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Texto de Vincent St. Clare. Traduzido por Caio Ferreira Peres.
Utilizada a tradução de Vitor Cei para os versos dos Livros Sagrados de Thelema publicada no ano de 2018 pela Madras Editora.
Adoro “divagar” sobre comparações e paralelos entre vários pensadores; em particular, gosto de comparar Aleister Crowley com os seus contemporâneos, e comparar suas respectivas ideias—embora nunca tenha colocado essas comparações (correlações) em um texto até agora. Neste ensaio, pretendo fazer exatamente essas coisas e, se parecer que este texto não contém nenhuma estrutura ou direção formal, é porque me propus a escrevê-lo sem uma conclusão definitiva em mente. Em vez disso, gostaria de simplesmente traçar paralelos entre as idéias de Crowley e as de outros místicos, magos, esoteristas ou filósofos. (Espera-se que a discussão proporcione alguma erudição.)
Este ensaio não é exaustivo: há muitas outras associações que podem ser encontradas por meio de estudos e até mesmo por experiência direta. No entanto, esperamos que seja uma boa cartilha, de certa forma.
Estou aqui interessado principalmente em contrastar as diferenças e explorar as semelhanças que existem entre Crowley e o pensador italiano Julius Evola; no entanto, gostaria de chamar sua atenção para algumas “discrepâncias” também. Vamos começar nos velhos tempos.
Jâmblico, Neoplatonismo e Teurgia
Jâmblico de Cálcis, um dos mais importantes filósofos neoplatônicos, defendia uma prática conhecida como teurgia, a invocação de uma divindade ou agente divino para elevar o status espiritual do indivíduo.
O neoplatonismo como filosofia, com raízes na antiguidade clássica, empresta muito de si mesmo ao esoterismo ocidental em geral e ao desenvolvimento da magia e do ocultismo durante a Renascença (época em que experimentou um renascimento) e até mesmo depois.
A teurgia está relacionada aos conceitos de invocação e evocação mágica—e especialmente invocação—diferentes meios de “atrair” ou “trazer à tona” uma divindade, o divino ou, em certos casos, outras entidades e forças (presumivelmente espirituais ou “paranormais”). (Para dentro de si mesmo e externo ou diante de si, respectivamente.)
A teurgia era o principal meio pelo qual a alma poderia retornar à fonte única da realidade, de acordo com Jâmblico. Ao fazer isso, o indivíduo se tornaria um com esse Um. (O Uno (Τὸ Ἕν, to hen), ou o que pode ser chamado de Mônada, é a fonte inefável de todas as coisas, de acordo com a filosofia neoplatônica.)
Essa auto-deificação é conhecida como henose no neoplatonismo. Uma ideia similar é a apoteose, que pode significar a elevação ao status de divindade ou a perfeição de uma coisa ou indivíduo.
Evola e Crowley: o Indivíduo Absoluto, Inventando Deus e Salvando o Mundo
Essas ideias podem ser facilmente associadas a uma das conceituações do filósofo e esoterista do século XX Julius Evola, a do “indivíduo absoluto”.
Para Evola, os indivíduos inventam o Deus supremo dentro de si mesmos e, ao se tornarem o que ele chamou de “indivíduo absoluto”—o indivíduo que alcançou o ponto menos restrito de liberdade e poder—uma pessoa atinge essencialmente o status de divindade. Esse indivíduo absoluto existe naturalmente em um estado além da descrição racional, a grandeza que ele alcançou é tão marcantemente diferente das conquistas da vida normal que é inefável. Além disso, tornar-se o indivíduo absoluto implica a realização de um estado de imortalidade, uma condição na qual a pessoa está essencialmente “no controle de tudo”, de acordo com o artigo de 2018 “Deification as a Core Theme in Julius Evola’s Esoteric Works” [N. T.: Deificação como Tema Central nas Obras Esotéricas de Julius Evola], um trabalho de Hans Thomas Hakl publicado em Correspondences: Journal for the Study of Esotericism [N. T.: Correspondências: Revista para o Estudo do Esoterismo].
Evola escreveu sobre o estado:
“O corpo do indivíduo absoluto é o universo.”
Esse ser existe independentemente de forças externas e, ao inventar Deus dentro de si mesmo, fornece a “única maneira de [realmente] provar que Deus existe”, afirmou Evola. Assim, o ser humano, ao atingir a condição, torna-se uma espécie de divindade panteísta definitiva em si mesmo. Evola escreveu:
“… o Ego deve entender que tudo o que parece ter uma realidade independente dele não passa de uma ilusão, causada por sua própria deficiência.”
Para Evola, Deus não existe fora de nossa capacidade de criar esse ser em nós mesmos e, assim, encapsulá-lo em nós mesmos.
Evola foi um dos principais membros do Grupo Ur (Gruppo di Ur), um grupo de trabalho mágico italiano que tinha como objetivo conceder a seus membros um poder mágico grande e talvez absoluto. Ele chamava seu tipo pessoal de filosofia mágica ou esotérica de “idealismo mágico”.
Embora a obtenção da individualidade absoluta seja, para Evola, um esforço individual realizado em prol da libertação ou transformação pessoal, ele também observou que o processo de autodeificação poderia ser usado para ajudar o mundo, de certa forma:
“E, portanto, o indivíduo tem apenas um imperativo: SER, tornar-se DEUS, e ao fazê-lo, fazer o mundo ser, SALVAR o mundo.”
Isso lembra o conceito de bodhisattva no Budismo Mahayana: um ser que não trabalha apenas para sua própria iluminação, mas para a libertação de todos os outros seres. Entretanto, a noção de Evola sobre o que constitui “salvar”, quando comparada à meta salvífica do bodhisattva, pode ser diferente.
Pode-se fazer uma comparação entre a noção de Evola de autodeificação no indivíduo absoluto e o ideal do indivíduo iluminado, conforme expresso pelo ocultista e líder espiritual britânico Aleister Crowley.
Para Crowley, o objetivo da pessoa é descobrir e realizar sua verdadeira vontade, o que é essencialmente a maior expressão possível de seu potencial, bem como seu propósito na vida e sua vontade, impulsos ou ações quando estão alinhados com o curso da natureza.
