numa tentativa de derivar um relato definitivo do que ele realmente queria dizer quando ele usava esse termo.

INDICE

Uma Visão Geral

Para enquadrar a discussão que se seguirá, precisaremos começar a examinar por alto o lugar que Crowley deu ao “Sagrado Anjo Guardião” no esquema geral de sua filosofia e visão de mundo, a importância relativa que ele deu a isso em comparação com outros conceitos “mágicos” e o significado do termo em si. Portanto, para esse propósito, nós estamos primariamente interessados no que Aleister Crowley realmente escreveu, esta primeira seção inevitavelmente será relativamente cheia de citações.

CCSAG como a “Grande Obra”

Fundamental para entender o papel do Sagrado Anjo Guardião na filosofia e obra de Aleister Crowley é perceber a sua posição absolutamente central. Ele igualou o “Conhecimento e Conversação com o Sagrado Anjo Guardião” com a “Grande Obra” e fez dele o objetivo central do sistema de treinamento mágico  da ordem externa da sua organização A∴A∴. Em Uma Estrela à Vista —um “relato detalhado” da “estrutura e sistema da Grande Fraternidade Branca”[3] — Crowley explicou que:

O Grau de Adeptus Minor é principal tema das instruções da A∴A∴ Ele é caracterizado pela Consecução do Conhecimento e Conversação do Sagrado Anjo Guardião. Esse é o trabalho essencial de todo homem; nenhum outro se equivale a ele tanto para progresso pessoal ou para poder ajudar seus companheiros. Sem ter alcançado isso, o homem não é mais que o mais infeliz e mais cego dos animais. Ele está consciente de sua própria calamidade incompreensível e é desajeitadamente incapaz de repará-la.

Alcançando isso, ele não é nada menos que o coerdeiro dos deuses, um Senhor da Luz. Ele está consciente de seu próprio curso consagrado, e está confidentemente pronto para percorrê-lo.

Crowley continuou a enfatizar a importância central do CCSAG até o final de sua vida, escrevendo em sua última obra, Magick Without Tears, que:

Nunca esqueça por um único momento que a obra central e essencial de todos os Magos é a consecução do Conhecimento e Conversação do Sagrado Anjo Guardião.

Ele explicitamente conectou o CCSAG e a.”Grande Obra” no Capítulo ΓΛ do

Liber Aleph:

Esta Grande Obra é a Consecução do Conhecimento e Conversação do Sagrado Anjo Guardião.

assim como no Capítulo III de Magick in Theory and Practice:

Ele é a segunda metade da fórmula[4] que simboliza a Grande Obra a qual somos jurados de realizar. A primeira etapa disso é a consecução do Conhecimento e Conversação do Sagrado Anjo Guardião, que constitui o Adepto da Ordem Interna.

A chave é entender que quando Crowley usou o termo “Sagrado Anjo Guardião” no contexto de sua organização da A∴A∴ e no contexto de seu programa geral de treinamento “mágico”, ele o usou para se referir a um conceito de consecução individual, de “progresso pessoal” e de autodesenvolvimento. A importância desse fato ficará mais clara no decorrer deste ensaio.

 

O SAG e a “Verdadeira Vontade”

O uso do termo no contexto de “progresso pessoal” se torna ainda mais evidente quando observamos que Crowley também usou o “Sagrado Anjo Guardião” para se referir à “Verdadeira Vontade” ou à revelação dessa vontade. Isso talvez seja afirmado mais claramente em Heart of the Master, onde ele explica que:

O Caminho da Perfeição é duplo: primeiro, a Verdadeira Vontade deve ser conscientemente compreendida pela Mente, e essa Obra é semelhante à aquela chamada da consecução do Conhecimento e Conversação do Sagrado Anjo Guardião. Segundo, como está escrito: “Tu não tens direito, senão fazer a tua vontade”,[5] cada partícula de energia que o Instrumento[6] está apto a desenvolver deve ser direcionado à realização dessa Vontade

A conexão é novamente feita explicitamente em seu “novo comentário” [7] ao AL, I, 7:

Assim como também nosso Eu Silencioso,[8] desamparado e tolo, oculto dentro de nós, despertará, se tivermos habilidade para soltá-lo para a Luz, despertando vigorosamente com seu grito de Batalha, a Palavra de nossas Verdadeiras Vontades. Essa é a Tarefa do Adepto, ter o Conhecimento e Conversação de Seu Sagrado Anjo Guardião, de se tornar consciente de sua natureza e de seu propósito, cumprindo-os.

e em seu “novo comentário” ao AL, II, 65:

É curioso que este verso deve ser numerado como 65, sugerindo L.V.X.[9] e Adonai, o Sagrado Anjo Guardião. Parece que Ele é Hadit. Nunca gostei do termo “Eu Superior”;[10] o Eu Verdadeiro é mais a ideia. Pois cada Estrela é a casca de Hadit, única e conquistadora, sublime em Sua própria virtude, independente de Hierarquia.

onde ele define o Sagrado Anjo Guardião como o “Eu Verdadeiro” da qual a vontade é “apenas o aspecto dinâmico”:[11] Ele identifica ainda o Sagrado Anjo Guardião como “Hadit” e afirma que “cada Estrela” — i.e. “cada homem e cada mulher”[12] — é a “casca de Hadit”. Isso quer dizer que o Sagrado Anjo Guardião está dentro de cada pessoa, e externo a elas.

No Capítulo XVIII de Magick in Theory and Practice ele ainda explica que:

Deve-se dizer que até que o Mago tenha alcançado o Conhecimento e Conversação de seu Sagrado Anjo Guardião, ele está suscetível a enganos intermináveis. Ele não conhece a Si mesmo

e a identificação é feita de forma bem direta em Liber Samekh, o “Ritual usado pela Besta 666[13] para a Consecução do Conhecimento e Conversação de seu Sagrado Anjo Guardião” (ênfase adicionada):

o Adepto estará livre para concentrar seu eu mais profundo, aquela parte dele que inconscientemente ordena sua verdadeira Vontade, até a realização de seu Sagrado Anjo Guardião… Pois seu Anjo é uma imagem inteligível de sua própria verdadeira Vontade, cuja realização é toda a lei de seu Ser.

Significativamente — como descobriremos no decorrer deste ensaio — Crowley também faz a identificação no Capítulo 7 de The Equinox of Gods:

Os dentes são exibidos quando o nosso Eu Secreto — nosso Ego Subconsciente, cuja Imagem Mágica é a nossa individualidade expressa em forma mental e corporal —nosso Sagrado Anjo Guardião — vem e declara a nossa Verdadeira Vontade a nossos companheiros, seja para rosnar ou zombar, para sorrir ou rir.

Vale ressaltar que embora o SAG seja o tema do Liber Cordis Cincti Serpente — um dos três mais importantes “Livros Sagrados” de Thelema — o termo nunca aparece de fato no Livro da Lei. É a equivalência de Crowley do Sagrado Anjo Guardião com a revelação da “Verdadeira Vontade” que provê a conexão entre o termo

— que de outra forma poderia ser visto como uma ideia estritamente “mágica” em vez de uma ideia “Thelêmica” por si só — e Thelema.

 

O SAG como um Termo “Absurdo”

No Capítulo II de Magick in Theory and Practice Crowley escreve que:

Ele que se tornou o Mestre Therion uma vez já se confrontou com essa mesma dificuldade.[14] estando determinado a instruir a humanidade, Ele procurou uma simples declaração de seu objetivo. Sua vontade estava suficientemente informada pelo senso comum para decidi-ló instruir ao homem “A Próxima Etapa”, a coisa que estava imediatamente acima dele. Ele poderia ter chamado isso de “Deus” ou “Eu Superior” ou “O Augœides” ou “Adi-Buda” ou 61[15] outras coisas — mas Ele descobriu que todos esses eram um, ainda que cada um representasse alguma teoria do Universo que seria definitivamente destruída pela crítica — pois Ele já havia passado pelo reino da Razão, e sabia que cada declaração continha um absurdo. Ele portanto disse: “Deixe-me declarar esta obra sob este título: “A Obtenção do Conhecimento e Conversação do Sagrado Anjo Guardião”’, porque a teoria implícita nestas palavras é tão evidentemente absurda que apenas os simplórios perderiam muito tempo em analisá-la. Seria aceito como uma convenção e ninguém correria o grave perigo de construir um sistema filosófico sobre ele.

Isto é ecoado em 1909, no primeiro volume de The Equinox, onde

J.F.C. Fuller cita de uma carta de Crowley no primeiro número de The Temple of Solomon the King:

Abramelin o chama de Sagrado Anjo Guardião. Adoto isso:

  1. Porque o sistema de Abramelin é tão simples e eficaz.
  2. Porque, como todas as teorias do universo são absurdas, é melhor falar na linguagem de uma que é patentemente absurda, para mortificar o homem metafísico.
  3. Porque uma criança pode entendê-lo.

É evidente que Crowley pensava que a “teoria implícita nessas palavras” — isto é, que existe realmente um “anjo” algures no universo que foi especialmente designado para cuidar de alguém — é “patentemente absurda”. Tanto é assim, de fato, que “ninguém incorreria no grave perigo de construir um sistema filosófico sobre ela”. Na verdade, parece que Crowley pode ter sucumbido a um grau injustificado de otimismo, pois acontece que muitas pessoas de fato “[constroem] um sistema filosófico” sobre a literal “teoria implícita nessas palavras”.

*         *          *

Pela nossa “visão geral”, portanto, pudemos ver que Crowley:

  • identificou a consecução do “Conhecimento e Conversação do Sagrado Anjo Guardião” com a realização da “Grande Obra”;
  • identificou a consecução do “Conhecimento e Conversação do Sagrado Anjo Guardião” com a revelação da “Verdadeira Vontade”; e
  • adotou o termo “Sagrado Anjo Guardião” como uma convenção deliberadamente “absurda” e pretendia que nenhum significado filosófico ou metafísico fosse feito sobre ele.

Com essas observações em mente, podemos prosseguir para uma discussão mais detalhada.

 

O Debate “Subjetivo-Objetivo”

Quando o conceito do “Sagrado Anjo Guardião” se torna um assunto de discussão dentro das comunidades “mágicas” ou “ocultistas”, ele geralmente é enquadrado em termos do que podemos chamar de “Debate Subjetivo-Objetivo”. É frequentemente dito que Aleister Crowley mudou de opinião sobre a questão do Sagrado Anjo Guardião ao longo de sua vida, ora descrevendo-o em um sentido “subjetivo” para se referir a algo puramente dentro da consciência do indivíduo, ora descrevendo-o como um “indivíduo objetivo” em um sentido totalmente externo. Um dos objetivos deste ensaio é demonstrar que essa distinção é uma falsa dicotomia e mostrar que a representação de Crowley foi relativamente consistente ao longo de sua vida, mesmo que ele nem sempre tenha se esforçado para deixar isso claro. Antes de fazermos isso, devemos começar novamente examinando o que o homem realmente disse que deu origem a essa visão, e começaremos examinando o lado “objetivo”.

 

O SAG “Objetivo”

A maior parte das observações que sustentam o lado “objetivo” do debate vem de Magick Without Tears, e muitas vezes se afirma que essa obra, por ser a última de Crowley, representa uma apresentação mais “madura” de suas ideias sobre o SAG e, portanto, deve ter precedência e “anular” suas obras anteriores.[16] No entanto, essa é uma visão muito superficial, pois, como veremos mais tarde,[17] ele também continua a apresentar o lado “subjetivo” do debate na mesma obra. Mas estamos nos adiantando; vamos analisar primeiro as observações em questão e depois considerá-las no contexto do debate.

