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Texto de Frater Entelecheia. Traduzido por Caio Ferreira Peres.
Uma das grandes vantagens da cerimônia religiosa é que ela mistura elementos dogmáticos e criativos. O dogma vem do roteiro do ritual, da autoridade por trás dele e da tradição sedimentada que ele representa. A dimensão criativa vem de qualquer toque estético trazido à cerimônia, seja pelos ritualistas individuais ou pela comunidade. Temos a tendência de pensar que o aspecto dogmático atrai os tipos mais conservadores e o aspecto criativo atrai os indivíduos mais liberais ou artísticos, mas a verdade é que a maioria dos seres humanos deseja ambos, pelo menos em alguma medida.
Aqueles que, como eu, foram criados na Igreja Católica Romana experimentaram a interação de ambas as abordagens. As igrejas católicas romanas tendem a ser cavernosas, com tetos altos e abobadados. Algumas das mais extraordinárias podem dar a sensação de estar em florestas de pedra com a luz entrando. Minha própria igreja era muito mais humilde, mas me lembro de sempre ficar impressionado com os vitrais. Mesmo agora, sinto-me muito atraído por cores em cerimônias religiosas, e a maior parte da minha arte oculta tende a usar muitas cores. Também me lembro de que o cheiro da igreja era reconfortante, bem como a frieza da pia batismal de mármore e da água nela contida. Em suma, foi uma experiência sensorial tão envolvente quanto uma experiência da liturgia da Igreja.
Há muito tempo as pessoas sabem da relação entre beleza e admiração religiosa. Basta olhar para as catedrais da Europa: projetos multimilionários que levariam mais de uma vida para serem concluídos, feitos repetidamente ao longo de mais de mil anos. Mas qual é exatamente a conexão entre a experiência estética e a experiência religiosa? O que estamos perdendo quando deixamos de enfatizar a importância da beleza?
Tomo como referência o grande poeta e filósofo kantiano Friedrich Schiller, que em suas Cartas sobre a Educação Estética do Homem declarou que a experiência da beleza consiste no sentimento que surge quando nossos poderes estão em harmonia uns com os outros. Para Schiller, havia dois poderes fundamentais da mente: o impulso dos sentidos e o impulso da forma. Enquanto o impulso dos sentidos serve o conteúdo sensual, o impulso da forma aplica conceitos a ele. Você poderia pensar nisso como algo semelhante aos papéis desempenhados na experiência por Nuit e Hadit.
Normalmente, o impulso dos sentidos e o impulso da forma entram em conflito de várias maneiras. Por exemplo, lutamos para entender o mundo que nos é apresentado por nossos sentidos. A história humana e os eventos atuais nos mostram que a ignorância e a arrogância são as normas. Schiller descreveria isso como o impulso dos sentidos e o impulso da forma em conflito um com o outro. Ao tentarmos resolver algum problema prático, podemos começar a ter uma sensação de futilidade, como se nossas intenções não estivessem realmente presentes nas coisas. Isso dá origem à alienação. Quando fazemos uma descoberta, a futilidade e a alienação dão lugar à euforia.
Entretanto, na experiência de apreender algo belo, o ser se entrega de tal forma que se sente como o meio ideal para a expressão do espírito humano. Schiller se referiu a isso como “pedra silenciosa” tornando-se “pedra significativa”. A matéria morta é subitamente vista como algo vivo e vibrante com possibilidades. Se você é um artista, a tinta e o tom, por exemplo, não são mais obstáculos à sua visão, mas sim os veículos ideais de expressão. Em outras palavras, a matéria se torna um meio artístico. Precisamente quem ou o que está sendo expresso pode parecer misterioso nesse momento, pois a natureza nos pega pela mão e nos leva a alturas que transcendem a mera intenção subjetiva. O senso de autoria ou propriedade é apagado de uma forma não muito diferente do apagamento do ego quando alguém atravessa o Abismo para se juntar à vida universal.
Nesse encontro natural de sentido e forma, é como se o mundo material tivesse sido criado por uma mente como a nossa, para uma mente como a nossa. Nesse momento, de acordo com Schiller, a mente naturalmente começa a “brincar”. Em termos simples, o sentido e a forma começam a fuder. Podemos pensar nisso em uma analogia com Nuit e Hadit se unindo para formar a Criança no âmago de nossos próprios seres. A carta do Sol no baralho do tarô de Thoth captura adequadamente a joie de vivre resultante.