Crowley via a apoteose como uma parte necessária desse desenvolvimento: após o processo que ele chamava de “Conhecimento e Conversação do Sagrado Anjo Guardião” (baseado em frases encontradas no grimório medieval O Livro de Abramelin), a pessoa pode continuar a descobrir e realizar sua verdadeira vontade. A pessoa pode atingir o estado de Conhecimento e Conversação invocando o Sagrado Anjo Guardião, um termo para o que pode ser concebido como o “eu superior” ou “gênio interior”. Crowley escreveu:
“O Ritual Supremo e Completo é, portanto, a Invocação do Sagrado Anjo Guardião; ou, na linguagem do Misticismo, a União com Deus.”
Além disso, referindo-se novamente a Jâmblico, pode-se considerar a invocação do Sagrado Anjo Guardião a forma definitiva de teurgia. Veja aqui o conceito de Evola de inventar (ou talvez formular) Deus dentro de nós mesmos.
Crowley: IAO e VIAOV
Crowley, assim como Evola, faz alguma menção à ideia de “salvar” o mundo por meio do processo de realização espiritual. Para entender a ideia de Crowley de se tornar uma figura redentora, é preciso entender duas fórmulas mágicas: IAO e VIAOV.
IAO é um termo para uma forma-deus gnóstica e também uma abreviação utilizada como fórmula mágica. Uma maneira importante de interpretá-la como uma fórmula, para Crowley, é referir-se às letras individuais como designações de divindades egípcias e suas supostas funções como aspectos simbólicos do funcionamento da natureza: “I” pode se referir a Ísis, a força geradora da produção da natureza por meio do nascimento; “A” pode se referir a Apófis (ou Apep), a serpente que destrói ou “arruína” a criação na morte; e “O” pode se referir a Osíris, a divindade que renasce após a morte. Assim temos nascimento, morte e ressurreição. Dessa forma, a fórmula de IAO pode representar tanto a reencarnação quanto a morte do ego individual (ahamkara, ou a faculdade de “criar o eu” na filosofia hindu) e o renascimento do indivíduo em uma forma maior do eu. De acordo com Crowley, ele também representa um processo de desenvolvimento e educação espiritual.
Crowley modificou essa fórmula acrescentando um “v” (nesse contexto, a letra hebraica vau) em cada extremidade. (Ele também escreveu a fórmula como “FIAOF”).
Crowley chamou VIAOV de “o hieróglifo apropriado do Ritual de Auto-Iniciação neste Aeon de Hórus” e acrescentou sobre aquele que incorpora essa fórmula: “Assim, ele é o Homem feito Deus, exaltado, ansioso; ele chegou conscientemente à sua plena estatura e, portanto, está pronto para partir em sua jornada para redimir o mundo”.
Os dois vaus, um em cada extremidade da fórmula, essencialmente tornam a fórmula circular.
Crowley observou: “Ele [o indivíduo que encapsula a fórmula], portanto, torna-se aparentemente o homem que era no início; ele vive a vida de um homem; de fato, ele é totalmente homem. Mas sua iniciação o tornou mestre do Evento, dando-lhe a compreensão de que tudo o que acontece com ele é a execução dessa verdadeira vontade.”
Evola e Crowley: Magia e Misticismo
Como indiquei, transformar um ser humano em Deus, como Crowley imaginou, envolve inevitavelmente o Conhecimento e a Conversação do Anjo. Pode-se chamar esse Anjo de vários nomes ou achar que ele é representado por vários estados ou seres elevados, mas, em última análise, o Anjo é um tipo de “Outro” intimamente relacionado ao indivíduo e o centro de seu ser.
O conceito do Sagrado Anjo Guardião como um Outro sagrado ou uma segunda natureza superior de uma pessoa (não que essa seja a única interpretação possível para o que o Santo Anjo Guardião é ou representa) lembra a visão de Evola sobre as diferenças entre os caminhos da magia e do misticismo:
Evola, em seu ensaio “Três Vias” (uma contribuição para o livro Introduzione alla Magia, Vol. I [N. T.: Introdução à Magia, Vol. I], do Gruppo di Ur, escrito sob o pseudônimo Abraxas), observa três métodos diferentes para alcançar a consciência espiritual. Desses três métodos, o segundo e o terceiro correspondem à magia e ao misticismo, ou o que Evola chamou de Via Seca e Via Úmida, respectivamente.
Para Evola, ambos os métodos envolvem a concepção de si mesmo como um “ser dual”, ou melhor, dois seres distintos, mas intimamente relacionados. A diferença entre os dois está em qual parte do ser ou da consciência dividida se considera o Outro e como se aborda esse Outro.
Por meio do misticismo, ou da Via Úmida, a pessoa exalta o Outro superior acima de si mesma e, então, anseia por ele por meio do amor, da devoção, da propiciação ou de alguma prática cognata, visando, em última instância, à unificação com o aspecto superior.
“No método místico, a mente cria um “outro” que ainda permanece “outro””, escreveu Evola. Entretanto, ele observou que, por meio desse método, “o Eu não é transformado”. Isso parece implicar que o eu mantém sua função normal até que a unificação seja realmente alcançada. (Embora talvez a consciência passasse por várias transformações ao longo do caminho).
Evola achava que a Via Úmida envolvia a obtenção de um “estado unitivo” no qual o centro espiritual da pessoa “se afoga” no Outro, uma realização de êxtase e “o Bem Supremo”. (Considere isso em relação ao summum bonum (que se traduz aproximadamente na frase exata “o bem supremo”) da Missa Gnóstica, para a qual Crowley escreveu a liturgia).
Por outro lado, na Via Seca, ou magia, a pessoa concebe o seu eu experiente como o Outro superior e, em seguida, tenta retornar ao centro espiritual (e talvez ao eu básico), o que Evola chamou de “sede do Centro”, em unificação.
Evola, em seu ensaio “A Segunda Preparação do Caduceu Hermético” (também escrito como Abraxas), escreveu que todas as realizações mágicas resultam de um “princípio ativo, seco e fixo” agindo “simpaticamente sobre um princípio passivo, úmido e volátil“. Essa fixação do volátil é um tema de longa data e um processo importante para o trabalho da alquimia e envolve a união de dois princípios opostos. (Isso de acordo com Sean Martin em sua obra Alchemy and Alchemists [N. T.: Alquimia e Alquimistas].) Podemos imaginar, em termos psicoespirituais, que esses princípios opostos poderiam ser, por exemplo (e apenas para usar um exemplo), a personalidade consciente de uma pessoa e as forças inconscientes não integradas que a afetam.