O maior de todos eles vem em uma carta intitulada “O Sagrado Anjo Guardião não é o ‘Eu Superior’, mas um Indivíduo Objetivo”:

o Sagrado Anjo Guardião. . . é algo mais do que um homem, possivelmente um ser que já passou pelo estágio de humanidade, e seu relacionamento peculiarmente íntimo com seu cliente é o de amizade, de comunidade, de irmandade ou de Paternidade. Ele não é, deixe-me dizer com ênfase, uma mera abstração de você mesmo; e é por isso que eu insisti bastante que o termo “Eu Superior” implica “uma heresia condenável e uma ilusão perigosa”. Se não fosse assim, não haveria sentido em A Magia Sagrada de Abramelin o Mago. Independentemente de qualquer especulação teórica, meu Sammasati[18] e obra analítica[19] nunca levou a um indício sequer da existência do Sagrado Anjo Guardião. Ele não é para ser procurado por qualquer exploração de si mesmo.

Há três componentes desse comentário que examinaremos separadamente:

  • o “Eu Superior” como uma “heresia condenável”;
  • o “ponto” da A Magia Sagrada de Abramelin o Mago; e
  • a ideia de um “indivíduo objetivo”.

 

Uma Heresia Condenável

Ao procurar entender o que Crowley quis dizer quando descreveu o conceito do “Eu Superior” como “uma heresia condenável e um delírio perigoso”, será útil recorrer a um precedente, pois essa carta não é a primeira vez que ele discute o assunto. De fato, ele falou sobre isso em outra parte de Magick Without Tears, na carta imediatamente anterior intitulada ‘Esta “Auto” Introversão’:

Podemos concordar prontamente que o Augœides, o “Gênio” de Sócrates, e o “Sagrado Anjo Guardião ” de Abramelin, o Mago, são idênticos. Mas não podemos incluir este “Eu Superior”, pois o Anjo é um indivíduo real com seu próprio Universo, exatamente como um homem ou, por falar nisso, uma garrafa azul. Ele não é uma mera abstração e exaltação de suas próprias qualidades favoritas, como parece ser o “Eu Superior”.

e também cerca de vinte anos antes em seu “novo comentário” ao AL, II, 65 como já havíamos visto:

É curioso que este verso deve ser numerado como 65, sugerindo L.V.X. e Adonai, o Sagrado Anjo Guardião. Parece que Ele é Hadit. Nunca gostei do termo “Eu Superior”; o Eu Verdadeiro é mais a ideia. Pois cada Estrela é a casca de Hadit, única e conquistadora, sublime em Sua própria virtude, independente de Hierarquia.

Há dois pontos importantes a serem entendidos desses extratos. A primeira é que ela refuta a ideia de que a rejeição de Crowley da noção de “Eu Superior” do Sagrado Anjo Guardião representa uma mudança em sua posição sobre o assunto, porque podemos ver claramente que ele se opunha ao uso do termo já em 1920, quando o “novo comentário” foi escrito. Pode haver outras evidências que levem a suspeitar que Crowley mudou de ideia, e examinaremos esse assunto em breve, mas notamos aqui que as observações contra o “Eu Superior” não apoiam essa visão.

A segunda é que, ao descartar a ideia do Sagrado Anjo Guardião como o “Eu Superior”, é evidente que Crowley não está descartando a ideia “interna” ou “subjetiva” do Anjo em sua totalidade. Discutiremos o “Augœides” e “o ‘Gênio’ de Sócrates” mais detalhadamente mais adiante neste ensaio, contentando-nos em observar aqui que eles são definitivamente conceitos “internos”, e Crowley afirma abertamente — no próprio Magick Without Tears, na carta imediatamente anterior àquela em que ele propõe a ideia do “indivíduo objetivo” — que eles são “idênticos” ao Sagrado Anjo Guardião. A identificação de Crowley do Anjo com o “Eu Verdadeiro” é ainda mais conclusiva, pois seria absurdo supor que o nosso “Eu Verdadeiro” pudesse ser um ser totalmente separado e externo. Isso também consolida ainda mais o fato de que Crowley não “mudou de ideia” sobre a natureza do Sagrado Anjo Guardião em Magick Without Tears, porque nesse trabalho podemos vê-lo claramente definindo o Anjo no mesmo sentido “subjetivo” que ele fez muitas vezes no início de sua carreira, e que veremos mais tarde. No máximo, poderíamos sugerir que Crowley se contradisse nesse trabalho, mas Magick Without Tears não pode ser usado como evidência a favor de um argumento de que ele “mudou de ideia”.

Claramente, quando Crowley protestou contra o uso do termo “Eu Superior” em relação ao Sagrado Anjo Guardião, ele não estava descartando a visão “subjetiva” como um todo, mas apenas um tipo de visão “subjetiva”. Ele também nos diz exatamente de que tipo de visão está falando: “uma mera abstração e exaltação de suas próprias qualidades favoritas”.

A visão do “Eu Superior” do Anjo não é incomum. Por exemplo, Will Parfitt sugere os seguintes critérios para avaliar a veracidade dos encontros com o Anjo:

A cena parece certa? Você sente a retidão dos símbolos envolvidos? A expressão do seu Anjo é certa?[20]

Igualmente, numa postagem de 2008 no fórum LAShTAL.com citou o seguinte de um texto online chamado The Principles of White Magic [N. T.: Os Princípios da Magia Branca]:[21]

uma das perguntas mais comuns feitas por místicos e magos aspirantes é “Mas como posso saber se essa informação é real? Como posso saber se a mensagem está vindo do meu eu superior ou de algum ser avançado, ou se é simplesmente um produto do meu pensamento positivo e poder de imaginação? Pode ser que eu esteja apenas enganando a mim mesmo.

e continuou a dar uma resposta:

se uma mensagem intuitivamente “soa verdadeira” internamente, ela deve ser aceita como verdadeira

Ambos os trechos exemplificam o problema sobre o qual Crowley estava falando ao equiparar o Sagrado Anjo Guardião a “uma mera abstração das . . suas próprias qualidades favoritas”, pois ambos recomendam avaliar as “comunicações” do Anjo em termos do que já “parece certo” e do que já “soa verdadeiro”. Na mesma carta[22] de Magick Without Tears, Crowley diz que:

deve-se insistir na comunicação definitiva de conhecimento (ou não) que incontestavelmente não é próprio. O fato de os sentimentos autogerados serem tão eminentemente satisfatórios — naturalmente, já que não há ninguém para se opor a eles — é extremamente sedutor. Quando se começa a trilhar esse caminho, pode-se facilmente desenvolver a autoenganação como uma arte.

Já vimos que Crowley usou o termo Sagrado Anjo Guardião no contexto de um sistema de autodesenvolvimento, e o requisito mais óbvio de tal sistema é que ele não deve meramente exaltar aquilo que já conhecemos e sentimos; se qualquer desenvolvimento real deve ocorrer, então qualquer sistema adequado deve envolver um afastamento definitivo disso. Também já vimos que Crowley identificou a consecução do Conhecimento e Conversação do Sagrado Anjo Guardião com a revelação da “Verdadeira Vontade”; a própria ideia de que tal revelação poderia ser necessária pressupõe que não sabemos inicialmente o que é essa “Verdadeira Vontade”, e podemos supor que as coisas permanecerão assim se insistirmos em aceitar ou rejeitar as comunicações dessa vontade com base no que já pensamos sobre nós mesmos e no que já achamos que valorizamos.

Quando o termo “Eu Superior” é usado na prática, ele é apresentado como sendo a fonte da qual se originam os valores ou qualidades “superiores”, enquanto o antigo eu regular é poluído com os chamados valores ou qualidades “inferiores” ou “básicos” que impedem que o “Eu Superior” seja a única base de conduta. Em outras palavras, a ideia é que a pessoa já sabe o que “deve” fazer, e a dificuldade envolvida em “alcançar” se resume a fazer isso de forma consistente. Isso é totalmente consistente com a visão cristã de “pecado” descrita por São Paulo em sua Epístola aos Romanos 7:14-20.

Sabemos que a lei é espiritual; eu, contudo, não o sou, pois fui vendido como escravo ao pecado. Não entendo o que faço. Pois não faço o que desejo, mas o que odeio. E, se faço o que não desejo, admito que a lei é boa. Neste caso, não sou mais eu quem o faz, mas o pecado que habita em mim. Sei que nada de bom habita em mim, isto é, em minha carne. Porque tenho o desejo de fazer o que é bom, mas não consigo realizá-lo. Pois o que faço não é o bem que desejo, mas o mal que não quero fazer, esse eu continuo fazendo. Ora, se faço o que não quero, já não sou eu quem o faz, mas o pecado que habita em mim.

Isso é diametralmente oposto às doutrinas de Thelema, que sustentam que o “problema” essencial da realização não é ser incapaz de agir da maneira que se sabe ser “adequada”, mas não ter consciência — ou estar enganado — sobre o que é “adequado” em primeiro lugar. A introdução de Magick in Theory and Practice declara que:

A causa mais comum de fracasso na vida é a ignorância de sua Verdadeira Vontade… Um homem pode achar que é seu dever agir de determinada maneira, por ter feito uma imagem fantasiosa de si mesmo, em vez de investigar sua natureza real. Por exemplo, uma mulher pode se tornar infeliz para o resto da vida ao pensar que prefere o amor à consideração social, ou vice-versa. Uma mulher pode ficar com um marido antipático quando, na verdade, seria feliz em um sótão com um amante, enquanto outra pode se iludir com uma fuga romântica quando seus únicos prazeres são os de presidir funções da moda. Novamente, o instinto de um garoto pode lhe dizer para ir para o mar, enquanto seus pais insistem para que ele se torne um médico. Em tal caso ele será tanto mal-sucedido e infeliz em medicina.

Se quisermos descobrir essa “Verdadeira Vontade” — que, mais uma vez, Crowley identificou com a consecução do Conhecimento e Conversação do Sagrado Anjo Guardião — então é de importância primordial que não simplesmente “[exaltemos]. . as próprias qualidades favoritas”, uma vez que é essa coleção de ‘qualidades favoritas’ — a ‘imagem fantasiosa’ que criamos para nós mesmos — que obscurece a vontade de nós em primeiro lugar, mas isso é exatamente o que acontece quando levamos a sério a noção de um ‘Eu Superior’. Na realidade, “superior” quase inevitavelmente se resume a “coisas que eu acho legais”, e “inferior” se resume a “coisas de que não gosto muito”. A concepção de um “Eu Superior” será composta pelas qualidades que a pessoa já prefere e, se aspirarmos a esse “Eu Superior”, não estaremos fazendo nada além de aspirar ao tipo de “imagem fantasiosa” contra a qual Crowley advertiu em Magick in Theory and Practice. Na realidade, o real processo de consecução para o Conhecimento e Conversação do Sagrado Anjo Guardião revela coisas sobre o eu que não apenas não suspeitamos — i.e., que não “soam” como verdadeiras — mas que preferiríamos positivamente que não fossem verdadeiras. A prática da autoinvestigação[23] revela rotineiramente verdades incômodas e desconcertantes sobre o próprio ser, que contradizem a “imagem fantasiosa” que a pessoa criou para si mesma e que, muitas vezes, ela preferiria não confrontar, mas que precisa confrontar para que ocorra qualquer desenvolvimento significativo.

