Este texto foi lambido por 139 almas esse mês
por Aleister Crowley.
Excerto de “The Stratagem and other Stories” (1929)
Tradução Natália Naraani
Os companheiros de viagem desceram para a areia escaldante da plataforma. Era um entroncamento ferroviário, um daqueles lugares onde não há cidade por quilômetros e onde os recursos da ferrovia e dos arredores são inferiores aos de uma estação de quarentena comum.
O primeiro a descer foi um homem inconfundivelmente inglês. Já reclamava da administração enquanto retirava sua bagagem de mão do vagão, com a ajuda do companheiro.
— É absolutamente uma vergonha para a civilização — dizia ele — que não haja conexão em uma estação como esta. Uma estação importante, senhor, deixe-me dizer-lhe, o pivô — se me permite a metáfora — da linha que atende praticamente todo o sul de Muckshire, ao sul do Tream. E temos, com certeza, pelo menos uma hora de espera, e Deus sabe que é mais provável que sejam duas, talvez três. E, é claro, não há sequer um bar mais próximo do que em Fatloam; e, se formos até lá, voltaremos apenas para encontrar mais um atraso! Uma desgraça absoluta para a ferrovia que permite isso, para o país que tolera isso, para a civilização que admite que tais coisas aconteçam! Aconteceu comigo no ano passado, senhor, embora naquela ocasião minha espera tenha sido de apenas meia hora. Mas escrevi uma forte carta de meia coluna para o The Times sobre o assunto, e que diabos, se não recusaram publicá-la! Claro, nossa imprensa independente, etc.; eu deveria saber. Digo-lhe, senhor, este país é governado por uma panelinha, uma panelinha imunda, uma quadrilha de judeus, escoceses, irlandeses, galeses… e onde está o bom e velho inglês de verdade? No buraco, senhor, no buraco.
O trem deu um solavanco para trás e seguiu viagem, imitando o único funcionário da estação, que, postado diante do vagão do guarda, assistira sem emoção à arremetida de duas malas sobre a plataforma, como se fossem pedras cuspidas por um vulcão. Após contemplá-las por um momento, fechou a boca num muxoxo e se afastou, arrastando os pés, em direção à sua refeição, que o esperava numa casinha isolada a uns trezentos metros dali.
Em nítido contraste com o inglês — de bigodes espessos sobre um rosto pálido, marcado por anéis vermelhos profundos no pescoço e na testa, um prenúncio de obesidade e um terno completo de viagem — estava o pequeno e ágil homem de barba pontuda, a quem o destino primeiro lançara no mesmo compartimento e, agora, na mesma hora de exílio de todos os seus semelhantes.
Seus olhos eram surpreendentemente negros e ferozes; a barba, grisalha; o rosto, profundamente vincado e evidentemente queimado pelos sóis tropicais. Mas aquela mesma face também exprimia inteligência, força e um engenho que o tornariam um companheiro ideal em uma missão desesperada ou na defesa de uma aldeia condenada. No dorso da mão esquerda, trazia uma cicatriz espessa e irregular. Apesar de tudo isso, vestia-se com uma correção e um asseio notáveis, circunstância que, embora seu inglês fosse mais puro que o de seu companheiro de infortúnio, fez este último suspeitar secretamente que ele fosse francês.
Apesar da discrição no vestir e da compostura impecável, o brilho sombrio daqueles olhos, pequenos pontos negros sob sobrancelhas cerradas, provocava no inglês certo desconforto. “Definitivamente, não é alguém com quem se queira brigar”, pensou Bevan. No entanto, considerando-se um homem viajado — Boulogne, Dieppe, Paris, Suíça e até Veneza —, não possuía aquele insularismo de que os estrangeiros frequentemente acusavam os ingleses, e tentou puxar conversa durante a viagem. O pequeno homem, porém, se mostrara um péssimo companheiro: taciturno ao extremo, econômico nas palavras, acenando com a cabeça apenas o necessário para não ser descortês e demonstrando maior afeição por seu cachimbo do que pelo gênero humano. “Um homem com um segredo”, pensou Bevan.
O trem já desaparecera da estação e o funcionário sumira no horizonte.
— Lugar deserto — comentou Bevan, cujo nome era Bevan. — Especialmente com este calor insuportável. Veja bem, no verão de 1911, não foi tão ruim assim. Sabe, lembro-me de uma vez em Boulogne…
Interrompeu-se bruscamente, pois o homem moreno, fincando a ponta da bengala repetidamente na areia e franzindo as sobrancelhas, pareceu tomar uma súbita decisão.