Além disso, o trabalho de fixar o volátil—de certa forma tornando estável o que é dinâmico—bem como o trabalho inverso de volatilizar o fixo—dando origem à mudança na estabilidade—pode muito bem estar relacionado à ideia de solve et coagula, ou “dissolver e combinar”, outro termo importante na alquimia. Crowley escreveu em seu De Lege Libellum:
“Entender que Estabilidade é Mudança, e Mudança é Estabilidade, que Ser é Tornar-se, e Tornar-se é Ser, é a Chave para o Palácio Dourado desta Lei.”
Exploração Adicional de Evola, Magia e Misticismo
Evola também explicou muito de sua visão fundamental do método da magia em um ensaio que forma uma seção de Introduzione alla Magia, Vol. I: “Conhecimento das Águas”. (Isso foi escrito, mais uma vez, sob a autoria de Abraxas—todas as entradas de Evola nos três volumes de Introduzione alla Magia foram escritas sob esse pseudônimo).
No ensaio, Evola escreveu: “A vida de todos os seres, sem exceção, é governada por uma força primordial em seu interior. A natureza dessa força é o desejo…” Isso parece ecoar a noção budista de que tanha, ou “desejo”, é uma força motriz na existência de todas as formas de vida. Entretanto, enquanto no budismo o tanha é um prejuízo, para Evola esse desejo primordial pode ser utilizado para alimentar a autorrealização.
Como ele escreveu: “Os Sábios falavam dela [dessa força] como uma maravilha e como um terror. Eles a chamavam de: Fogo Universal e Vivo, ύλη (matéria), Dragão Verde, Quintessência, Primeira Substância, Grande Agente Mágico. O princípio de sua “GRANDE OBRA”, já que o Magistério da Criação e o Magistério com o qual o homem se realiza de acordo com as Artes Reais são um só e o mesmo.
“Essa nossa Matéria não é uma abstração da filosofia profana, nem um mito ou um conto de fadas, mas uma realidade viva e poderosa, o espírito e a vitalidade da Terra e da Vida.”
Evola afirmou, no ensaio, que em momentos de extremo estresse ou dor, a pessoa pode experimentar um estado alterado de consciência no qual essa força fundamental se torna aparente:
“Ele se revela, por exemplo, em todos os momentos de perigo repentino.
“Pode ser um carro em alta velocidade correndo em sua direção, quando você caminha distraidamente; ou a abertura de uma fenda aberta na terra sob seus pés; um carvão em brasa sem chama ou um objeto eletrificado que você tocou inadvertidamente.”
Evola continuou observando que essa força não é o Eu, nem a vontade, nem a consciência. Para Evola, essa força é anterior a essas qualidades. Ele escreveu:
“Quando você sentir fome, terror, sede sensual, pânico e espasmo – lá você encontrará essa coisa novamente, como algo violento, escuro e indomável. E se essas insinuações lhe permitirem senti-la, você gradualmente será capaz de vivenciá-la como o pano de fundo invisível de toda a sua vida desperta.”
Evola continuou revelando que essa força é o que controla o indivíduo e que essa percepção é imperativa para aqueles que se aproximam da magia: “Leitor, já que você se aproximou da “Ciência dos Magos”, você deve ser forte o suficiente para esta verdade: você não é a vida em você. Você não existe. Não há nada que você possa chamar de “meu”. Você não é dono da vida: é a vida que é dona de você. Você a suporta. É pura ilusão que o fantasma de um “Eu” seja capaz de viver para sempre, após a decadência do corpo. Você não consegue ver que a relação com esse corpo é essencial para o seu “Eu” e que qualquer doença, trauma ou acidente tem uma influência precisa sobre todas as suas faculdades, não importa quão “espirituais” ou “superiores” elas sejam?
“E agora, desligue-se de seu próprio eu e atravesse o limiar, enquanto sente a sensação rítmica de analogia, cada vez mais fundo nos recessos escuros da força que sustenta seu corpo.”
Evola chamou essa força de “as águas” e sua realização de “conhecimento das águas”. Ele também se referiu a essas águas como Humidum Radicale (“umidade radical”) e observou que elas foram chamadas de “Vênus terrestre”.
Como ele escreveu: “Elas também foram chamadas de “Vênus terrena”, de matriz feminina e cósmica (▽ no hinduísmo é o símbolo de Shakti e da yoni), ou da “Serpente Original” (por causa do caminho serpentino ♒, que é o equivalente astrológico de ▽). É o poder demiúrgico elementar, a “Magia” de Deus, a substância primordial que foi precipitada quando Deus disse “Haja Luz!””
Dito isso, Evola finalmente chega ao ponto em que afirma que a manipulação e a utilização dessa força vital é o próprio método da magia:
“Como tudo está à mercê dessa força e existe por meio dessa força, saiba que aquele que aprender a dominá-la completamente será capaz de dominar toda a natureza: fogo, terra, ar e água, vida e morte, os poderes do céu e do inferno, porque essa força engloba todos eles.
“E agora, já que você quis aprender sobre ela, perceba que a “Ciência dos Magos” deseja isso e desdenha qualquer coisa que não seja isso.”
Crowley: Magia e Misticismo
Crowley defendia os caminhos duplos da magia e do misticismo, mas, ao contrário de Evola, não os considerava como inversões um do outro em termos de visão do Outro. Para Crowley, eles são abordagens diferentes para esse Outro, que, na realidade, pode ser a forma superlativa do eu.
Pode-se até chamar isso de “eu verdadeiro” ou “eu mais verdadeiro”, como o atman do hinduísmo ou a “natureza búdica” (potencialmente um termo para vários fenômenos diferentes no pensamento budista, mas aqui indicando a natureza inerente da realidade transcendental dentro de cada indivíduo, como o termo é utilizado por certos pensadores, mestres ou professores budistas Zen ou Chan) do budismo. O próprio Crowley declarou, em seu The Temple of Solomon the King [N. T.: O Templo de Salomão o Rei], que “os budistas o chamam [o Sagrado Anjo Guardião] de Adi-Buddha”, alegando ter emprestado essa ideia de H. P. Blavatsky.