 

Inteligência Independente

De fato, era exatamente a isso que Crowley se referia quando disse que, caso contrário, “não haveria sentido em A Magia Sagrada de Abramelin, o Mago”, sendo que esse sentido é que “deve-se insistir na comunicação definitiva do conhecimento (ou não) que não é incontestavelmente próprio”, como já vimos. Isso foi repetido anos antes em um apêndice do Magick in Theory and Practice intitulado ‘Notas sobre a Natureza do Plano Astral”’ (ênfase no original):

Nada é mais fácil do que sugerir visões ou moldar fantasmas de acordo com suas ideias. Obviamente, é impossível comunicar-se com uma inteligência independente — o único objeto real da pesquisa astral — se permitirmos que a imaginação nos envolva com cortesãos de nossa própria criação. . .

A essência de sensação correta consiste no reconhecimento da realidade do outro Ser. Em geral, haverá algum elemento de hostilidade,[24] mesmo quando a reação for simpática. A “alma gêmea” (mesmo) de uma pessoa não é considerada como ela mesma, no primeiro contato.

Portanto, é preciso insistir que qualquer aparição real do Plano Astral dá a sensação de encontrar um estranho. É preciso aceitá-lo como independente, seja ele Arcanjo ou Elfo, e medir a própria reação a ele. É preciso aprender com ela, mesmo que a desprezemos; e amá-la, mesmo que a detestemos.

É preciso perceber, ao escrever o registro, que a reunião provocou uma mudança definitiva em si mesmo. É preciso conhecer e sentir algo estranho,[25] e não apenas experimentar um vestido novo.

Antes de examinarmos detalhadamente o significado de termos como “inteligência independente”, primeiro consideraremos as próprias palavras de Aleister Crowley sobre a “realidade” de tais “inteligências”.

No Capítulo XVIII de Magick in Theory and Practice, Crowley fez as seguintes observações sobre o “Corpo de Luz” e a “viagem astral” (grifo nosso):

Ele[26] de fato não é “real”. . . Antes de tratar da clarividência, é preciso discutir brevemente essa questão da realidade, pois a interpretação errônea sobre o assunto tem gerado problemas intermináveis.

Há a história do americano no trem que viu outro americano carregando uma cesta de formato incomum. Sua curiosidade o dominou, e ele se inclinou e disse: “Diga, forasteiro, o que você tem nessa bolsa?” O outro, de queixo de lanterna e taciturno, respondeu: “mangusto”. O primeiro homem ficou um pouco desconcertado, pois nunca tinha ouvido falar de um mangusto. Depois de uma pausa, ele prosseguiu, correndo o risco de ser rechaçado: “Mas o que é um mangusto?” “O mangusto come cobras”, respondeu o outro. Era mais uma pergunta falsa, mas ele prosseguiu: “Para que diabos você quer um mangusto?” ‘Bem, sabe’, disse o segundo homem (em um sussurro confidencial) ‘meu irmão vê cobras’. O primeiro homem estava mais confuso do que nunca, mas depois de pensar um pouco, continuou de forma um tanto patética: “Mas digamos que essas cobras não são de verdade”. “Claro”, disse o homem com a cesta, ‘mas este mangusto também não é de verdade’.

Essa é uma perfeita parábola de Magick.

e prossegue com isso em “Notas sobre a natureza do Plano Astral” com (ênfase no original):

É mais conveniente assumir a existência objetiva de um “Anjo” que nós dá novo conhecimento. . .

A “realidade” ou “objetividade” desses símbolos não é pertinente à discussão. As ideias de X elevado à quarta potência e raiz quadrada de -1 se mostraram úteis para o progresso do avanço matemático em direção à Verdade; não é difícil saber se uma Quarta Dimensão “existe” ou se a raiz quadrada de -1 tem “significado” no sentido que a raiz quadrada de 4 tem, o número de unidades no lado de um quadrado de 4 unidades.

O Plano Astral — real ou imaginário — é um perigo para qualquer pessoa que o considere sem o grão de sal contido na Sabedoria do ponto de vista acima. . .

Não devemos afirmar a “realidade” ou “objetividade” de um Ser Astral com base em nenhuma evidência melhor do que a sensação subjetiva de sua existência independente. Devemos insistir na prova patente para todos os observadores qualificados se quisermos estabelecer a premissa principal da religião: que existe uma Inteligência Consciente independente do cérebro e do nervo como os conhecemos.[27]

Anteriormente neste ensaio[28] vimos que a rejeição do termo “Eu Superior” por Crowley em Magick Without Tears não poderia ser interpretada como uma “mudança de posição”, uma vez que ele também rejeitou o mesmo termo mais de vinte anos antes em seu “novo comentário” ao Livro da Lei. Os trechos acima mostram que o mesmo pode ser dito sobre os Anjos “objetivos”; Crowley estava apresentando as mesmas ideias já em 1921, quando escreveu “Notas sobre a natureza do “Plano Astral”.[29]

Mais importante ainda, podemos ver que em “Notas sobre a natureza do Plano Astral”, onde Crowley falou muito explicitamente sobre “inteligências independentes”, ele insiste repetidamente no ponto de que a “realidade” ou “objetividade” de coisas como “Anjos” não é “pertinente” — mais do que isso, ele adverte que “não devemos afirmar a ‘realidade’ ou ‘objetividade’” de tais seres sem “prova patente para todos os observadores qualificados”. De fato, ele leva essa ideia da irrelevância da “realidade” do Anjo até o próprio Magick Without Tears, dizendo na carta “Do Angels Ever Cut Themselves Shaving?”:

Devemos concluir que todo o conjunto de impressões não é mais do que simbólico? É tudo uma parte de si mesmo, como um sonho acordado, mas um sonho acordado intensificado e tornado “real” porque seus incidentes cruciais se revelam verdadeiros, como sempre ocorre durante o teste da genuinidade da visão? . . . Parece-me muito mais simples dizer que esses Anjos são indivíduos “reais”, embora vivam em um mundo cujas leis não temos noção; e que, para se comunicarem conosco, eles fazem uso de formas simbólicas apropriadas

enfatizando que a adoção de terminologia como “Anjo” nada mais é do que uma conveniência, uma posição tomada por simplicidade.[30] Assim, enquanto Crowley fala facilmente de “indivíduos objetivos” e “inteligências independentes”, ele nessas mesmas obras para enfatizar que não se deve tentar afirmar a “realidade” de tais coisas. Assim, podemos concluir, com base nas próprias palavras de Crowley, que sua afirmação de que o Sagrado Anjo Guardião é um “indivíduo objetivo” ou uma “inteligência independente” não precisa implicar em uma afirmação de que ele é um “ser” totalmente independente e externo, existindo inteiramente separado do indivíduo que tem a “visão”.

Como disse Crowley no Capítulo VII de Magick in Theory and Practice, “seria infantil apegar-se à crença de que Marius de Aquila[31] realmente existiu”, e seria igualmente infantil apegar-se à crença de que os “anjos” são, de fato, “seres præternaturais”. No entanto, as ideias de “indivíduos objetivos” e “inteligências independentes” reforçam os perigos de que falamos na seção anterior em relação ao conceito do “Eu Superior”, e Crowley se referiu repetidamente a essas ideias, portanto, não podemos simplesmente descartá-las. Tendo demonstrado que Crowley não estava afirmando a existência de “seres reais”,[32] podemos voltar nossa atenção para o que esses conceitos realmente podem significar. Antes de fazer isso, porém, precisamos considerar o significado de “indivíduo objetivo”.

 

Um Indivíduo Objetivo

A carta “O Sagrado Anjo Guardião não é o ‘Eu Superior’, mas um Indivíduo Objetivo” em Magick Without Tears trata principalmente da questão de qual ordem de existência os “anjos” pertencem e, particularmente, “se eles estão sujeitos a acidentes, infortúnios e coisas do gênero”.

Assim que chegamos ao segundo parágrafo daquela carta somos imediatamente confrontados com o problema de compreender a distinção entre “subjetivo” e “objetivo”. Essa distinção pode ter muitos matizes de significado, e é importante, ao lidar com esse assunto, não confundir esses matizes; em outras palavras, não tomar uma declaração formulada nesses termos no contexto de um matiz de significado e, em seguida, estendê-la inadequadamente para abranger falsamente outros.

O infame parágrafo “indivíduo objetivo” dessa carta pode ser visto sob uma luz muito diferente quando o examinamos no contexto de toda a carta em que aparece. Naquela carta, Crowley diz que:

para os propósitos desta carta, proponho usar a palavra “anjo” para incluir todos os tipos de seres desencarnados, desde demônio até deuses — em todos os casos, eles são objetivos; um “anjo” subjetivo é diferente de um sonho apenas no que não é essencial.

Em primeiro lugar, não vamos nos prender demais ao termo “desencarnado”; particularmente, não vamos cometer o erro de pensar que isso necessariamente implica a existência de seres vivos reais sem corpos, no sentido em que os cristãos acreditam que seu deus existe, por exemplo. Para ilustrar, tomemos o exemplo de Zeus. Zeus se enquadra na descrição “ser desencarnado” — em primeiro lugar, ele é conhecido por ser o Rei dos Deuses na mitologia grega, que governa o céu, se uniu a Hera, teve pelo menos dois irmãos mais velhos, teve filhos e realizou todos os tipos de outros atos individuais consistentes com o fato de ser, bem, um “ser”. Em segundo lugar, ele está claramente “desincorporado”, pelo menos pelo fato óbvio de que ele não existe realmente no sentido físico.

Então, o que significa “objetivo” nesse sentido? Simplesmente que qualquer pessoa assim inclinada pode descobrir independentemente inúmeras qualidades, características e histórias sobre Zeus consultando um grande conjunto de fontes literárias e outras. Independentemente do fato de ele não existir fisicamente, nesse sentido ele possui características “conhecidas” e há lendas relativamente definidas sobre algumas de suas travessuras. O mesmo não pode ser dito do “anjo subjetivo” de Crowley, que é “diferente de um sonho apenas no que não é essencial” e é acessível apenas a um indivíduo em particular.

É importante entender isso. “Objetivo”, nesse sentido, não significa que se possa agarrar Zeus e dar-lhe um tapa forte na nuca. Indica simplesmente a presença de qualidades objetivas que existem independentemente de qualquer indivíduo. Se um determinado indivíduo afirmasse que Zeus não era o Rei dos Deuses, mas sim um humilde marceneiro de Nuneaton, o erro desse indivíduo poderia ser demonstrado com relativa facilidade. No entanto, isso não pode ser feito com o “anjo subjetivo” de Crowley, que é conhecido apenas por um único observador. “Objetivo” pode significar algo que existe totalmente separado da consciência de qualquer pessoa, mas, nesse caso, não significa isso de fato. Pegar a citação acima e argumentar que Crowley estava necessariamente insinuando que alguns anjos realmente existem de forma totalmente separada da consciência de qualquer pessoa é como argumentar que o Livro de Gênesis não descreve realmente a “Queda do Homem” porque não contém nenhum relato de Adão tropeçando em uma pedra e machucando o joelho. Também não há escapatória para argumentar que o Gênesis não descreve a “Queda do Homem” porque tal coisa não aconteceu de fato; as histórias de Conan Doyle descrevem algo da vida e dos tempos de Sherlock Holmes, e essa afirmação não perde nada de sua verdade com a observação de que Sherlock Holmes nunca viveu de fato. É muito fácil ficar confuso sobre os termos dessa maneira, e é preciso estar constantemente alerta para não fazer isso.