Schiller se esforça para enfatizar que a estimativa da beleza é meramente a imagem de nossos poderes reconciliados, não a reconciliação em si. É provavelmente por isso que a experiência da beleza (seja a beleza natural ou a artística) tende a nos fazer ansiar positivamente pelo futuro. Pense na última vez em que você terminou um ótimo livro ou viu um filme que o emocionou particularmente. Talvez você tenha experimentado a sensação de que sua vida precisava mudar de alguma forma, embora não estivesse claro exatamente como ela deveria mudar. A beleza nos oferece uma promessa de um futuro melhor—no qual nossas expectativas ou intenções correspondem ao que é—embora os detalhes desse futuro sejam deixados indeterminados. A arte não é um livro de autoajuda. Somos jogados de volta em nossos próprios recursos para descobrir como mudar nossas próprias vidas para melhor. É por isso que Schiller acreditava que a beleza era a imagem da liberdade adiada.
Mas podemos dizer, de modo geral, como esse futuro deve ser. Os seres humanos parecem saber instintivamente que a morada natural do divino é o que é belo. A união da terra e do céu, que representa a habitação do espírito, é exteriormente bela. É por isso que a verdade eterna é revelada em beleza. É por isso que a Nova Jerusalém em Apocalipse é descrita como feita de pedras preciosas de muitas cores. O fato de que a morada final de Deus com os seres humanos no final dos tempos deva ser extremamente bela é natural, porque essa é a única configuração que a matéria poderia ter para ser um lar adequado para Deus.
De um ponto de vista mais prático, poderíamos dizer que a beleza desperta em nós a possibilidade de sermos deuses em nossos próprios mundos. A beleza é um convite para recriar o primeiro capítulo de Gênesis, no qual Deus transforma a matéria em um belo lar para os seres humanos. Lembre-se de que a palavra hebraica para casa é Beth. Beth é a segunda letra do alfabeto hebraico. Ela está associada ao Atu I, o Mago. Sobre essa carta, Crowley diz que ela “representa a Sabedoria, a Vontade, a Palavra, o Logos pelo qual os mundos foram criados”. (Livro de Thoth, p. 69) A beleza está nos estimulando a resgatar de dentro de nós essa mesma força que ordena o cosmos, a entrar em alinhamento adequado com ela e a falar e agir de forma a trazer o mundo ao nosso redor para o equilíbrio e a expressão. Estar em alinhamento com essa força é fazer nossas vontades. A fala que transforma uma pedra silenciosa em uma pedra significativa é um encantamento. A beleza é um convite para fazer magia.
Crowley descreve a magia como “a arte da própria vida” e com boas razões. A magia é a união do microcosmo e do macrocosmo, a “saudação da terra e do céu”, que é o objetivo ostensivo da própria Missa Gnóstica. Mas, como vimos, há uma tradição de ver tanto a experiência da beleza quanto o objetivo da produção artística em termos semelhantes. Crowley também descreve a magia como “a Ciência e a Arte de fazer com que a mudança ocorra em conformidade com a Vontade”. Embora nem todos os indivíduos tenham os dons para se destacar na arte no sentido estrito, cada um de nós é dotado de uma vontade individual que é apenas uma particularização da energia que impulsiona a produção e a reprodução do cosmos. Conhecer essa vontade e remover quaisquer obstáculos à sua expressão é tanto o dever quanto o prazer único de cada indivíduo. Isso é idêntico à transformação da própria vida em uma morada ou “casa” significativa e bela. Estamos considerando a magia agora não como uma mera coleção de rituais, mas como um modo de vida. A experiência da beleza é um convite para seguir esse caminho.
No entanto, a magia, no sentido estrito, pode ser o centro a partir do qual ocorre essa transformação progressiva do mundo de alguém—mas somente se tivermos o cuidado de realizar nossos rituais corretamente, com tanta beleza quanto alegria. Sob essa perspectiva, a Missa Gnóstica não é meramente uma cerimônia religiosa, mas sim um convite aos congregantes e aos ritualistas para que mudem suas vidas de alguma forma, em seus próprios termos, para torná-las mais belas de todas as maneiras que puderem. Não se trata de uma mera metáfora para o sexo, mas sim de uma sugestão de que toda a vida é um ritual sexual—ou poderia ser vista dessa forma—e que vale a pena fazê-lo bem e não mal. Devemos ter tanto cuidado ao fazer o ritual quanto teríamos com nossa própria aparência quando sabemos que estaremos na presença da pessoa amada. Dessa forma, a Missa Gnóstica é transformada de uma mera observância pública em uma oportunidade de inspirar todos nós a tornar nossas vidas templos para a habitação do Espírito Santo.
Frater Entelecheia é membro da O.T.O. que mora em Seattle, Washington.
Link para o original: https://thelemicunion.com/why-beauty-essential-magick-life/
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