Esse Outro, no caso de Crowley, o Sagrado Anjo Guardião, é algo a ser buscado, de fato. No entanto, sendo Deus, não havendo “nenhum deus além do homem” (como está escrito em Liber AL vel Legis, o texto espiritual que Crowley recebeu em 1904, também conhecido como O Livro da Lei), e o indivíduo sendo “o Deus Supremo” em si mesmo (Crowley escreveu em um de seus comentários sobre AL que “todo homem e toda mulher não são apenas parte de Deus, mas o Deus Supremo”), a pessoa já é, de certa forma, ela mesma o Anjo e a existência Absoluta. Assim, embora se possa conceber o Sagrado Anjo Guardião como algo “lá fora” a ser alcançado, pode-se dizer com mais propriedade que o Outro sempre esteve dentro e faz parte do eu, apenas esperando para ser realizado ou verdadeiramente “lembrado”.
Como Crowley escreveu em seu Liber ABA:
“A ideia principal é que o Infinito, o Absoluto, Deus, a Superalma, ou como você preferir chamá-lo, está sempre presente, mas velado ou mascarado pelos pensamentos da mente, assim como não se pode ouvir o batimento cardíaco em uma cidade barulhenta.”
Os adeptos da Advaita Vedanta, uma filosofia mística nascida do pensamento hindu, podem dizer que não perceber a si mesmo como o Deus Supremo é resultado da dualidade da mente, ou dvaitabhava.
As diferenças entre a magia e o misticismo, para Crowley, são, em certo sentido, diferenças de abordagens com relação ao desenvolvimento e ao controle da mente.
Como Crowley escreveu em Magick Without Tears [N. T.: Magia Sem Lágrimas], “Treinar a mente para se mover com o máximo de velocidade e energia, com a maior precisão possível na direção escolhida e com o mínimo de perturbação ou atrito. Isso é Magia. Parar a mente por completo. Isso é Yoga”. (Crowley considerava o yoga um componente importante do misticismo, a ponto de, em sua filosofia, haver uma sobreposição significativa entre os dois. Até mesmo a seção “Misticismo” de seu Liber ABA é essencialmente dedicada à yoga e seus estágios. (Samyama.))
Crowley acreditava que a magia poderia ser representada pelas fórmulas numéricas de 0 = 2 (zero se tornando ou sendo dois). Pode-se argumentar que isso representa pelo menos várias coisas, incluindo a noção ontológica de nada se manifestando e, portanto, derivando uma dualidade (primordial) de si mesmo—a natureza da existência sendo uma função geradora—a ideia de que o Absoluto incompreensível ou não dual se apresenta como um par ou pares de opostos; ou que a magia funciona manifestando coisas a partir de uma unidade. (As “coisas” são diferenciações ou divisões que se ramificam a partir dessa unidade).
Como a magia é encapsulada por 0 = 2, pode-se dizer que o misticismo (na linguagem de Crowley) pode ser simbolizado pela inversão da fórmula, 2 = 0. Isso pode representar o manifesto (ou a mente) retornando à quietude, ao silêncio e à unidade da nulidade, ou seja, ao samadhi.
Crowley apresentou fórmulas alternativas, mas matematicamente semelhantes, para a magia e o misticismo em seu “The Dangers of Mysticism” [N. T.: Os Perigos do Misticismo], no qual ele descreveu a fórmula da magia como 1 + (-1) = 0, e a do misticismo como 1 – 1 = 0.
A “teoria mágica”, de acordo com Crowley, é que “o primeiro desvio do Infinito deve ser equilibrado e, assim, corrigido”. Para Crowley, o objetivo do mago é, pelo menos em parte, dissipar Maya, a ilusão primordial que mascara a verdadeira realidade. Crowley escreveu:
“Agora a fórmula do místico é muito mais simples. Ele é como um grão de sal lançado ao mar; o processo de dissolução é obviamente mais fácil do que o choque de mundos que o mágico contempla.”
Quer se prefira as abordagens de Crowley ou de Evola sobre magia e misticismo, a semelhança entre os dois reside no fato de que, para ambos os caminhos, conforme propostos por ambos os homens, há uma abordagem e um método significativos para vivenciar o transcendente.
Evola sobre Crowley e mais
Pode-se comparar a visão de Crowley sobre como a verdadeira vontade é alcançada com a necessidade de “autodeterminação incondicionada” defendida por Evola em sua teoria do idealismo mágico. Evola chamou essa determinação de “princípio fundamental dessa doutrina” e, da mesma forma, Crowley defendeu a autodisciplina rigorosa na busca da verdadeira vontade. (Cf. Magick Without Tears.)
Evola comentou brevemente sobre Crowley e seus métodos em uma contribuição para o Introduzione alla Magia, Vol. III intitulada “Perspectivas Mágicas, Segundo Aleister Crowley”. No ensaio, ele citou o Liber Aleph de Crowley, implicando que achou a obra útil. Evola considerava Crowley um dos principais professores do “caminho da mão esquerda” e satânico em seu estilo de magia e filosofia. (Entretanto, é discutível se Thelema (o sistema fundado por Crowley) é um movimento do caminho da mão esquerda ou satânico. As opiniões de vários Thelemitas (adeptos de Thelema) variam sobre esse tópico). Ele considerava o trabalho de Crowley “tântrico”, pois Crowley utilizava drogas e magia sexual em seus trabalhos, práticas transgressoras quando comparadas aos exercícios espirituais normativos.
Igualmente, o próprio Evola defendia o poder do tantrismo e estava particularmente interessado na ideia da kundalini e seu despertar, bem como no pranayama, como lemos em sua obra Lo Yoga della Potenza [N. T.: O Yoga do Poder]. Crowley também se interessou pela kundalini, e a ideia ou efeito pode ser mencionado no Liber HHH de Crowley. No Liber O de Crowley, é defendido o pranayama, ou trabalho de respiração iogue (especificamente a prática de nadi-shodhana).
A noção de que o indivíduo absoluto é aquele que conquistou uma liberdade irrestrita também tem um paralelo com a declaração de Crowley de que “O objetivo total e único de todo treinamento mágico e místico verdadeiro é tornar-se livre de todo tipo de limitação”. (Cf. Little Essays Toward Truth [N. T.: Pequenos Ensaios em direção à Verdade].)