Com isso em mente, Crowley continua a distinguir entre “anjos” que são “microcosmos” e anjos que não o são. Em relação aos primeiros:

alguns anjos são na verdade emanações dos elementos, planetas ou signos aos quais são atribuídos. Eles são seres parciais, da mesma forma que os animais. Eles não são microcosmos como os homens e as mulheres. São quase inteiramente compostos pelo planeta (ou seja lá o que for) ao qual são atribuídos. . . No caso acima, evidentemente sua existência depende da existência do planeta Vênus; e pode-se supor que, se esse planeta fosse eliminado do sistema solar, não haveria mais Qedemel. Mas isso é julgar precipitadamente; pois a própria Vênus é apenas uma emanação do número 7 e, portanto, é indestrutível. . . É uma ideia como a mencionada acima que está por trás da ideia convencional de que os elementais são imortais, que incorrem em mortalidade quando sua ambição e devoção os levam a encarnar como seres humanos.

A “ideia como a mencionada acima” a que Crowley se refere é o fato de que esses “anjos não microcósmicos” são meras representações de algo mais e, quando esse “algo mais” é eterno, o mesmo acontece com os “anjos” que, na verdade, são meros rótulos para eles. Crowley diz que há “muitas histórias orientais sobre a destruição de dríades ou Nats pelo corte da árvore em que eles fizeram a sua habitação”

  • naturalmente, porque o espírito em questão é definido inteiramente como sendo o espírito daquela árvore, e quando essa árvore desaparece, ela não pode ter espírito. Por outro lado, um “espírito do trovão” será muito menos suscetível a danos, porque embora você possa cortar quantas árvores quiser, não será capaz de se livrar do trovão tão facilmente.

Assim, um “anjo não microcósmico” pode ser “objetivo” no sentido de que é a personificação de uma coisa definida — como um trovão ou uma árvore específica

  • cujas qualidades podem ser detectadas com segurança por qualquer pessoa que queira olhar, e ainda pode ser “objetivo”, mesmo que não exista um espírito físico real, uma vez que é apenas um rótulo para algo que realmente está fisicamente “lá fora”. É isso que se quer dizer com “alguns anjos são, na verdade, emanações dos elementos, planetas ou signos aos quais são atribuídos”; eles são, na verdade, “emanações” dessas coisas, porque, de fato, nada mais são do que rótulos convenientes para essas coisas ou, pelo menos, para aspectos particulares dessas coisas. Esses espíritos são indissociáveis ​​desses aspectos, pois é assim que são definidos.

Então, por outro lado, temos os “anjos microcósmicos”, que:

são microcosmos exatamente no mesmo sentido que homens e mulheres. São indivíduos que escolheram os elementos de sua composição conforme a possibilidade e a conveniência ditam, exatamente como nós mesmos fazemos. Quero que você entenda que uma deusa como Astarte, Astaroth, Cotytto, Afrodite, Hathoor, Vênus, não são meramente aspectos do planeta; são indivíduos separados que foram identificados uns com os outros e atribuídos a Vênus meramente porque a característica saliente de seu caráter se aproxima desse ideal.

Zeus seria um exemplo. Zeus não é apenas uma personificação do céu ou do trovão — ele é um indivíduo definido com sua própria personalidade, fraquezas, tendências e características, todas elas definidas pela lenda, e esse conglomerado de atributos é maior do que qualquer objeto ou fenômeno específico ao qual ele esteja associado. Mais uma vez, essa descrição sobrevive à observação de que Zeus não é “real”, da mesma forma que a afirmação “Sherlock Holmes era um homem” sobrevive à observação de que ele também não era “real”. Esses indivíduos imaginários “pegaram os elementos de sua composição conforme a possibilidade e a conveniência”, porque esses elementos são criados ao longo do tempo pelas pessoas e, com o passar do tempo, esses elementos mudam, são adicionados, são misturados com os de outros indivíduos mitológicos, de modo a fazer com que essas personalidades se alterem e cresçam com o tempo, exatamente da mesma forma que as personalidades de indivíduos vivos reais.

A apresentação desse tipo de “ser desencarnado” como um “indivíduo objetivo” não deve, portanto, de forma alguma ser interpretada como significando que este tipo de anjo é um ser real existente da mesma forma que as pessoas que andam na terra hoje o são. Esse tipo de apresentação é totalmente consistente com um ser totalmente imaginário, e tudo o que é necessário para a “objetividade” de que Crowley está falando é que as características desse ser imaginário sejam mais ou menos consensuais e determináveis.[33] Argumentar que Crowley realmente pensava que “Astarte, Astaroth, Cotytto, Aphrodite, Hathoor [e] Vênus” eram seres reais existentes é uma ilusão extrema, especialmente quando temos passagens como:

Assim, quando dizemos que Nakhiel é a “Inteligência” do Sol, não queremos dizer que ele vive no Sol, mas apenas que ele tem uma certa posição e caráter; e embora possamos invocá-lo, não queremos dizer necessariamente que ele existe no mesmo sentido da palavra em que nosso açougueiro existe.

em Magick in Theory and Practice nos contando o que Crowley realmente quis dizer.

*         *          *

A nossa análise dos comentários de Crowley sobre o lado “objetivo” do debate revelou, portanto, quatro pontos importantes:

  • As observações de Crowley em Magick Without Tears, que muitas vezes são consideradas como exemplo de uma “mudança de posição” de Crowley sobre o assunto da “realidade” do Sagrado Anjo Guardião, na verdade não fazem nada disso, pois podemos ver que todas as posições delineadas nessas observações também estavam sendo delineadas por Crowley pelo menos vinte anos antes;
  • O fato de Crowley rejeitar o termo “Eu Superior” como uma descrição do Sagrado Anjo Guardião não invalida qualquer visão “interna” ou “subjetiva” do Anjo, apenas uma visão que consiste em “uma mera abstração e exaltação de suas próprias qualidades favoritas”;
  • O uso que Crowley faz do termo “indivíduo objetivo”, quando lido no contexto de toda a carta em que esse termo aparece, não precisa ser — e aparentemente não tem a intenção de ser — entendido como uma afirmação de que o Sagrado Anjo Guardião é um “ser real e externo” totalmente separado do aspirante; e
  • O conceito de Crowley de “comunicar-se” com algo “independente” é de importância crítica para a obtenção do Conhecimento e Conversação do Sagrado Anjo Guardião, pois essa é a única alternativa à visão do “Eu Superior”.

É apenas esse quarto e último ponto que dá alguma credibilidade ao lado “objetivo” do debate e, portanto, é o único ponto que precisamos considerar mais detalhadamente. Faremos isso no contexto do exame do que Crowley disse sobre o lado “subjetivo” do debate, mas, antes disso, precisamos abordar uma questão adicional relacionada ao lado “objetivo”.

 

O Problema de Aiwass

Além de fazer várias observações, às vezes confusas e aparentemente contraditórias, sobre o Sagrado Anjo Guardião em um sentido “objetivo” e “subjetivo”, há um sentido adicional e totalmente separado no qual Crowley falou sobre o “Sagrado Anjo Guardião”.

No The Equinox of the Gods, Crowley escreveu que:

Afirmo ser a única autoridade competente para decidir pontos controversos com relação ao Livro da Lei, visto que seu Autor, Aiwaz, não é outro senão meu próprio Sagrado Anjo Guardião, a Cujo Conhecimento e Conversação eu alcancei, de modo que tenho acesso exclusivo a Ele.

e anteriormente, em seu “novo comentário” a AL, III, 68:

E não é este Livro a Palavra de Aiwaz, é não é Ele o meu Sagrado Anjo Guardião[?]

Vimos na seção anterior que os comentários que Crowley fez e que são frequentemente usados para apoiar uma visão “objetiva” do Sagrado Anjo Guardião não contradizem, de fato, a visão “subjetiva”. Mas a ideia de Aiwaz ser o Sagrado Anjo Guardião de Crowley, se a levarmos a sério, cria uma série de contradições.

Primeiramente, podemos relembrar que em Uma Estrela à Vista Crowley disse que:

É impossível estabelecer regras precisas pelas quais um homem possa alcançar o conhecimento e a conversa com Seu Sagrado Anjo Guardião, pois esse é o segredo particular de cada um de nós; um segredo que não deve ser contado ou mesmo adivinhado por ninguém, seja qual for seu grau. É o Santo dos Santos, do qual cada homem é seu próprio Sumo Sacerdote, e ninguém sabe o Nome do Deus de seu irmão ou o Rito que O invoca.

no entanto, conhecemos o “Nome de Deus [de Crowley]” — de fato, conhecemos duas grafias alternativas para ele — bem como o “Rito que O invoca”, já que Crowley o publicou em 1929 como Liber Samekh. Isso não é, obviamente, um problema sério — não há razão para que alguém não revele seu método de invocação do Sagrado Anjo Guardião nem qualquer nome que decida dar a ele.

Mais sério ainda é o que — se aceitarmos que Aiwaz era o Sagrado Anjo Guardião de Crowley e que ele alcançou o Conhecimento e a Conversação com ele, como ele afirma, em The Equinox of the Gods, entre outros lugares, ter feito em outubro de 1906, após “seis meses de Invocação” — devemos fazer da lenda da “recepção” de 1904 do Livro da Lei. Alguém poderia pensar que o ditado audível — se acreditarmos na história de Crowley — se qualificaria como “Conhecimento e Conversação”,[34] mas isso ocorreu mais de dois anos e meio antes do CCSAG que Crowley realmente descreveu no próprio The Equinox of the Gods.

Além disso, apesar da categorização de Crowley em Magick in Theory and Practice de que a pessoa está “consciente de seu próprio curso consagrado e confiantemente pronta para percorrê-lo” uma vez que tenha alcançado o Conhecimento e a Conversação de seu Sagrado Anjo Guardião, nas próprias palavras de Crowley, ele rejeitou a mensagem de Aiwass até encontrar o manuscrito “perdido” do Livro da Lei na Boleskine House, em junho de 1909. [35] Em uma carta datada de 25 de abril de 1938, Crowley escreveu que “lutei contra [as] forças [por trás do Livro da Lei] com todo o meu poder por muitos anos” e, em Magick Without Tears, escreveu que: ‘Você discorda de Aiwass —assim como todos nós”. Se aceitarmos a noção de que Aiwass era o Sagrado Anjo Guardião de Crowley, então, quer coloquemos seu Conhecimento e Conversação com Aiwass em 1904 ou 1906, o fato de que ele rejeitou a mensagem de Aiwass, lutou contra essa mensagem “com todo o [seu] poder por muitos anos” e ainda, mesmo em 1945, “discordou de Aiwass”, então o tipo de ‘Sagrado Anjo Guardião’ que Aiwass é parece ser muito, muito diferente do tipo de Sagrado Anjo Guardião sobre o qual Crowley consistentemente falou durante todo o resto de seu corpus, independentemente de este último ser ‘subjetivo’ ou ‘objetivo’.