— O que você sabe sobre calor? — gritou ele, cravando os olhos em Bevan com a intensidade de um demônio. — O que você sabe sobre desolação?
Pegando-o de surpresa, Bevan ficou sem resposta.
— Espere! — exclamou o outro. — E se eu lhe contasse minha história? Não há ninguém aqui além de nós dois.
Ele encarou Bevan com um olhar ameaçador, como se quisesse ler sua alma.
— Você é um homem de confiança? — disparou, interrompendo-se abruptamente.
Em qualquer outra circunstância, Bevan certamente recusaria tornar-se confidente de um estranho; mas ali, na solidão, sob o calor abrasador, entediado pelo comportamento anterior do companheiro — e com uma certa desconfiança de como este reagiria a uma negativa —, acabou por responder afirmativamente.
Com a imponência de um carvalho, Bevan declarou:
— Nasci um cavalheiro inglês e espero nunca ter feito nada que desonrasse essa condição.
Após uma breve pausa, acrescentou:
— Sou juiz de paz.
— Eu sabia! — exclamou o outro, exaltado. — A mente treinada na lei será, acima de todas, aquela capaz de compreender minha história. Jure, então — continuou com súbita gravidade —, jure que nunca dirá a uma alma viva uma única palavra do que estou prestes a contar-lhe. Jure pela alma de sua mãe morta!
— Minha mãe está viva — retrucou Bevan.
— Eu sabia! — exclamou seu companheiro, e um grande e estranho olhar de piedade quase divina iluminou seu rosto queimado de sol. Era a mesma expressão que se vê em muitas estátuas de Buda: uma compaixão impessoal, transcendental.
— Então jure pelo Lord Chancellor.
Bevan ficou ainda mais convencido de que o estranho era francês. No entanto, prestou o juramento solicitado sem hesitação.
— Meu nome — disse o outro — é Duguesclin. Isso já lhe diz algo? — perguntou de modo enfático. — Esse nome lhe traz alguma lembrança?
— Nenhuma.
— Eu sabia! — disse o homem dos trópicos. — Então terei que lhe contar tudo. Em minhas veias ferve o sangue ardente do maior dos guerreiros franceses, e minha mãe era descendente direta da Donzela de Saragoça.
Bevan ficou surpreso e deixou transparecer.
— Após o cerco, senhor, ela se casou honradamente com um nobre — disparou Duguesclin. — Acha que um homem da minha linhagem permitiria que um estranho erguesse a sobrancelha sequer contra a memória de minha bisavó?
O inglês protestou, garantindo que tal pensamento nunca lhe passara pela cabeça.
— Suponho que sim — prosseguiu o outro, mais calmo. — Tanto mais porque sou um assassino condenado.
Bevan ficou verdadeiramente alarmado.
— E tenho orgulho disso! — continuou Duguesclin. — Aos vinte e cinco anos, meu sangue era ainda mais ardente do que hoje. Casei-me. Quatro anos depois, encontrei minha esposa nos braços de um vizinho. Matei-o. Matei-a. Matei nossos três filhos, pois víboras só geram víboras. Matei os criados; eram cúmplices do adultério ou, se não eram, não deveriam testemunhar a vergonha de seu senhor.
Bevan sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha.
— Matei os gendarmes que vieram me prender — prosseguiu Duguesclin, impassível —, meros mercenários a serviço de uma república corrupta. Incendiei meu castelo, determinado a perecer nos escombros. Infelizmente, um pedaço de alvenaria caiu e atingiu meu braço. Minha espingarda escapou das mãos. O acidente foi notado, e fui resgatado pelos bombeiros.
Ele fez uma pausa e, com um olhar de aço, acrescentou:
— Decidi viver. Era meu dever para com meus ancestrais continuar a linhagem da qual eu era o único descendente direto. É em busca de uma esposa que estou viajando para a Inglaterra.
Ele parou e contemplou a paisagem com um ar altivo, como um novo Robinson Crusoé. Bevan reprimiu o comentário óbvio sobre o desfecho surpreendente da narrativa do francês. Limitou-se a perguntar:
— Então você não foi guilhotinado?