Crowley e Evola sobre como enfrentar o “Negativo”
Crowley sugeriu uma prática pela qual a pessoa pensaria intencionalmente de forma positiva sobre coisas que normalmente consideraria um anátema para suas tendências e costumes. Ele sugeriu a criação de uma segunda personalidade que, por exemplo, gostasse de carne, enquanto a personalidade normal seria, ao mesmo tempo, uma vegetariana convicta.
Por meio desse método, a pessoa seria naturalmente capaz de confrontar ou experimentar o que normalmente considera repulsivo, questionável ou assustador.
Esse método faz parte do Liber Jugorum de Crowley, que defende a colocação de um “jugo” sobre si mesmo, para “Assim se ligar” de modo que “seja para sempre livre”. No Jugorum, Crowley também sugere cortar o braço com uma navalha toda vez que a pessoa não conseguir manter um determinado estado relacionado à fala, à ação ou ao pensamento.
Em Magick, Livro 4, Liber ABA, Crowley escreveu:
“O Mago deve elaborar para si mesmo uma técnica definida para destruir o “mal”. A essência de tal prática consistirá em treinar a mente e o corpo para enfrentar coisas que causam medo, dor, repulsa, vergonha e coisas do gênero. Ele deve aprender a suportá-las, depois a se tornar indiferente a elas, depois a analisá-las até que proporcionem prazer e instrução e, finalmente, a apreciá-las por si mesmas, como aspectos da Verdade.”
Evola entendia o poder de se permitir experimentar o que normalmente consideraria desagradável para se liberar espiritualmente: Ele escreveu em “A Segunda Preparação do Caduceu Hermético”:
“Faça violência a si mesmo. Não faça o que você gosta, mas o que lhe custa: por princípio, sempre tome o caminho de maior resistência.”
Evola sugeriu que a pessoa deveria “infligir desapaixonadamente uma dor física extrema” a si mesma, que deveria “suportá-la por alguns minutos” e “resistir a ela” e, como resultado, “ficar mais forte” e, por meio desse fortalecimento, ganhar o “poder de silenciá-la [a dor]”.
Evola fez uma analogia com a experiência de fazer “violência a si mesmo” afirmando que “para “dissolver” um “metal” é necessário deixá-lo em brasa e depois mergulhá-lo na água…” Ele afirmou que isso é essencialmente “excitar, exasperar um instinto, um impulso, um desejo, e então, abruptamente, quando sua realização estiver próxima, suspendê-lo”.
Crowley, Evola e Outros Místicos
Para divagar um pouco: a verdadeira vontade é essencialmente o alinhamento da vontade mundana com a vontade de “Deus” ou do Todo (o que quer que se considere esse Absoluto), alcançando assim a vontade interior ou oculta. O indivíduo absoluto de Evola segue em frente, ou deseja, com liberdade irrestrita para fazer essa vontade ao se tornar o próprio Deus. Ambas as ideias são semelhantes aos ensinamentos de Meister Eckhart, um místico católico medieval, cuja ideia essencial é que, ao alinhar a vontade da pessoa com a vontade de Deus, ela pode alcançar a união com esse Deus.
No entanto, a característica essencial do misticismo (seja qual for a persuasão religiosa ou espiritual) parece ser o fato de ser um processo pelo qual a pessoa entra em contato com uma realidade transcendental de algum tipo e, portanto, não é de surpreender que Eckhart, mergulhado na tradição contemplativa como era, considerasse possível a união com o Absoluto.
O próprio Evola estava interessado nas ideias de Meister Eckhart, ideias que lhe foram apresentadas pelo futurista Giovanni Papini.
Outro místico, bem como um filósofo e metafísico tradicionalista, René Guénon, fez um paralelo com uma das ideias mais significativas de Evola, e que Evola levava muito a sério: que a “crise do mundo moderno” é, em grande parte, uma falta de adoção da espiritualidade tradicional. Da mesma forma, Guénon considerava que o mundo de sua época havia falido espiritualmente e foi o fundador do que é conhecido como a escola tradicionalista da filosofia perene. (Essa escola tradicionalista vê todas as religiões como portadoras de um núcleo espiritual que surge perenemente). Guénon escreveu:
“O mal-estar do mundo moderno está em sua negação implacável do reino metafísico.”
Embora Evola e Guénon discordassem em vários pontos, ambos viam essencialmente a modernidade como um período de tempo sem uma noção do sagrado e consideravam isso um problema.
Evola via sua doutrina de idealismo mágico, se seguida, como um meio de colocar os indivíduos em contato com o “Espírito”, que ele equiparava à tradição.
Crowley não era de atacar a modernidade por si só—ele considerava a época em que viveu, ou seja, o período após o recebimento de Liber AL, como aquela em que o Aeon de Hórus (essencialmente o novo zeitgeist que ele proclamava) se desdobraria—mas ele via um retorno à adoção do sagrado como essencial para a realização final do indivíduo. A realização do Sagrado Anjo Guardião é, de acordo com Crowley, o trabalho espiritual essencial da humanidade, e ele acreditava que somente alcançando o Conhecimento e a Conversação uma pessoa poderia realmente experimentar as profundezas íntimas da consciência espiritual.
Apesar da ênfase de Crowley no sagrado, Guénon viu em Crowley um certo charlatanismo ou representação de contra-iniciação. (Isso de acordo com Marco Pasi em sua obra Aleister Crowley and the Temptation of Politics [N. T.: Aleister Crowley e a Tentação da Política]). Evola parecia ver Crowley com uma atitude menos desfavorável. No entanto, no final das contas, tanto Evola quanto Guénon parecem ter tido curiosidade sobre Crowley e seu trabalho, como fica evidente pelo fato de que ambos trocaram cartas sobre o tema do homem.
Crowley, Evola, o Sol e o Cristianismo
O Sol está presente nas visões espirituais de Crowley e Evola.
Crowley e Evola mantiveram abordagens diferentes da espiritualidade solar, ou doutrinas místicas focadas no Sol, embora o fato de seus focos seja, por si só, uma semelhança.
Crowley via o Sol como o principal ponto focal de seu sistema e atribuía a ele muitas associações espirituais simbólicas, chegando a recomendar uma prática de adoração ao Sol (Liber Resh) em Liber Aleph.