Um outro problema que surge da declaração de Crowley de que “ninguém sabe o Nome do Deus de seu irmão, ou o Rito que O invoca” é o fato de que ele sempre exigia a ajuda de outros para “invocar” Aiwass. A “recepção” de 1904 começou com Rose, e não Aleister, Crowley recebendo uma “comunicação” de Aiwass[36] e, em abril de 1906, ele “decidiu pedir a F.[37] que invocasse Aiwass e conversasse com Ele quando invocado e, assim, decidisse sobre a qualidade dessa Magick ‘[38] , o que ela fez, com a aparição de ’Aiwass”. Se o Sagrado Anjo Guardião é a encarnação da “Grande Obra” e da “Verdadeira Vontade” que Crowley sempre descreveu como sendo, então é difícil acreditar que outra pessoa possa invocar seu “Anjo”.

Além disso, em Magick Without Tears, Crowley escreveu sobre a maneira pela qual os “Mestres” — que podemos identificar razoavelmente com “as forças por trás do Livro” — entraram em contato com ele:

o esforço de minha parte foi precisamente nulo, eu me ressenti da interferência deles com uma descrença orgulhosa, amarga e raivosa. . . Eles me escolheram

Isso é totalmente consistente com a afirmação de Crowley de que ele “lutou contra essas forças com todo o [seu] poder” e deixa claro o fato de que suas relações com essas forças — das quais Aiwass era pelo menos o representante, se não um deles — não foi o resultado de algo que Crowley fez, mas o resultado de algo que foi feito a ele. Isso também não faz sentido algum no contexto do Conhecimento e Conversão do Sagrado Anjo Guardião ser equivalente a alcançar a “Grande Obra”, com a ideia de que a CCSAG existe dentro do contexto de um sistema de desenvolvimento pessoal. Se Aiwass é o “Sagrado Anjo Guardião” de Crowley e suas comunicações com Aiwass refletem seu “Conhecimento e Conversação” com Aiwass, então, mais uma vez, ele era um tipo muito diferente de “Sagrado Anjo Guardião” do que o tipo ao qual todo o desenvolvimento

programa da A∴A∴ foi dirigido, “objetivo” ou não.

Além disso, os contextos em que as afirmações de Aiwass aparecem são, em si, bastante estranhos e contraditórios. Como já vimos,[39] o próprio Equinócio dos Deuses define o Sagrado Anjo Guardião como “nosso Eu Secreto — nosso Ego Subconsciente”, mas depois diz que:

elas[40] não são Minhas palavras, a menos que Aiwaz seja considerado nada mais do que meu eu subconsciente, ou alguma parte dele: nesse caso, sendo meu eu consciente ignorante da Verdade do Livro e hostil à maior parte da ética e da filosofia do Livro, Aiwaz é uma parte severamente suprimida de mim. Tal teoria implicaria ainda que eu sou, sem que eu saiba, possuidor de todos os tipos de conhecimento e poder preternaturais. A lei da Parcimônia de Pensamento (Sir W. Hamilton) aparece em refutação.

parecendo refutar categoricamente tal sugestão. Num único capítulo, Crowley afirma simultaneamente que o Sagrado Anjo Guardião é “nosso Eu Secreto

— nosso Ego Subconsciente”, que “Aiwaz não é outro senão [seu] próprio Sagrado Anjo Guardião”, e que Aiwaz aparentemente não deveria “ser considerado nada mais do que [seu] eu subconsciente”. O fato de que todas essas três afirmações — que aparecem em rápida sucessão uma da outra — não podem ser simultaneamente verdadeiras deve nos levar a suspeitar fortemente que, quando Crowley rotulou Aiwass como seu “Sagrado Anjo Guardião”, ele não estava usando esse termo no mesmo sentido que normalmente usava, e estava gerando confusão ao usar o mesmo rótulo para se referir a duas coisas muito diferentes.

Além disso, O Equinócio dos Deuses também contém a seguinte declaração de Crowley:

Agora estou inclinado a acreditar que Aiwass não é apenas o Deus, Demônio ou Diabo que já foi considerado sagrado na Suméria, e meu próprio Anjo Guardião, mas também um homem como eu

e no capítulo anterior, ele diz que:

se Aiwass é um ser espiritual ou um homem conhecido por Fra. P., é uma questão de mera conjectura.

A ideia de o Sagrado Anjo Guardião ser um “ser preternatural” já é bastante difícil, mas a sugestão de que o Sagrado Anjo Guardião de alguém pode ser, na verdade, outro ser humano andando pelo planeta — como Crowley parece afirmar que ele é na primeira citação acima e parece não ter problemas em aceitar na segunda — leva a definição a um ponto de ruptura.

A identificação de Crowley de Aiwass como seu Sagrado Anjo Guardião é uma anomalia, portanto. Pode ser que ele estivesse apenas procurando reforçar sua própria posição como líder religioso e mundial, criando um vínculo muito pessoal com o “autor preternatural” do Livro da Lei, para que ele pudesse então reivindicar — como fez — “ter acesso exclusivo a Ele”[41] e, portanto, “ser a única autoridade competente para decidir questões controversas em relação ao Livro da Lei”. Seja esse o caso ou não, está pelo menos além de qualquer dúvida razoável que, quando Crowley se referiu a Aiwass como seu “Sagrado Anjo Guardião”, ele não estava usando esse termo no mesmo sentido em que o usava consistentemente em outras partes de suas obras, porque fazer isso anularia e revogaria completamente toda a sua filosofia e sistema de desenvolvimento mágico, e o fato de que ele continuou a promover essa filosofia e sistema até o Magick Without Tears demonstra que ele, de fato, não o considerava assim revogado. Sendo este o caso, o “problema de Aiwass” não precisa mais nos preocupar, e podemos continuar com a nossa investigação.

 

O SAG Subjetivo

Anteriormente, examinamos a questão de saber se o Sagrado Anjo Guardião é ou deve ser um “indivíduo externo” — i.e., um anjo externo de fato — ou um “indivíduo interno” — ou seja, uma espécie de “projeção da personalidade” — e a maioria das discussões sobre o assunto gira em torno dessa questão. No entanto, é indiscutivelmente muito mais interessante examinar mais de perto a ideia de que o SAG seja qualquer tipo de indivíduo.

A interpretação mais simplista do conceito de “Conhecimento e Conversação do Sagrado Anjo Guardião” é a de um indivíduo de algum tipo — externo ou interno — a quem se recorre para obter “conselhos”, a quem se faz perguntas e de quem se obtém orientação. O próprio Crowley disse em Magick Without Tears:

Imagine por um momento que você é um órfão a cargo de um tutor, inconcebivelmente aprendido do seu ponto de vista. Suponha, portanto, que você esteja intrigado com algum problema adequado à sua natureza infantil, a maneira mais óbvia e simples é se aproximar do seu tutor e pedir que ele o esclareça. É claramente parte de sua função como guardião fazer o melhor para ajudá-lo. Muito bom, esse é o primeiro método, e um paralelo próximo com o que entendemos pela palavra Magick.[42]

Crowley disse  famosamente em Magick Without Tears que:

Minha observação do Universo me convence de que existem seres de inteligência e poder de qualidade muito mais elevada do que qualquer coisa que possamos conceber como humana; que eles não são necessariamente baseados nas estruturas cerebrais e nervosas que conhecemos; e que a única chance de a humanidade progredir como um todo é os indivíduos fazerem contato com esses Seres.

e isto foi o principal responsável pelo início da bizarra ramificação “extraterrestre” de “Thelema”. Aqueles que pertencem ao campo “objetivo” tendem a subscrever a visão de que o SAG é exatamente essa entidade, apesar do fato de que essa citação em particular fala especificamente sobre a chance de a humanidade avançar como um todo, e não sobre qualquer forma de progresso pessoal.[43] Mas, para fins de argumentação, vamos supor por um momento que esses seres existam e que tenhamos contatado um que acreditamos ser o nosso “Sagrado Anjo Guardião”, de modo que fazemos perguntas a ele de alguma forma — verbalizadas ou não — para obter uma forma de orientação. Se quisermos aceitar pelo valor nominal que a orientação que recebemos é a orientação que devemos seguir, estamos

fazendo duas suposições implícitas:

  1. A entidade sabe o que é “melhor para nós”; e
  2. A entidade quer nos comunicar isso.

Estas não são suposições que devemos fazer sem séria consideração. É inteiramente possível que a entidade em questão seja travessa ou positivamente malévola. Não se pode confiar no fato de que ele é um “ser superior” para inferir suas boas intenções. Os humanos, por exemplo, podem ser razoavelmente assumidos[44] como sendo uma “forma superior de seres” do que as vacas.  No entanto, se as vacas alguma vez conseguissem estabelecer uma ligação consciente com a humanidade, imaginem a “sabedoria” que receberiam: “Vamos engordar-te, depois matar-te e comer a tua carne. Depois vamos colocar seus filhos em caixotes e fazer o mesmo com eles também. Ah, e então vamos fazer casacos e sapatos lindos com sua pele. Tenham uma boa eternidade!” É bem possível que, se esses seres são tão avançados em comparação a nós, então somos tão inferiores a eles que talvez nem nos notem, muito menos se importem com nosso bem-estar.

Em qualquer caso, enfrentamos o problema de não podermos aceitar que a orientação de tal indivíduo seja a priori digna de ser seguida. Esse problema não é diminuído pela abordagem do “indivíduo interno”. Vamos supor que, em vez disso, o SAG seja uma “projeção da personalidade”, como alguns afirmam,[45] e repita o processo recorrendo a ele para obter orientação. É bem sabido que a personalidade contém muitos elementos conflitantes e autodestrutivos. Se não fosse assim, então a parte da personalidade com a qual estamos pensando não precisaria da orientação de outra parte. Isso levanta então uma questão semelhante: como sabemos que vale a pena ouvir a parte da personalidade com quem falamos? E se estivermos falando da “projeção” de uma neurose ou de um conflito?

Em qualquer uma das abordagens, portanto, ficamos com o problema de como determinar se a orientação que recebemos é ou não uma orientação que devemos seguir, como determinar se o “indivíduo” — seja interno ou externo — é um indivíduo que vale a pena ouvir.

Isso nos deixa em uma situação difícil. Existem apenas duas abordagens possíveis. Uma delas é simplesmente ter que as mensagens são genuínas. Essa, por razões óbvias, não é uma abordagem sensata. A outra é avaliar de alguma forma a “genuinidade” das mensagens. Isso levanta uma questão óbvia: se somos capazes de avaliar independentemente a genuinidade das mensagens do “anjo”, então por que precisamos entrar em contato com o “anjo”? Se já possuímos tal faculdade discriminatória, por que tal “Conhecimento e Conversação” deveria ser necessário, ou mesmo útil? Se você for pedir orientação ao seu “anjo” e filtrar as mensagens por meio de sua própria faculdade discriminatória, então não estará “ouvindo o seu anjo” de forma alguma — estará escolhendo as mensagens que melhor se encaixam com o que você já pensa.[46] Isso não apenas torna o “Conhecimento e Conversação do Sagrado Anjo Guardião” um conceito sem sentido, mas também o torna inexistente; um indivíduo que segue essa abordagem simplesmente não está engajado em nada disso.

A teoria do SAG como um indivíduo separado — seja “objetivo” ou “subjetivo” — com o qual um indivíduo é capaz de conversar conscientemente parece ser fundamentalmente contraditória e falha, e mesmo quando bem-sucedido parece incapaz de fazer o que afirma que sim.