— Não, senhor! — retrucou o outro, apaixonadamente. — Naquela época, a pena de morte não era aplicada na França, embora não tivesse sido oficialmente abolida. Posso dizer — acrescentou, com o orgulho de um legislador — que minha ação fortaleceu consideravelmente a campanha que levou à sua reintrodução.
Bevan engoliu em seco.
— Não, senhor, não fui guilhotinado. Fui condenado à prisão perpétua na Ilha do Diabo.
Ele estremeceu.
— Você consegue imaginar aquela ilha maldita? Consegue pintar em sua mente um décimo de seu horror? Até mesmo os pesadelos são incapazes de evocar aquele inferno, aquele limbo dos condenados. Minha linguagem é forte, senhor, mas nenhuma linguagem pode descrever aquele inferno. Pouparei você da descrição.
Duguesclin respirou fundo e prosseguiu, com um fervor febril:
— Areia, vermes, crocodilos, serpentes venenosas, malária, mosquitos, febre, sujeira, trabalho exaustivo, icterícia, fome, pântanos pútridos exalando morte, árvores envenenadas por seu próprio solo fétido, um calor insuportável, contínuo, sufocante, intolerável, insuportável (como o Daily Telegraph descreveu na época do caso Dreyfus). Nenhuma brisa, apenas o fedor pestilento da lagoa. Um calor que transformava a pele em um mar revolto de irritação, onde até as picadas de mosquitos e centopeias eram um alívio. O trabalho interminável sob o sol escaldante, o chicote para qualquer infração, mesmo a mais insignificante das regras prisionais, ou por um deslize nas normas de polidez para com nossos carcereiros — homens apenas um grau menos condenados do que nós mesmos.
— Mas tudo isso era nada!
Seu olhar faiscou.
— A única diversão dos administradores de um lugar como aquele é a crueldade; e seu próprio desconforto os torna mais engenhosos do que todos os inquisidores da Espanha, do que árabes em seus delírios religiosos, do que birmaneses e shans em seu ódio budista contra todos os homens vivos, do que até mesmo os chineses em sua fria volúpia pela tortura. O governador era um profundo psicólogo; não havia canto da mente que ele não sondasse, apenas para encontrar um meio de torcê-la em sofrimento.
Duguesclin cerrou os punhos.
— Lembro-me de um prisioneiro que gostava de manter sua pá brilhando. Era obrigatório que as pás fossem mantidas limpas, uma tortura por si só naquele ambiente, onde o mofo crescia sobre tudo quase tão rápido quanto a neve cai em climas mais felizes. Pois bem, o governador descobriu que esse homem tinha prazer em ver o brilho do sol no aço — e proibiu-o de limpar a pá.
Duguesclin fez uma pausa dramática.
— Um detalhe insignificante, talvez? Você não sabe o que os prisioneiros pensam dos detalhes! O homem enlouqueceu completamente. Para ele, aquela refinada crueldade era a prova final da perversidade intrínseca e inerente do universo. A insanidade é a consequência lógica de uma crença assim.
Ele respirou fundo e baixou a voz.
— Não, senhor, pouparei você da descrição.
Bevan achou que já houvera descrição suficiente. Em seu modo de pensar tipicamente inglês, supôs que Duguesclin estava exagerando — como sabia que os franceses costumavam fazer. Mas apenas murmurou:
— Deve ter sido terrível.
Ele já se arrependia profundamente de ter encorajado a conversa. Não era uma sensação agradável estar sozinho em uma plataforma isolada com um confesso homicida múltiplo que, provavelmente, só escapara mediante uma nova e extensa série de crimes.
Duguesclin, porém, prosseguiu:
— Mas você pergunta como escapei. Essa, senhor, é a história que proponho contar-lhe. Minhas palavras anteriores foram apenas um prelúdio; não têm relevância ou interesse, eu sei, mas eram necessárias, já que você demonstrou tão gentilmente interesse por minha personalidade, minha história familiar — heroica (se posso dizer) e trágica (ninguém negará).
Bevan refletiu que seu interlocutor devia ser um psicólogo pior do que o governador da Ilha do Diabo era um bom psicólogo, pois ele nem expressara nem sentira o menor interesse por nenhuma dessas coisas.
Duguesclin se inclinou ligeiramente para a frente.