Crowley declarou, em seu Confessions: “O objetivo dessa prática é, em primeiro lugar, lembrar o aspirante, em intervalos regulares, da Grande Obra; em segundo lugar, levá-lo a ter relações pessoais conscientes com o centro de nosso sistema; e, em terceiro lugar, para estudantes avançados, fazer contato mágico real com a energia espiritual do Sol e, assim, extrair força real dele”.
Crowley observou que, ao realizar o Resh, a pessoa “afirma seu lugar na natureza e em suas Harmonias”.
Ele também escreveu: “Particularmente útil contra o medo da morte é a execução pontual e vigorosa de Liber Resh. Medite sobre o sol em cada estação: seu caminho contínuo e uniforme: o círculo sem fim”.
Esse “círculo interminável” é o ciclo do sol que se move sobre e sob o horizonte e depois retorna no dia que produz, apenas para repetir o ciclo continuamente. Crowley associou o retorno do Sol sob o horizonte e o fato de ele estar constantemente irradiando luz e calor à sua crença de que a vida ou a consciência individual pode ser eterna de alguma forma.
Crowley escreveu em seu The Heart of the Master [N. T.: O Coração do Mestre] que Hórus, ou talvez mais especificamente o Hórus de Thelema—conhecido como Heru-ra-ha, “Hórus-Sol-carne”, uma divindade composta que consiste no deus criança do silêncio Harpócrates, ou Hoor-paar-kraat, o aspecto passivo de Heru, e o terceiro orador de Liber AL, Ra-Hoor-Khuit (o aspecto ativo de Heru)—é:
“…A criança coroada e conquistadora, que não morre nem renasce, mas segue radiante sempre em Seu Caminho. Assim também vai o Sol: pois, como agora se sabe que a noite é apenas a sombra da Terra, assim também a Morte é apenas a sombra do Corpo, que cobre sua Luz de seu portador.”
Aqui estão meus pensamentos sobre essa passagem: a associação de Hórus—de quem Ra-Hoor-Khuit é “o objeto visível de adoração” para os Thelemitas—com o Sol é também uma associação de Hórus com o Sol espiritual dentro de nós mesmos, ou de nossas consciências. Como microcosmos do macrocosmo universal representado pelas divindades primárias ou neteru de Liber AL, nós mesmos estamos sujeitos a existir eternamente em um sentido ou outro, assim como Hórus é um ser, uma força ou um princípio eternamente existente. (Se essa ideia se traduz em uma reencarnação literal, de ser-para-ser, ou em outra forma de eternização, cabe obviamente ao indivíduo determinar. O próprio Crowley declarou coisas diferentes sobre uma possível vida após a morte em vários lugares, parecendo não ter certeza sobre o assunto ou ter mudado de ideia com o tempo; no entanto, ele parece ter acreditado de forma mais consistente em algum tipo de reencarnação).
Crowley falou do Sol como sendo associado à sephira—um nodo na Árvore da Vida, que é um “mapa” utilizado na Qabalah—de Tiphereth. De fato, o Sol é o “planeta” há muito associado a Tiphereth. Ele também associou o Sol diretamente a Ra-Hoor-Khuit e chamou Ra-Hoor, nesse contexto, de expressão da “alma suprema”, Hadit. Crowley escreveu em um comentário sobre um verso de Liber AL:
“Hadit se autodenomina a Estrela, sendo a Estrela a Unidade do Macrocosmo; e a Serpente, sendo a Serpente o símbolo do Amor, a Alma Anã, o Espermatozóide de toda a Vida, como se pode dizer. O Sol, etc., são as manifestações externas ou vestígios dessa Alma, assim como o Homem é a Vestimenta de um Espermatozóide real, a Árvore que brotou dessa Semente, com o poder de se multiplicar e perpetuar essa Natureza particular, embora sem a necessária consciência do que está acontecendo.”
Dito isso, temos, por outro lado, a visão de Evola: Evola via o Sol e as culturas que o adoravam, ou uma figura paterna tipificada por ele, como heróicas, viris, patriarcais e masculinos por natureza, representativos de uma espiritualidade mais elevada ou transcendente quando comparados aos sistemas “lunares” e femininos de matriarcado ou adoração de deusas. (Com relação às diferenças entre a adoração da deusa-mãe e a adoração do deus-pai, compare os pontos de vista de Crowley com relação aos Aeons de Ísis e Osíris, respectivamente). Ele associava os cultos solares patriarcais e toda a superioridade que presumia fazer parte dessas tradições aos povos nórdicos ou “hiperbóreos”. (Que ele acreditava consistir, às vezes, em gregos e romanos, entre outros, em parte devido a uma suposta migração de povos germânicos para o Mediterrâneo).
De acordo com Nicholas Goodrick-Clarke em sua obra Black Sun: Aryan Cults, Esoteric Nazism, and the Politics of Identity [N. T.: Publicado no Brasil como Sol Negro: Cultos Arianos, Nazismo Esotérico e Políticas de Identidade pela Madras Editora no ano de 2014], Evola “traçou o progresso da espiritualidade norte-atlântica entre os antigos arianos da Índia e do Irã, comentando que na Índia o termo arya era sinônimo de dvija, que significa “duas vezes nascido” ou “regenerado”.”
Goodrick-Clarke observou que, de acordo com Evola, a espiritualidade solar da Índia diminuiu com a introdução e o florescimento de práticas contemplativas, enquanto no Irã a “espiritualidade heróica” levou à adoração de Ahura Mazda.
Evola criticava o cristianismo pelo que ele presumia ser sua natureza lunar: “Evola considerava o advento do cristianismo como um processo de declínio sem precedentes”, escreveu Goodrick-Clarke. Evola via o cristianismo como um sistema que apelava para uma mentalidade “plebeia”, em vez de patrícia.
“A disseminação do cristianismo marcou uma mudança do masculino para o feminino, do solar para o telúrico, dos valores aristocráticos marciais [do império romano antes da introdução do cristianismo] para o sentimento místico plebeu.”