Contudo, existe uma maneira de fazer essa abordagem funcionar se mudarmos ligeiramente a perspectiva. Podemos dizer que o SAG é um indivíduo, no sentido pleno da palavra, se definirmos o SAG — como Crowley de fato fez — como o eu. Essa definição exigiria que considerássemos a mente consciente, os pensamentos, as emoções, a autoimagem, tudo aquilo a que normalmente nos referimos como “nós mesmos”, como não constituindo um eu. Com essa perspectiva, o SAG não é o “Eu Superior”; ele é o único eu. Portanto, o “Conhecimento e Conversação do Sagrado Anjo Guardião” não consistiria em um indivíduo se comunicando com outro indivíduo, mas em um “indivíduo” percebendo que não é um indivíduo e jogando seus próprios “interesses” pela janela. Nesse caso, não há necessidade de “avaliar a genuinidade” da orientação do “anjo”, porque não há mais nenhuma orientação conflitante que surja da consciência, não há mais nenhum “interesse próprio” que a “orientação” precise promover.

E, de fato, quando olhamos como Crowley realmente descreveu o CCSAG, é exatamente isso que vemos. Em Liber Samekh — “sendo o Ritual empregado pela Besta 666 para a Consecução do Conhecimento e Conversação de seu Sagrado Anjo Guardião” — Crowley escreve que:

o Adepto estará livre para concentrar seu eu mais profundo, aquela parte dele que inconscientemente ordena sua verdadeira Vontade, na realização de seu Sagrado Anjo Guardião. A ausência de sua consciência corporal, mental e astral é, de fato, fundamental para o sucesso, pois foi a usurpação de sua atenção que o tornou surdo para sua Alma, e sua preocupação com os assuntos deles que o impediu de perceber essa Alma

e continua:

Para que o Adepto tenha consciência de seu Anjo, é preciso que alguma parte de sua mente esteja preparada para perceber a realidade e expressá-la para si mesma de uma forma ou de outra. Isso envolve a perfeição dessa parte, a sua liberdade em relação ao preconceito e às limitações da chamada racionalidade. Por exemplo: uma pessoa não poderia receber a iluminação sobre a natureza da vida que a doutrina da evolução deveria lançar, se estivesse apaixonadamente persuadida de que a humanidade não é essencialmente animal, ou convencida de que a causalidade é repugnante à razão. O Adepto deve estar pronto para a destruição total de seu ponto de vista sobre qualquer assunto, e até mesmo de sua concepção inata das formas e leis do pensamento.

Assim, a mente consciente do indivíduo deve alcançar a “liberdade do preconceito e das limitações da chamada racionalidade” para que suas próprias atividades não influenciem ou restrinjam as ações do eu, a fim de que suas próprias “preferências” não puxam o eu em nenhuma direção ou outra, a partir da qual ele tenderia naturalmente a ir. Deve alcançar o silêncio em seus próprios meandros se quiser perceber com precisão a natureza do eu e tornar-se consciente da vontade. De fato, foi a “usurpação de sua atenção que o tornou surdo à sua Alma, e sua preocupação com os assuntos dela que o impediu de perceber essa Alma”. A “Conversação ” com o Anjo ocorre quando o aspirante se tornou suficientemente hábil em ver além do conteúdo de sua própria mente para poder perceber seu “Eu Verdadeiro” interior, seu Sagrado Anjo Guardião e a fonte de sua “Verdadeira Vontade”. É esse “Eu Verdadeiro” que é “independente” da mente e “externo” a ela, e é apelando para esse “Eu Verdadeiro” que obtemos os benefícios de nos comunicarmos com uma “inteligência independente”, em oposição aos meros conteúdos e reflexos distorcidos de nossas próprias mentes conscientes.

Essa ideia está presente em praticamente toda a prosa técnica publicada por Crowley, até mesmo em sua obra final, Magick Without Tears, ecoando sua declaração de Magick in Theory and Practice, feita mais de vinte anos antes,[47] que já citamos:[48]

Podemos concordar prontamente que o Augœides, o “Gênio” de Sócrates, e o “Sagrado Anjo Guardião ” de Abramelin, o Mago, são idênticos.

e mais tarde nessa mesma obra, ao falar de:

Iniciação, que implica a libertação e o desenvolvimento do gênio latente em todos nós (um dos nomes do “Sagrado Anjo Guardião” não é o Gênio?)

“Augœides” é um termo obscuro. Thomas Taylor, o neoplatonista inglês, escreveu, ao comentar sobre o filósofo grego Porfírio, que:

um longo período, quando a esfera giratória do tempo tiver aperfeiçoado sua circulação, liberta a alma de suas manchas concretas e deixa o sentido etéreo puro, juntamente com o fogo (ou esplendor) do simples éter. Pois aqui ele evidentemente une a alma racional, ou o sentido etéreo, com seu esplêndido veículo, ou o fogo do éter simples; já que é bem sabido que esse veículo, de acordo com Platão, é tornado pela purgação adequada “augœides”, ou luciforme, e divino.

descrevendo o termo em relação a uma purificação ou libertação da “alma”, tal como Crowley falou da “libertação e desenvolvimento do gênio” latente em todos nós”. O ‘“Gênio” de Sócrates’ foi discutido pela filósofa francesa Sarah Kofman:

se quisermos entender a natureza do “gênio” socrático adequadamente, sem confundi-lo, como alguns fazem, com uma espécie de anjo da guarda, a analogia antropológica deve ser mantida. . . reconhecemos que o gênio de Sócrates nada mais é do que seu oráculo pessoal; ele funciona como um substituto interno para a agência de tomada de decisão anterior, o oráculo externo.[49]

fazendo uma ligação muito explícita com a ideia do Sagrado Anjo Guardião como um tipo de conselheiro “interno”, em vez de um “anjo da guarda” real e sincero, que Crowley descreve como “patentemente absurdo”. Assim, mesmo em sua última obra — que, como vimos, é o principal responsável pelo início de todo o lado “objetivo” do debate — Crowley continua a descrever o Sagrado Anjo Guardião em termos de “liberar” algo já latente dentro de nós — i.e., liberar o “Eu Verdadeiro” dos véus da mente que o envolvem — em oposição a “contatar” um ser externo.

No “novo comentário” a AL, I, 8–9, Crowley escreve que:

Não devemos nos considerar seres vis, sem cuja esfera está a Luz ou “Deus”. Nossas mentes e corpos são véus da Luz interior. O não iniciado é uma “estrela negra”, e a Grande Obra para ele é tornar seus véus transparentes, “purificando-os”. Essa “purificação” é na verdade “simplificação”; não é que o véu esteja sujo, mas que a complexidade das suas dobras o torna opaco. A Grande Obra consiste, portanto, principalmente na solução de complexos. Tudo em si é perfeito, mas quando as coisas estão confusas elas se tornam “más”. A Doutrina é evidentemente de suprema importância, desde a sua posição como a primeira “revelação” de Aiwass. . .

Devemos prestar atenção a essa Luz Íntima. . . São os “véus” mencionados anteriormente neste comentário que obstruem a relação entre Nuit e Hadit.

Não devemos adorar o Khu, não devemos nos apaixonar pela nossa Imagem Mágica. Fazer isso — todos nós fizemos isso — é esquecer a nossa Verdade. Se adoramos a Forma, ela se torna opaca para o Ser e pode em breve revelar-se falsa para si mesma. O Khu em cada um de nós inclui o Cosmos como ele o conhece. Para mim, mesmo outro Khabs é apenas parte do meu Khu. Nosso próprio Khabs é nossa única verdade.

Crowley rotula corretamente essa doutrina como sendo “de suprema importância”, uma vez que é a ideia fundamental subjacente à abordagem Thelêmica do autodesenvolvimento. A “Luz interior” do Khabs — o “Eu Verdadeiro” ou “Eu Secreto” do qual Crowley falava com tanta frequência, e que ele identificava com o “Gênio”, os “Augœiedes” e o “Sagrado Anjo Guardião” — é “velada” pelas “dobras” do Khu, e a essência da realização pessoal — a essência de alcançar o Conhecimento e a Conversação do Sagrado Anjo Guardião — é “tornar [os] véus transparentes”, limpar a “confusão” da mente.

Essa é a linguagem usada no Liber Samekh, que já vimos: “A ausência de sua consciência corporal, mental e astral é fundamental para o sucesso, pois foi a usurpação de sua atenção que o tornou surdo para sua Alma, e sua preocupação com os assuntos deles que o impediu de perceber essa Alma”. Sobre o mecanismo subjacente ao próprio ritual Liber Samekh, ele afirma na rubrica desse ritual que “o efeito do Ritual tem sido (a) mantê-los[50] tão ocupados com seu próprio trabalho que eles deixam de distraí-lo; (b) separá-los tão completamente que sua alma é despojada de suas bainhas”.

A noção de um “Eu Silencioso” — ou “Alma”, ou “Gênio” — sendo coberto por véus de “complexos” também aparece nos Confessions de Crowley, onde ele explica a J.W.N. Sullivan que:

Você, sendo homem, é portanto uma estrela. A alma de uma estrela é o que chamamos de gênio. Você é um gênio. Esse fato é obscurecido pelos complexos morais que o envolvem, ou pela falta de maquinaria adequada para o expressar em termos de ação.

A ideia surge já no Livro 4, em 1911, onde Crowley escreve: A ideia principal é que o Infinito, o Absoluto, Deus,[51] a

Superalma, ou como você preferir chamá-lo,[52] está sempre

presente; mas velado ou mascarado pelos pensamentos da mente, assim como não se pode ouvir os batimentos cardíacos numa cidade barulhenta. . . para obter conhecimento Disso, é necessário apenas aquietar todos os pensamentos.

Esse trecho fala novamente sobre a doutrina de que o Khabs está “velado ou mascarado pela. . . mente“, e a solução é ‘acalmar todos os pensamentos’ a fim de ‘tornar os véus transparentes ao ’purificá-los””, da mesma forma que a sujeira em uma piscina agitada se depositará no fundo e deixará a água limpa, se a água for acalmada por tempo suficiente para permitir que isso aconteça.

A ideia é repetida em termos solares em De Lege Libellum, publicado no terceiro volume de The Equinox em 1919:

Contemplai! o Reino de Deus está dentro de você, assim como o Sol permanece eterno nos céus, igual à meia-noite e ao meio-dia. Ele não se levanta: ele não se põe: é apenas a sombra da terra que o esconde, ou as nuvens sobre seu rosto.[53]

Na verdade, a ideia é apresentada ainda antes, num dos próprios “Livros Sagrados” Thelêmicos, nomeadamente Liber Cordis Cincti Serpente — um “relato das relações do Aspirante com o seu Sagrado Anjo Guardião” — que foi escrito em 1907. LXV, II, 59–60 diz:

Mas eu chamei por Ti, e eu viajei em busca de Ti, e de nada me valeu. Eu esperei pacientemente, e Tu estavas comigo desde o princípio.

enquanto LXV, III, 29 continua:

Todavia, o tempo todo Tu estavas ali oculto, como o Senhor do Silêncio está oculto nos botões do lótus.

e LXV, IV, 39 repete:

Antes que eu Te visse, Tu já estavas comigo.