— Pois bem, senhor, à minha história! Entre os condenados, havia um prazer universal, um prazer que só cessaria com a morte ou com a perda da razão, um prazer que o governador poderia (e de fato restringia), mas não poderia tirar. Refiro-me à esperança — a esperança de escapar. Sim, senhor, essa chama (sozinha entre todos os antigos fogos) ardia neste peito — e no de meus companheiros.
Ele ergueu o olhar, solene.
— E nisso, não me apoiava tanto em mim mesmo, mas em outro. Não sou dotado de uma inteligência excepcional — prosseguiu, com modéstia. — Minha avó era inglesa, uma Higginbotham, uma das Higginbothams de Warwickshire.
(“O que isso tem a ver com sua estupidez?”, pensou Bevan.)
— E a maioria dos meus companheiros não apenas carecia de inteligência, mas também de educação. A única exceção notável era o grande Dodu.
Ele interrompeu-se abruptamente e olhou para Bevan.
— Ha! Você estremeceu?
Bevan, na verdade, não se movera um milímetro, continuando a exibir a mais absoluta indiferença.
Duguesclin continuou:
— Sim, você não está enganado. Era de fato o mundialmente famoso filósofo, o descobridor do Dodium, o mais raro dos elementos conhecidos, supostamente existente apenas na trigésima milésima quinta parte de um miligrama na estrela chamada γ Pegasi. Sim, senhor, foi Dodu quem demoliu o processo lógico da obversão e reduziu o quadrante das oposições à condição do quadrado britânico em Abu Klea.
Duguesclin fez uma pausa para avaliar a reação de Bevan.
— Mas isso você talvez não soubesse: embora civil, Dodu era o maior estrategista da França. Foi ele quem, em seu gabinete, planejou os movimentos dos exércitos nas Ardenas. O esquema de fortificações de Lunéville, em 1890, foi fruto exclusivo de seu gênio. Por essa razão, o governo hesitou em condená-lo, embora a opinião pública clamasse por sua punição. Você deve lembrar-se do caso: depois de provar, por meio de um tratado filosófico, que mulheres acima dos cinquenta anos eram um fardo inútil para o Estado, ele demonstrou sua convicção decapitando e devorando a própria mãe viúva.
Duguesclin parou, observando Bevan, que, embora petrificado por dentro, manteve uma expressão neutra.
— Consequentemente, a intenção do governo era facilitar sua fuga durante a viagem e continuar a empregá-lo sob um nome falso em um apartamento discreto em um bairro completamente diferente de Paris. No entanto, o governo caiu de repente; um rival o destronou, e sua sentença foi aplicada com tanta severidade quanto se ele fosse um criminoso comum.
Duguesclin fez uma pausa significativa antes de continuar:
— Era a esse homem, naturalmente, que eu olhava para planejar nossa fuga. Mas, por mais que eu tentasse, não conseguia encontrar um meio de me comunicar com ele. No entanto, ele deve ter adivinhado meus desejos, pois, um dia, cerca de um mês após sua chegada à ilha (eu já estava lá havia sete meses), ele tropeçou e caiu como se tivesse sido atingido pelo sol, exatamente quando eu estava por perto. No chão, conseguiu apertar meu tornozelo três vezes. Capturei seu olhar — ele insinuou, mais do que executou, o sinal de reconhecimento dos maçons.
Duguesclin inclinou-se para Bevan e perguntou:
— Você é maçom?
Bevan inflou o peito.
— Sou Ex-Grão-Mestre Provincial Adjunto Portador da Espada desta província — respondeu ele. — Fundador da Loja 14.883, “Boética”, e da Loja 17.212, “Colenso”. Além disso, sou Ex-Grão Haggai do Capítulo Provincial.
Duguesclin bateu palmas, entusiasmado.
— Eu sabia! — exclamou.
Bevan começou a sentir um desconforto crescente. Como esse homem sabia tanto sobre ele? Sabia que ele era juiz de paz, sabia que sua mãe estava viva e agora parecia conhecer suas posições maçônicas. Teria esse francês alguma intenção oculta? Estaria preparando terreno para pedir um empréstimo? Ou talvez, pior, para chantageá-lo? Será que sabia… daquilo que aconteceu em Oxford? Ou do caso da Edgware Road? Ou da história com Esme Holland? Ele decidiu ficar ainda mais atento.