Assim acreditava Evola, de acordo com Goodrick-Clarke. De acordo com Goodrick-Clarke, Evola achava que os valores dos povos pagãos germânicos representavam a espiritualidade solar “contra a Igreja feminilizante” e acreditava que “o cavalheirismo defendia o herói em detrimento do santo, o conquistador em detrimento do mártir”.
O próprio Crowley criticava o cristianismo: em The Vision and the Voice [N. T.: A Visão e a Voz], Crowley relatou sua visão de um cordeiro, representando Cristo ou o cristianismo, que afirmava ser uma figura que “enganará os próprios eleitos”.
Em outra parte da obra, está escrito: “E Satã é adorado pelos homens sob o nome de Jesus…”
Crowley se referia a si mesmo, especialmente em seu papel profético como o escriba de Liber AL e profeta do Novo Aeon (o Aeon de Hórus), como A Besta 666 ou To Mega Therion—Τὸ Μεγα Θηρίον, do grego, que significa “A Grande Besta” (do livro bíblico do Apocalipse)—em oposição ferrenha ao Cristianismo.
Devo observar aqui, voltando por um momento ao tópico do Sol, que Crowley declarou que “A ‘Besta 666’ significa apenas ‘luz do sol’. Você pode me chamar de ‘pequeno raio de sol'”.
Crowley via o Novo Aeon da criança como aquele que substituiria o Aeon anterior de Osíris, o aeon do pai, tipificado pelo “reinado” dos deuses moribundos e, especialmente, do cristianismo. No Novo Aeon, Osíris—que é basicamente comparável, ou frequentemente associado, a Cristo—é derrubado por Hórus.
Crowley escreveu certa vez: “Uma pessoa enlouqueceria se levasse a Bíblia a sério; mas para levá-la a sério é preciso já estar louco”.
Em O Livro da Lei está escrito:
“Com minha cabeça de Falcão eu [Ra-Hoor-Khuit] bico os olhos de Jesus enquanto ele está pregado na cruz.”
Liber AL III:51
Em um versículo subsequente em Liber AL está escrito:
“Que Maria inviolada seja estraçalhada sob rodas: que por causa dela todas as mulheres castas sejam absolutamente desprezadas dentre vós!”
Liber AL III:55
Crowley criticou o que ele via como o absurdo da noção de pecado do cristianismo:
“A concepção cristã do pecado como a vontade do homem natural, o ‘Velho Adão’, é a base de todo conflito interno—da insanidade moral.”
Crowley chegou ao ponto de afirmar: “Os cristãos aos leões!” três vezes em seu comentário sobre um versículo encontrado em Liber AL.
Crowley e Evola: Sociopolítica
Independentemente das semelhanças entre as ideias defendidas por Crowley e Evola, poucas das que mencionei, há também certas diferenças entre os dois e os conceitos que eles propuseram. (Ainda assim, com pequenas semelhanças nas entrelinhas).
Essa é uma parte difícil de abordar no ensaio, pois mostra que, independentemente da sabedoria que qualquer um dos homens possa nos oferecer, pode-se dizer que tanto Crowley quanto Evola foram intolerantes em seus próprios aspectos. (Especificamente aos padrões contemporâneos.) No entanto, uma diferença fundamental está na ênfase que cada homem deu a seus pontos de vista bastante desprezíveis, se essas ideias deveriam ser incorporadas em suas respectivas filosofias ou permanecer como comentários passageiros ou lealdades pessoais.
Dito isso, Crowley não fez de suas declarações preconceituosas uma característica fundamental de seus ensinamentos—em vez disso, ele fez esses comentários em vários lugares em seus escritos, mas não sustentou que Thelema deveria ser um sistema sexista, racista ou chauvanista.
O mesmo acontece com a raça: embora tanto Crowley quanto Evola tenham feito declarações racistas em vários momentos de suas vidas, as opiniões de Crowley sobre raça foram, pelo menos, omitidas da própria Thelema. (Em última análise, os pontos de vista de Crowley sobre raça não são totalmente surpreendentes (embora isso não signifique que sejam justificados), já que eram compartilhados por muitos de seus contemporâneos vitorianos). Por outro lado, Evola codificou explicitamente o racismo em sua ideologia.
Crowley observou em seus escritos, às vezes, as qualidades nobres e admiráveis de várias raças, etnias e nacionalidades. (Pode-se argumentar que isso ainda é uma forma de racismo, no entanto, pois estereotipa diretamente várias raças ou etnias). Ele pregava, como parte de sua defesa d‘O Livro da Lei, que “todo homem e toda mulher é uma estrela”. (Um ponto de vista e experiência únicos que são divinos e (co-) supremos em sua essência). Liber AL contém essa mesma frase e é uma doutrina central do sistema de Crowley.
Como Pasi observou, “Apesar de Crowley poder ter tido algumas idiossincrasias a esse respeito, parece que ele se esforçou de forma mais ou menos consistente para manter essas atitudes pessoais separadas do valor universal de sua mensagem religiosa. Portanto, deve-se enfatizar que, mesmo que não seja muito difícil encontrar declarações sexistas ou racistas nos escritos de Crowley, não parece haver um componente antissemita ou racista intrínseco em Thelema”.
Evola, por outro lado, escreveu um livro sobre raça, Sintesi di Dottrina della Razza [N. T.: Síntese sobre a Doutrina da Raça], no qual escreveu e defendeu o “racismo espiritual”. Evola sustentava a opinião de que havia uma raça ariana-romana superior e falava de “raças inferiores não europeias”.
A visão de Evola sobre os judeus, pelo menos em um determinado momento, era de que eles eram “… os portadores de… um espírito [que] correspondia às ‘piores’ e ‘mais decadentes’ características da modernidade: democracia, igualitarismo e materialismo”.
Embora Evola não fosse um defensor explícito do fascismo—ele preferia se considerar um “tradicionalista radical”—suas opiniões podem ser consideradas adjacentes ao fascismo e, atualmente, Evola é considerado uma das principais inspirações e influências por trás do neofascismo. Além disso, Evola foi potencialmente um membro da agência de inteligência da Waffen-SS nazista, a Sicherheitsdienst, de acordo com certas alusões autobiográficas.
Crowley, no entanto (embora crítico da democracia e do igualitarismo), era conhecido por ser geralmente antifascista em suas opiniões (embora alguns afirmem que ele era fascinado, até certo ponto, por vários regimes totalitários): ele chamou a ideia de “fascismo feroz” e afirmou que a governança baseada na Lei de Thelema seria melhor para a humanidade. Além disso, ele participou de comícios antifascistas ao lado de sua conhecida Nancy Cunard.