Ao longo do livro, o tema do Sagrado Anjo Guardião — seu assunto principal — como sendo algo que existe dentro do indivíduo e que deve ser atendido apenas para que a comunhão ocorra é repetidamente encontrado: “Muitas coisas eu contemplei, mediatas e imediatas; contudo, não as contemplando mais, eu contemplei a Ti.” [54] Essa última citação ecoa a afirmação de Liber Samekh de que “a ausência de sua consciência corporal, mental e astral é, de fato, fundamental para o sucesso, pois foi a usurpação de sua atenção que o tornou surdo para sua Alma, e sua preocupação com os assuntos delas que o impediu de perceber essa Alma”. Liber Cordis Cincti Serpente diz: “Muitas coisas eu contemplei, mediatas e imediatas”, correspondendo à “usurpação” da atenção do aspirante de sua “consciência corporal, mental e astral”. Uma vez que o aspirante consegue alcançar a “ausência” dessa consciência — i.e., quando ele “não mais as mantém” — então o Conhecimento e a Conversação de seu Anjo se seguem: “Eu Te vi”. O Anjo do aspirante estava “com [ele] desde o início”, e “viajar” até o Anjo – ou seja, seguir um caminho de realização externa, buscar “Deus” fora da própria consciência, “adorar o Khu” e “apaixonar-se por [sua] Imagem Mágica” — “não lhe serviu de nada”. O Khabs — o “Sagrado Anjo Guardião” — está “oculto nele”, e ele deve simplesmente silenciar sua “consciência corporal, mental e astral” para entrar em comunhão com ele.

Crowley também fala sobre essa ideia em seu “novo comentário” ao AL, III, 60-62 (ênfase adicionada):

Assim, ele assimilará a Lei[55] e fará dela a norma de seu ser consciente; isso, por si só, será suficiente para iniciá-lo, para dissolver seus complexos, para revelar-se a si mesmo; e assim ele alcançará o Conhecimento e a Conversação de seu Sagrado Anjo Guardião. .

Vimos que Ra-Hoor-Khuit é, em um sentido, o Eu Silencioso em um homem, um Nome de seu Khabs, não tão impessoal quanto Hadit, mas a primeira e menos falsa formulação do Ego. Portanto, devemos inverter esse eu em nós, e não suprimi-lo e subordiná-lo. Nem devemos evitá-lo, mas sim chegar a ele.

Novamente vemos a ideia da “revelação” dos Khabs — o “Eu Silencioso” — por meio da dissolução de “complexos” que Crowley descreveu anteriormente em seu “novo comentário”. Ao “chegar a. . esse eu em nós” — ao ”adorar. . os Khabs “[56] — e tornando transparentes os véus que o cercam, nós ‘alcançamos o Conhecimento e a Conversação de [nosso] Sagrado Anjo Guardião’.

Em Little Essays Toward Truth,[57] Crowley escreve que (ênfase adicionada):

Aqui os grandes obstáculos são estes; em primeiro lugar, a má compreensão do Eu; e em segundo lugar, a resistência da mente racional contra as suas próprias conclusões. Os homens devem abandonar essas duas restrições; eles devem começar a perceber que o Eu está oculto e independente do instrumento mental e material no qual eles apreendem seu Ponto de Vista[58]

e em Magick Without Tears que:

À medida que você viaja para dentro, você se torna capaz de perceber todas as camadas que cercam o “Eu” por dentro[59]

Finalmente, Crowley relata um incidente em seu Confessions envolvendo Frank Bennett:

Em uma tarde, saímos para tomar banho com o Macaco.[60] Fiquei tagarelando enquanto caminhávamos inutilmente e, quando chegamos à beira do penhasco acima da baía, fiz um comentário casual que se mostrou uma jogada vencedora. Ele parou e ofegou; seus olhos começaram a sair da cabeça. . . Fiquei um pouco surpreso ao vê-lo correr pelo caminho como um cabrito, arrancar as roupas e correr para o mar como uma foca alarmada. Ele não falou uma palavra até depois de nadar e voltar para a estrada. Ele então disse com um rosto pálido e com sotaque admirado: “Por favor, me diga novamente o que você disse agora?”. . . Ele me pediu para discutir o assunto mais detalhadamente, o que eu fiz, e depois ele caiu no silêncio. Assim que chegou à abadia[61], entrou num estado de transe que durou três dias inteiros sem interrupção. Ele então veio até mim parecendo uma encarnação de pura alegria e me contou o que havia acontecido. . . Uma pequena faceta da verdade revelada da matriz pela roda da minha palavra deixou entrar a luz. Em três dias ele alcançou a iniciação crítica que o confundiu durante quase trinta anos.

Como John Symonds e Kenneth Grant explicam nas notas de rodapé da sua edição de The Confessions:

Sabemos pelo diário de Frank Bennett o que Crowley disse a ele nessa ocasião: “Progradior,[62] quero lhe explicar completamente, e em poucas palavras, o que significa iniciação e o que significa quando falamos do Eu Real[63] e o que é o Eu Real.” E então Crowley lhe disse que tudo era uma questão de fazer com que a mente subconsciente trabalhasse; e quando essa mente subconsciente pudesse ter pleno domínio, sem interferência da mente consciente, então se poderia dizer que a iluminação havia começado; pois a mente subconsciente era nosso Sagrado Anjo Guardião. Crowley ilustrou o ponto da seguinte forma: tudo é vivenciado na mente subconsciente, e ela (o subconsciente) está constantemente incitando sua vontade[64] na consciência e, quando os desejos internos são restringidos ou suprimidos, o resultado é o mal de todos os tipos.

Aqui, em termos psicológicos claros e diretos, Crowley identifica o “Sagrado Anjo Guardião” com o “subconsciente”, o “Eu Verdadeiro” e o “Khabs”, e afirma que a “iniciação” nada mais é do que o processo de eliminação da “restrição” e “supressão” da “mente consciente” que interfere na expressão dos “desejos internos” ou da “Verdadeira Vontade”. O método é “permitir” que o eu tenha “domínio total, sem interferência da mente consciente”. Como ele disse em Liber Aleph:

Ouça, Ouça com atenção; a Vontade não está perdida, embora esteja enterrada sob um monte de Repressões de uma vida inteira, pois ela persiste vital dentro de você (não é o verdadeiro Movimento de seu Ser mais íntimo?)

e em Little Essays Toward Truth:

Devemos aprender a viver sem a consciência assassina de que cada respiração que inspiramos aumenta as velas que levam os nossos frágeis navios ao Porto do Túmulo. . . Esse estado é, de fato, uma condição necessária para qualquer contemplação adequada do que estamos acostumados a considerar a primeira tarefa do Aspirante, a solução da pergunta: “Qual é a minha Verdadeira Vontade? Pois, até que nos tornemos inocentes, certamente tentaremos julgar nossa Vontade por algum Cânone do que parece “certo” ou “errado”; em outras palavras, estamos aptos a criticar nossa Vontade de fora, enquanto a Verdadeira Vontade deve brotar, como uma fonte de Luz, de dentro[65] e fluir sem controle, fervilhando de Amor, para o Oceano da Vida. Esta é a verdadeira ideia do Silêncio;[66] é a nossa Vontade que surge, perfeitamente elástica, sublimemente Proteica, para preencher cada interstício do Universo de Manifestação que encontra em seu curso.

Assim, podemos ver que a apresentação de Crowley dessa ideia do “Sagrado Anjo Guardião” é notavelmente consistente, desde Liber Cordis Cincti Serpente em 1907, passando pelo Livro 4 em 1911, por Liber Aleph, seu “novo comentário” e The Confessions por volta do início da década de 1920, por Magick in Theory and Practice no final da década de 1920,[67]  por Little Essays Toward Truth no final da década de 1930, até Magick Without Tears pouco antes do fim de sua vida. Além disso, esse conceito está inextricavelmente entrelaçado com — de fato, definido em termos de — a revelação da “Verdadeira Vontade”, que é o aspecto mais fundamental de Thelema prático e o conceito central de O Livro da Lei, cuja propagação Crowley fez de sua vida. Se aceitarmos que a consecução do  “Conhecimento e Conversação do Sagrado Anjo Guardião” é a principal preocupação do sistema de treinamento mágico e autodesenvolvimento de Crowley, e aceitamos que esse sistema ocorre dentro do contexto mais amplo de Thelema, então somos obrigados a aceitar também que essa noção, como descrevemos acima, é o que Crowley realmente quis dizer quando falou sobre o SAG. Supor que isso significa outra coisa — seja a comunicação com alienígenas extraterrestres ou com “projeções da personalidade”

— é inevitavelmente zombar tanto do sistema de treinamento de Crowley quanto da própria Thelema, uma vez que os três conceitos andam de mãos dadas.

 

Sumário

Depois de realizar uma revisão completa e abrangente dos escritos de Crowley sobre o tema do Sagrado Anjo Guardião, surgem várias conclusões inevitáveis. Mais fundamentalmente, como vimos, Crowley identificou a obtenção do “Conhecimento e Conversação do Sagrado Anjo Guardião” com a “Grande Obra” e com a revelação da “Verdadeira Vontade”. Como Crowley sempre falou sobre a “Verdadeira Vontade” em termos dos “desejos internos” do eu que estão velados por trás das influências distorcidas da mente consciente, então somos claramente levados a perceber que o “Conhecimento e Conversação do Sagrado Anjo Guardião” nada mais é do que tornar transparentes esses véus e que o “Sagrado Anjo Guardião” é, de fato, o “Verdadeiro Eu” do indivíduo.

Os comentários usados ​​para promover uma visão de que Crowley realmente se referia a um “Ser externo” real quando ele usou o termo são vistos como não sendo válidos. Sua advertência contra o termo “Eu Superior” refere-se meramente aos perigos de adorar os próprios véus, em vez de chegar ao “Eu Real” por trás deles, e seu uso do termo “indivíduo objetivo” é revelado pela própria carta na qual esse termo parece não se referir a “Seres externos” de forma alguma. Além do anômalo “problema de Aiwass”, que podemos justificadamente deixar de lado, os únicos comentários que realmente exigem explicação são aqueles que lidam com a ideia de “inteligência independente” e, quando percebemos que a coisa da qual a inteligência precisa ser independente é a nossa própria mente consciente, então a identificação do Sagrado Anjo Guardião com o “Eu Verdadeiro” — uma identificação que Crowley fez repetidamente em todas as suas obras publicadas

— torna-se incontestável. O fato de Crowley acreditar na existência de “seres preternaturais” e de considerar que fazer contato com eles era “a única chance de a humanidade avançar como um todo” parece estar além de qualquer disputa razoável, mas essa crença de Crowley é algo que existe totalmente à parte do sistema de realização e desenvolvimento pessoal que ele apresentou — i.e., para permitir que os indivíduos “avancem” — e totalmente à parte de seu uso do termo “Sagrado Anjo Guardião” para se referir ao objeto desse sistema, e não deve ser confundido com eles.

O “Conhecimento e Conversação do Sagrado Anjo Guardião” e a descoberta da “Verdadeira Vontade” são inteiramente equivalentes, e todos os escritos de Crowley sobre o assunto do Sagrado Anjo Guardião só podem se tornar compreensíveis nesse contexto.

Notas

[1] Para mais sobre o autor visiye http://www.erwinhessle.com/

[2] Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste trabalho, em parte ou no todo, pode ser reproduzida, transmitida ou utilizada, de nenhuma forma ou por nenhum meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou por qualquer sistema de armazenamento e recuperação de informações, sem permissão por escrito do editor, exceto para breves citações em artigos críticos, livros e resenhas.

[3] i.e. a A∴A∴

[4] i.e. a fórmula do Tetragrammaton.

[5] AL, I, 42

[6] i.e. a mente.