Duguesclin, alheio ou indiferente à paranoia de Bevan, prosseguiu:
— Você pode imaginar minha alegria ao receber e responder a esse sinal inequívoco de amizade! Naquele dia, não houve mais oportunidades de troca de palavras, mas no dia seguinte eu o observei atentamente e percebi que ele arrastava os pés de maneira irregular. Ha! pensei, arrastado longo, um passo normal curto. Imitei-o imediatamente, formando a letra A em código Morse. Sua mente alerta compreendeu instantaneamente meu significado; ele ajustou seu código (que era de um tipo diferente) e respondeu com um B no meu próprio sistema. Respondi com um C; ele retornou com um D. A partir desse momento, podíamos conversar fluentemente e livremente como se estivéssemos no terraço do Café de la Paix, em nossa amada Paris.
Duguesclin fez uma pausa para acender o cachimbo e continuou:
— No entanto, conversar dessa maneira era extremamente demorado. Durante toda a marcha até o trabalho, ele conseguiu apenas me dizer: “Fuga em breve — se Deus quiser.”
Duguesclin sorriu, melancólico.
— Antes de seu crime, ele era ateu. Foi um alívio saber que a punição lhe trouxera arrependimento.
Bevan, por sua vez, também sentiu certo alívio. Nunca admitiria oficialmente que um maçom francês pudesse ser um verdadeiro maçom, mas que um deles tivesse se arrependido era algo que lhe proporcionava uma satisfação quase pessoal. Começou a sentir simpatia por Duguesclin e a acreditar em sua história. O crime que cometera fora atroz, sem dúvida, mas não era ele um francês? E os franceses são dados a esses excessos. Além disso, franceses eram, afinal, homens como os outros. Bevan sentiu uma onda de benevolência e lembrou-se de que, além de homem, era um cristão.
Ele decidiu pôr o francês à vontade.
— Sua história me interessa imensamente — disse. — Simpatizo profundamente com seus sofrimentos e injustiças. Estou sinceramente feliz por você ter escapado, e peço-lhe que continue a narrar suas aventuras.
Duguesclin não precisou de mais incentivo. Sua atitude, antes marcada por um tédio resignado ao descer do trem, agora era animada, vibrante, ardente. Ele se deixava levar pela intensidade de suas memórias apaixonadas.
— No segundo dia, Dodu conseguiu me explicar sua ideia. “Se fugirmos, deve ser por meio de um estratagema”, ele sinalizou. Era uma observação óbvia, mas Dodu não tinha motivos para avaliar minha inteligência muito altamente. “Por um estratagema”, repetiu com ênfase.
— “Tenho um plano”, continuou. “Levará vinte e três dias para comunicá-lo, caso não sejamos interrompidos; entre três e quatro meses para prepará-lo; duas horas e oito minutos para executá-lo. É teoricamente possível escapar pelo ar, pela água ou pela terra. Mas, como somos vigiados dia e noite, cavar um túnel até o continente seria inútil; não temos aviões nem balões, nem meios para fabricá-los. Se, no entanto, conseguirmos alcançar a margem do mar — e, se nos mantivermos em linha reta, chegaremos inevitavelmente à costa — e encontrarmos um barco desprotegido, e conseguirmos evitar qualquer alarme, então basta cruzarmos o oceano e alcançarmos uma terra onde não sejamos conhecidos ou, alternativamente, disfarçarmo-nos e retornarmos à Ilha do Diabo como marinheiros náufragos. Esta última ideia seria tola. Você dirá que o governador saberia que Dodu não seria tão tolo, mas ele também saberia que Dodu não seria tão tolo a ponto de tentar explorar esse fato. E ele estaria certo, maldito seja!”
Duguesclin apertou os dentes com força.
— Você não faz ideia do prazer que dá xingar alguém em código Morse com os pés!
Ele inspirou profundamente e continuou:
— Dodu explicou-me que estava me contando essas obviedades por várias razões: (1) para medir minha inteligência através de minha reação a elas; (2) para garantir que, se falhássemos, a culpa seria da minha estupidez e não de sua negligência em me informar sobre cada detalhe; (3) porque adquirira o hábito professoral como outro homem poderia adquirir gota.
Duguesclin deu um sorriso irônico.
— Mas, mal havia ele traçado os contornos de seu plano, fomos interrompidos. No quarto dia de nossa comunicação, ele apenas sinalizou repetidamente: “Espere. Observe-me!”
Duguesclin fez uma pausa dramática e baixou a voz.