Por volta de 1936, três anos antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial e cinco anos antes do início do Holocausto, Crowley pediu a seu amigo, o jornalista e editor de revistas germano-americano George Sylvester Viereck, que recomendasse O Livro da Lei a Adolph Hitler (Viereck havia se encontrado com Hitler várias vezes anteriormente), que já era o chanceler da Alemanha na época. De acordo com o biógrafo de Crowley, Lawrence Sutin, Crowley pode ter tentado fornecer influência política para Thelema ou para si mesmo, fazendo com que o Liber AL chegasse às mãos de um líder poderoso como Hitler. Arthur O’Keefe, escrevendo para a PopMatters em 2021, questionou se Crowley estava ou não tentando fornecer o livro a Hitler para que Thelema pudesse influenciar o nazismo ou a direção que ele estava tomando na época. O’Keefe escreveu:
“Será que Crowley esperava que Thelema pudesse mitigar os efeitos do nazismo e evitar a guerra? Ou foi, como Sutin sugere, simplesmente oportunismo? Seja qual for o caso, nada resultou dessa tentativa e, desde o início da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), Crowley apoiou seriamente o esforço de guerra britânico, e suas relações com Viereck chegaram ao fim.”
De fato, em um artigo sobre a magia usada por algumas das potências conflitantes envolvidas na Segunda Guerra Mundial, um escritor da Reuters afirmou que Crowley estava firmemente “do lado dos aliados”.
Então, podemos realmente dizer, como pelo menos alguns afirmaram, que Crowley era como Evola no sentido de que ele pode ter apoiado ideias fascistas ou quase fascistas? Como Pasi escreveu:
“Certamente, há uma diferença substancial entre aqueles que descobriram sua Verdadeira Vontade e aqueles que permanecem “adormecidos”, sem conhecer sua trajetória existencial; mas isso é verdade para todas as doutrinas de tipo iniciático ou gnóstico, às quais Thelema obviamente parece estar relacionada. Certamente, o lema “Faz o que tu queres” pode ser mais facilmente interpretado pelos Thelemitas hoje como a base de uma doutrina anarquista ou libertária do que de uma doutrina totalitária.”
Pasi também declarou:
“Certos aspectos da mensagem religiosa thelêmica, como o próprio Crowley os apresentou, parecem estar de acordo com certos aspectos de uma ideologia elitista e, ocasionalmente, totalitária”; no entanto, ele continuou afirmando que “esses aspectos não eram peculiares nem a Crowley nem, por exemplo, ao nazismo; ao contrário, eles permeavam até certo ponto os círculos intelectuais ingleses, especialmente os progressistas antes da Primeira Guerra Mundial. As implicações do darwinismo social, por exemplo, eram discutidas não apenas em círculos políticos radicais, mas também, e principalmente, em círculos científicos, e eram até consideradas suficientemente respeitáveis antes que os horrores do nazismo levassem a uma condenação universal e intransigente dessas ideias”.
Em 1922, Crowley se autodenominou um “democrata jeffersoniano” e, em 1945, em uma carta a Jack Parsons, escreveu que seu Liber OZ era a base de sua política e promovia o individualismo. Em vários momentos, Crowley se descreveu como um High Tory. (Representando um tipo de conservadorismo.) Em Magick Without Tears, ele defendeu abertamente uma “revolução aristocrática”.
Cunard afirmou que Crowley expressou uma raiva constante contra a perseguição aos judeus em sua época. (Embora Crowley tenha escrito negativamente sobre os judeus em pelo menos um lugar e tenha usado insultos antissemitas contra seu aluno e amante Victor Neuburg).
Evola acreditava em conspirações a respeito dos judeus, propostas pelo texto antissemita Os Protocolos dos Sábios de Sião.
A ética proposta por Crowley enfatiza nosso dever uns com os outros e com o mundo como um todo (cf. “Dever” de Crowley), bem como a não interferência na vontade de outras pessoas. Obviamente, isso é incompatível com a própria estrutura do fascismo. Além disso, Thelema enfatiza a singularidade, a individualidade, a liberdade e a divindade inerentes às mulheres, enquanto Evola acreditava que as mulheres deveriam seguir os papéis tradicionais de gênero e ser subservientes aos homens. (Cf. Metafisica del Sesso [N. T.: A Metafísica do Sexo] e Rivolta contro il Mondo Moderno [N. T.: Revolta contra o Mundo Moderno]).
Observarei, entretanto, que Crowley fez declarações bastante misóginas em certos escritos, como seus comentários sobre Liber AL.
Pasi escreveu, como mostrei acima, que certos aspectos da mensagem religiosa de Crowley ocasionalmente tendiam a concordar com o totalitarismo; no entanto, não consegui encontrar evidências de tal tendência e, ao contrário, encontrei Crowley defendendo essencialmente algo totalmente fora do âmbito do totalitarismo. Crowley escreveu:
“A regra absoluta do estado deve ser uma função da liberdade absoluta de cada vontade individual.”
O Ouro e a Escória
É claro que, apesar das semelhanças que podemos obter ao fazer uma comparação entre Crowley e Evola, ainda há certas diferenças. Dito isso, apesar das opiniões desprezíveis de Evola sobre raça, política e questões sociais, ele nos fornece certa sabedoria mágica e mística potencialmente útil. Como acontece com muitos autores e professores, devemos separar o ouro da escória. Devemos até mesmo fazer isso com Crowley—dado que ele escreveu coisas preconceituosas e odiosas em várias partes de seu material—e muitos Thelemitas tentam fazer exatamente isso. Pode ser difícil “separar a arte do artista”, mas vale a pena se pretendemos viver de forma respeitável e, ao mesmo tempo, estudar certas formas de espiritualidade.
Em todo caso, eu recomendaria os escritos de Crowley e Evola a qualquer pessoa interessada em magia e misticismo, bem como em filosofia esotérica. Os dois homens possuíam sabedoria com relação a esses tópicos, às vezes de conteúdo inestimável.
Link para o original: https://thelemicunion.com/crowley-evola-comparisons-parallels/
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