[7] Escrito em 1920 e publicado privadamente em 1926 como Uma Atenuação do Livro da Lei.

[8] Retornaremos à ideia do “Eu Silencioso” mais tarde neste ensaio.

[9] LXV em oposição a “L.V.X.”, é 65 representado em numerais romanos e é a numeração do Liber Cordis Cincti Serpente, um “relato das relações do Aspirante com seu Sagrado Anjo Guardião”.

[10] O assunto do “Eu Superior” também vira em mais investigações no decorrer deste ensaio.

[11] A Mensagem do Mestre Therion.

[12] AL, I, 3

[13] i.e. Crowley.

[14] i.e. a dificuldade de “evitar o obscurecimento da mente pela dúvida e especulação metafísica.”

[15] Ao qual, junto com os quatro listados, somariam 65, o número de NVIT e a numeração dada ao Liber Cordis Cincti Serpente como já notamos.

[16] Seria igualmente fácil argumentar que esse trabalho é uma anomalia duvidosa, que ele estava “perdendo a cabeça” no final de sua vida, ou que estava adaptando sua mensagem a um iniciante, ou que estava experimentando uma apresentação mais “religiosa” depois que suas tentativas anteriores e mais racionais de “Iluminismo Científico” não conseguiram atrair um grande número de adeptos, mas temos o dever de pelo menos tentar acreditar na palavra de Crowley.

[17] Veja a página 28.

[18] O sétimo elemento do “Nobre Caminho Óctuplo” budista, que se refere à “atenção plena” ou consciência das funções corporais, dos sentimentos e do conteúdo da consciência. Jeffrey Block a descreveu como “atenção plena, uma observação desapegada do que está acontecendo dentro de nós e ao nosso redor no momento presente”. A implicação de Crowley aqui é que o Sagrado Anjo Guardião — e o “Eu Verdadeiro” — não consiste em nossos pensamentos, sentimentos ou consciência, mas existe de alguma forma fora disso. Retornaremos a essa ideia depois que fizermos uma consideração aprofundada da ideia da “inteligência independente”.

[19] i.e., “Vipassana”, referindo-se à auto-observação e introspecção, enfatizando novamente que o Sagrado Anjo Guardião existe fora da mente.

[20] The Living Qabalah.

[21] Localizado em http://blazing-diamond.angelfire.com/101over.htm, acessado em 7 de março de 2010, e presumivelmente escrito pelo autor da postagem que faz referência a ele.

[22] i.e. “Esta “Auto” Introversão”.

[23] Isso não contradiz a afirmação anterior de Crowley de que o Sagrado Anjo Guardião “não deve ser encontrado por qualquer exploração de si mesmo”, uma vez que Crowley está usando o termo “si mesmo” para se referir ao que poderíamos chamar de “eu” consciente, ou o conteúdo da mente, enquanto nós estamos usando o termo para nos referirmos à investigação da natureza do verdadeiro eu. Essa distinção é examinada com mais profundidade na página 27.

[24] Desmentindo novamente a ideia de que as comunicações do Sagrado Anjo Guardião podem ser avaliadas com base no que “parece certo”.

[25] Para evitar dúvidas, “alienígena” neste contexto significa “estranho” ou “estrangeiro”, e não implica “extraterrestre”.

[26] i.e. o “Corpo de Luz”.

[27] Crowley argumenta, então, que O Livro da Lei fornece exatamente essa “prova patente”. Embora essa seja certamente uma afirmação digna de consideração cética, tal consideração está além do escopo do presente ensaio.

[28] Na página 10.

[29] Apesar dele não o ter publicado até 1929 quando apareceu como um apêndice a Magick in Theory and Practice.

[30] Para fins de completude, devemos observar que algumas pessoas do campo “objetivo” podem fazer objeções à nossa omissão de duas frases no meio do trecho acima: “Desculpe-me, mas não posso deixar as coisas assim! Algumas de minhas próprias experiências foram tão confusamente objetivas que isso simplesmente não funciona”. Embora não seja bom para as aparências, a existência dessas frases não muda o fato de que Crowley empregou o argumento “muito mais simples” no mesmo parágrafo. De fato, imediatamente após o trecho citado, ele escreveu ao seu correspondente: “Ha!  Ha!  Ha!  Suponho que você acha que me pegou em uma evasão aí!” mostrando que nem mesmo ele estava convencido pela força do apoio aos seus comentários “objetivos”. Ele continua dizendo “Não é assim, querido filho, não é assim”, mas é forçado a recorrer a comparações com “O que eu sei sobre o modo de vida de Therion?” isso é.

[31] Um romano que Crowley afirmou ter sido em uma “vida passada”.

[32] Neste contexto, pelo menos. Noutros contextos, sobretudo quando se fala de Aiwass, ele certamente pareceu afirmar isto.

[33] Ao falar sobre o Sagrado Anjo Guardião, é o próprio fato de que essas características são “determináveis” — e, portanto, não são totalmente inventadas pela própria mente do aspirante, mesmo que ele fosse o único indivíduo com a capacidade prática de observá-las e determiná-las — que permite que o aspirante tenha “conhecido e sentido algo estranho, e não apenas experimentado um vestido novo”.

[34] Embora John Symonds faça uma distinção entre “conversação” e “ditado” em sua introdução a The Confessions. Mesmo assim, Crowley afirmou ter feito perguntas a Aiwass e ter recebido respostas. No Livro de Thoth, por exemplo, ele afirmou que “quando estava escrevendo o Livro da Lei a partir do ditado do mensageiro dos Chefes Secretos, ele parece ter feito uma pergunta mental, sugerida pelas palavras do Capítulo I, versículo 57. . . E aí veio uma resposta interpolada”.

[35] Ver o The Confessions de Aleister Crowley, Capítulo 65.

[36] No capítulo 6 de O Equinócio dos Deuses, Crowley pergunta: “quem, pode-se perguntar, foi Aiwass? É o nome dado por W. a P. como o de seu informante”, sendo “W.” Rose Crowley e “P.” sendo Aleister.

[37] i.e. Elaine Simpson

[38] The Confessions of Aleister Crowley, capítulo 58.

[39] Na Página 6.

[40] i.e. as palavras do Livro da Lei.

[41] Embora ele claramente não o tenha feito, pois, como vimos, Rose Crowley aparentemente conseguia receber comunicações dele e Elaine Simpson conseguia invocá-lo diretamente.

[42] Como muitas vezes acontece, é esclarecedor considerar o contexto em que este comentário foi feito. Seu correspondente perguntou: “Por que eu deveria dedicar tanto do meu valioso tempo a assuntos como Magick e Yoga?”, ao que ele respondeu: “Seu tempo certamente não é valioso a menos que o universo tenha um significado e, além disso, a menos que você saiba qual é esse significado — pelo menos aproximadamente —, é um milhão de vezes maior do que aquele que você encontrará latindo para a árvore errada. Em primeiro lugar, consideremos esta questão do significado do universo. Ele é sua própria evidência de design, e esse design é um design inteligente. Não pode haver nenhuma dúvida possível sobre a existência de algum tipo de inteligência, e esse tipo é muito superior a qualquer coisa que conhecemos como humano”. A invocação de Crowley do argumento do design é curiosa. No que diz respeito à evolução da vida, Darwin e seus sucessores — como Richard Dawkins em A Escalada do Monte Improvável — destruíram o argumento ao revelar a seleção natural como o único mecanismo conhecido capaz de resolver o problema da improbabilidade e explicar o surgimento do design; a postulação de um designer inteligente, na verdade, apenas agrava o problema da improbabilidade. As teorias modernas da inflação cosmológica sugerem que a estrutura e a ordem observadas no universo surgiram de flutuações quânticas na região inflacionária, “semeando” a formação de estruturas discretas, o que também contraria o conceito de um projetista. Se — como esse trecho parece sugerir — a crença de Crowley em “inteligências præternaturais” se baseia fortemente no argumento do design, então essa é uma crença que devemos tratar com um alto grau de ceticismo.

[43] E, de fato, Crowley nunca relaciona “tais Seres” com a mesma “ordem” de Seres à qual ele afirma que o Sagrado Anjo Guardião pertence no trecho “indivíduo objetivo”, mas muitos Thelemitas fazem essa conexão sem fundamento de qualquer forma.

[44] Por outros humanos, pelo menos.

[45] E que Crowley denuncia como “uma heresia condenável e uma ilusão perigosa”, como já vimos.

[46] Compare isto com os nossos comentários em relação ao “Eu Superior” na página 11.

[47] E também ecoando sua carta no The Temple of Solomon the King, quase quarenta anos antes: “Abramelin o chama de Sagrado Anjo Guardião. . . Os teosofistas o chamam de Eu Superior, Observador Silencioso. . . A Aurora Dourada o chama de Gênio. . . A invocação do Augœides é tudo.”

[48] Na Página 6.

[49] Socrates: fictions of a philosopher.

[50] i.e. “sua consciência corporal, mental e astral”.

[51] Veja a página 6 para um exemplo de Crowley usando “Deus” para se referir ao “Próximo Passo”, e identificando-o com o “Sagrado Anjo Guardião”, e a página 5 para um exemplo dele usando a palavra “Adonai” — que significa o mesma coisa — da mesma maneira.

[52] De acordo com a nota de rodapé anterior, podemos acrescentar “Gênio”, “Augœiedes” e ‘Sagrado Anjo Guardião’ a essa lista.

[53] Esta ligação com o Sol é ampliada por C.S. Jones no seu ensaio Stepping out of the Old Æon into the New, também publicado no “Blue Equinox”.

[54] LXV, III, 32

[55] O fato de esse comentário ser sobre AL, III, 60, “Não há lei além de Faz o que tu queres”, fornece mais evidências da identificação de Crowley do Conhecimento e Conversação do Sagrado Anjo Guardião com a revelação da “Verdadeira Vontade”.

[56] AL, I, 9

[57] Publicado em 1938.

[58] Ou, como diz o capítulo “Steeped Horsehair” em O Livro das Mentiras, “a mente, nunca à vontade, rangia ‘eu’. … o homem [é] apenas ele mesmo quando perdido para si mesmo na Carruagem”.

[59] Demonstrando novamente que Crowley não havia, mesmo em Magick Without Tears, abandonado essa mesma ideia de alcançar o autoconhecimento percebendo através dos “véus” da mente que ele vinha expressando consistentemente nos quarenta anos anteriores, apesar dos comentários do “indivíduo objetivo” em outra carta.

[60] i.e. o “Macaco de Thoth”, Leah Hirsig.

[61] i.e. a “Abadia de Thelema” em Cefalù, Sicília.

[62] “Progradior”, traduzido aproximadamente como “Eu avanço”, era o “lema mágico” de Frank Bennett na A∴A∴

[63] i.e. o “Eu Verdadeiro” ou o “Eu Silencioso”.

[64] Aqui Crowley está identificando a “Verdadeira Vontade” com a vontade da “mente subconsciente”, com a vontade do “Sagrado Anjo Guardião”.

[65] Uma vez que é “o verdadeiro Movimento do teu Ser mais íntimo” e “apenas o aspecto dinâmico do eu”.

[66] i.e. a “ausência de sua consciência corporal, mental e astral” descrita em Liber Samekh.

[7] Isto é, Magick in Theory and Practice foi publicado em 1929. Muito do que foi escrito consideravelmente antes.

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Link para o original: https://www.erwinhessle.com/writings/pdfs/The_Holy_Guardian_Angel.pdf

 

 


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