— Naquela noite, ele manobrou para ficar na retaguarda da fila de condenados e então me transmitiu: “Há um traidor. Um espião. Daqui em diante, precisarei encontrar uma nova maneira de lhe contar os detalhes do plano. Pensei em tudo. Vou falar por meio de enigmas, que nem mesmo você será capaz de entender sem todas as peças — e a chave. Grave em sua memória cada palavra que eu disser.”
Duguesclin fez uma pausa e, com olhos faiscantes, concluiu:
— A partir daquele momento, minha vida não seria mais a mesma.
No dia seguinte — prosseguiu Duguesclin —, Dodu sinalizou: “Lembra-se da tomada do velho moinho pelos prussianos em 1870? Meu problema é que preciso lhe dar a estrutura do enigma, o que não posso fazer em palavras. Mas observe a linha da minha pá e as marcas do meu calcanhar na areia, e faça uma cópia.”
Fiz isso com a máxima precisão e obtive este desenho.
Duguesclin puxou um caderno do bolso e, com rápidos traços, esboçou uma figura enigmática diante do atento Bevan.
— No momento da minha autópsia — disse ele solenemente —, este símbolo será encontrado gravado em meu coração.
Bevan observou o desenho com seriedade. Tratava-se de um polígono irregular de oito lados, contendo vinte e sete cruzes dispostas em grupos de três, e, em um canto, uma cruz bem maior e duas menores, desalinhadas.
— Esta última marca representa o fator “acaso” — explicou Duguesclin. — E você poderá captar um vislumbre da verdade se refletir que oito é o cubo de dois e vinte e sete é o cubo de três.
Bevan franziu o cenho e fez um leve aceno de cabeça, como se tivesse entendido.
— Na marcha de retorno — prosseguiu Duguesclin —, Dodu enviou-me um novo enigma: “Conte as letras no nome do discípulo favorito de Aristóteles.”
Pensei por um momento e compreendi que ele não se referia a Aristóteles. Queria me fazer pensar em Platão e, portanto, em Sócrates, o que me levaria a Alcibíades. Assim, contei: A-L-C-I-B-I-A-D-E-S — dez letras. E assim frustrei o espião por aquele dia.
No dia seguinte, Dodu sinalizou “Rahu”, com grande ênfase. Isso significava que a próxima eclipse lunar seria o momento certo para nossa fuga. Depois disso, passou o resto do dia falando amenidades, para adormecer as suspeitas do espião.
Seguiram-se três dias de silêncio: ele estava no hospital, com febre.
No quarto dia, recebi uma nova mensagem: “Descobri que o espião é um maldito tenente viciado em ópio de Toulon. Agora o temos! Ele não conhece Paris.
Duguesclin interrompeu-se e olhou para Bevan com um brilho enigmático nos olhos.
— Agora vem o golpe de mestre de Dodu — disse ele. — Ele sinalizou: “Desenhe uma linha da Gare de l’Est até o Arco do Triunfo e erga sobre ela um triângulo equilátero. Pense no nome do homem mundialmente famoso que vive no ápice desse triângulo.”
Bevan arregalou os olhos.
— Essa foi uma jogada genial — continuou Duguesclin. — Forçou-me a usar o alfabeto inglês como base para a cifra, e o espião, um suíço ignorante, não conhecia nenhuma língua além do francês. “A partir de agora, me comunicarei por uma cifra de adição direta, e a chave será esse nome”, ele disse.
Bevan começou a se sentir cada vez mais fascinado pela história.
— Apenas minha constituição extraordinariamente forte — continuou Duguesclin — permitiu que eu acrescentasse à carga do trabalho forçado a tarefa de decifrar suas mensagens. Memorizar perfeitamente uma comunicação cifrada de meia hora não é uma proeza pequena, especialmente quando a mensagem decifrada vinha sob forma de símbolos ainda mais obscuros. O espião deve ter pensado que estava enlouquecendo ao tentar interpretar os hieróglifos que eram apenas as peças de um quebra-cabeça maior.
Bevan inclinou-se, intrigado.
— Por exemplo — continuou Duguesclin —, recebi esta mensagem:
owhmomdvvtxskzvgcqxzllhtrejrgscpxjrmsgausrgwhbdxzldabe
Decifrada (e imagine a fúria do espião cada vez que Dodu sinalizava um W!), ela dizia apenas:
“Os pêssegos de 1761 brilham nos jardins de Versalhes.”
Bevan piscou, confuso.
— Ou outra: “Caça; o papa aprisionado; a Pompadour; a Cerva e a Cruz.”
Ou ainda: “Os homens do quatro de setembro; seu líder dividido pelas letras da Vítima do Oito de Termidor.”
Ou, finalmente: “Crillon teve um dia infeliz, embora estivesse mais bravo do que nunca.”
Bevan coçou a nuca.
— E era com pistas assim que você tentava montar o plano de fuga?
— Exatamente! — exclamou Duguesclin. — Talvez mais por intuição do que por razão, percebi que Dodu tinha subornado os guardas Bertrand, Rolland e Monet. Além do dinheiro, prometeram-lhes promoção e, acima de tudo, remoção da maldita Ilha do Diabo. O governo ainda tinha planos para seu primeiro estrategista.
Ele fez uma pausa para acender o cachimbo antes de continuar.
— A eclipse ocorreria em cerca de dez semanas. O desafio era garantir que, naquela noite, Bertrand estivesse no corredor, Rolland no portão externo e Monet no posto avançado. As chances de que essa combinação ocorresse por acaso eram de 99.487.306.294.236.873.489 para 1.
Bevan assobiou baixinho.
— Confiar na sorte seria loucura — disse Duguesclin. — Assim, Dodu começou a trabalhar para subornar o próprio governador.
Ele fez uma pausa dramática e olhou para Bevan.
— Mas isso era impossível. Primeiro, ninguém podia se aproximar do governador, nem mesmo por meio dos guardas subornados. Segundo, o crime que lhe rendeu a promoção ao cargo era imperdoável para qualquer governo. Ele era, na verdade, mais um prisioneiro do que nós. E terceiro, ele já era imensamente rico e, de acordo com sua reputação, incorruptível.
Duguesclin inclinou-se para Bevan.
— Eu não entrarei agora na história desse homem, pois você, sem dúvida, já a conhece. Direi apenas que, apesar de suas aparentes contradições, todos esses fatos são absolutamente verdadeiros.
Ele deu uma tragada profunda no cachimbo.
— Mas a confiança de Dodu nunca vacilou. “Colha uvas na Borgonha; pressione os barris em Cognac — ha!” ele me sinalizava. Ou então: “O suflê com nozes já está pronto para nós às margens do Sena.”
Duguesclin riu amargamente.
— A genialidade de Dodu estava além da compreensão comum. O plano era infalível: na noite da eclipse, Bertrand, Rolland e Monet estariam todos em seus postos. Dodu rasgaria suas roupas em tiras, amarraria e amordaçaria Bertrand, e viria me libertar. Juntos, atacaríamos Rolland, tomaríamos seu uniforme e rifle, e o deixaríamos amarrado e amordaçado. Então correríamos para a costa, faríamos o mesmo com Monet, e vestidos como guardas, roubaríamos um barco de pescador de polvo. Rumaríamos ao porto e pediríamos, em nome do governador, o uso de seu iate a vapor para perseguir um fugitivo. Então, zarparíamos, iríamos para a rota dos navios e atearíamos fogo ao iate para sermos “resgatados” e levados à Inglaterra, onde negociaríamos nossa reabilitação com o governo francês.
Duguesclin ergueu o olhar para o horizonte.
— Um plano tão brilhante… até o dia em que tudo desmoronou.
Bevan inclinou-se para frente, tenso.
— O espião, acometido por febre amarela, caiu morto antes do meio-dia. Assim que soou o “Cessar trabalho”, Dodu correu até mim e murmurou:
“O plano que venho explicando a você há quatro meses é uma distração. O espião sabia de tudo. Tenho um novo plano, muito mais simples e seguro. Conto-lhe amanhã.”
A locomotiva que os levaria a Mudchester apareceu na curva.
Duguesclin virou-se para Bevan e rosnou:
— Esse amanhã nunca chegou.
— Como assim? — perguntou Bevan, já entrando no vagão.
Duguesclin o fitou intensamente.
— O sol que matou o espião destruiu também a mente de Dodu. Ele enlouqueceu naquela tarde, e nunca mais saiu da cela acolchoada.
Bevan já fechava a porta do compartimento quando, num impulso, perguntou:
— Mas como, então, você escapou?
Duguesclin sorriu e saltou para outro vagão.
— Por um estratagema! — gritou ele.
Alimente sua alma com mais:

Conheça as vantagens de se juntar à Morte Súbita inc.