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Texto de Frater Parrhesia. Traduzido por Caio Ferreira Peres.
“Sou livre, independentemente das regras que me cercam. Se eu as achar toleráveis, eu as tolero; se eu as achar muito desagradáveis, eu as quebro. Sou livre porque sei que só eu sou moralmente responsável por tudo o que faço.”
― Robert A. Heinlein
Isenção de responsabilidade: O autor não pretende sugerir que todos os Thelemitas devam ser Anarquistas, nem que o anarquismo seja inerentemente Thelêmico. Este ensaio visa simplesmente desenvolver uma teoria do anarquismo com base nos conceitos centrais de Amor e Vontade articulados por Aleister Crowley, fundador da filosofia de Thelema. O autor nega qualquer ambição de despertar sentimentos revolucionários, pois o desejo de revolução das pessoas está sempre presente, desde que elas continuem a suportar o fardo da opressão e da exploração. Trata-se apenas de um exercício de filosofia, representando uma tentativa de entender a atual crise social, política e econômica em termos de alguns dos sistemas filosóficos mais radicais que ainda circulam em subculturas obscuras: Anarquismo e Thelema.
Introdução
Na virada do século XX, o infame filósofo ocultista Aleister Crowley proclamou corajosamente que sua revelação da Lei de Thelema, ou “Faz o que tu queres há de ser o todo da Lei”, daria início a um Novo Aeon que libertaria a humanidade da superstição e da tirania das instituições religiosas e políticas do passado. É claro que essas ideias não eram novas, mas já eram defendidas por filósofos anarquistas há mais de cem anos, com raízes no ideal iluminista dos direitos humanos à liberdade individual e à igualdade social. É mais do que provável que Crowley estivesse bem familiarizado com as filosofias políticas radicais em circulação durante toda a sua vida e, com certeza, estava bem ciente da filosofia do Iluminismo. Ainda assim, a formulação de Crowley da filosofia de Thelema foi historicamente única em muitos aspectos e adicionou uma poderosa dimensão psicológica/espiritual que foi tipicamente negligenciada na crítica do Estado apresentada pelo Liberalismo Clássico, especialmente no movimento conhecido como Anarquismo.
Na maioria das vezes, o anarquismo implica em um ateísmo amargo, enraizado em uma rejeição veemente dos ciclos de abuso justificados e perpetuados pela religião organizada. Em algum lugar da retórica da denúncia da autoridade, o Espírito se perde, como se a própria espiritualidade fosse tirânica. Mas o Espírito, seja qual for o nome que se dê a ele, é uma força de libertação, bem como uma fonte de inspiração. Por que não beber do poço da Vida, do Amor, da Liberdade e da Luz? Por que não trabalhar juntos para incentivar o autoconhecimento por meio de práticas espirituais, como rituais e meditação? Talvez o anarquismo não fosse tão propenso à apatia sem esperança ou ao niilismo autodestrutivo, se mais anarquistas tentassem derrubar a tirania de suas próprias mentes. Assim, eles poderiam desenvolver estratégias mais eficazes para desmantelar a ignorância sistêmica que domina a civilização moderna e, ao mesmo tempo, aprender a criar estruturas sociais mais sustentáveis que reflitam diretamente a Vontade do Povo, ou melhor, as várias vontades de diversos povos.
Assim, parece que os anarquistas poderiam aprender muito com o estudo de Thelema, e os thelemitas poderiam aprender muito com o anarquismo. De qualquer forma, o objetivo deste ensaio não é defender uma Thelema anarquista ou sugerir que todos os thelemitas deveriam adotar o anarquismo; em vez disso, o objetivo é desenvolver uma teoria do anarquismo thelêmico ou infundir o pensamento anarquista com a filosofia ética formulada por Crowley em suas tentativas de mapear as implicações práticas e políticas de Thelema. Após reflexão, essas duas filosofias parecem ser não apenas compatíveis, mas complementares e dignas de cuidadosa consideração. É claro que é responsabilidade de cada indivíduo chegar às suas próprias conclusões, mas esperamos que este ensaio provoque mais reflexão e discussão sobre o assunto.
Definições
Para evitar confusões desnecessárias, algumas definições básicas devem ser esclarecidas desde o início. É prática comum em filosofia tentar definir termos significativos da forma mais precisa possível, para que o leitor saiba exatamente o que o autor quer dizer com as palavras escolhidas. Isso é especialmente importante quando se lida com ideias controversas e até subversivas associadas a Thelema e ao anarquismo. Portanto, perdoem esta digressão.
Primeiro, a palavra “Thelema” está sendo usada no sentido mais amplo para significar o sistema filosófico de Aleister Crowley, incluindo todas as suas especulações éticas e metafísicas. “Thelêmico” é simplesmente usado para denotar qualquer coisa que tenha incorporado algum aspecto de Thelema, mas o título “Thelemita” é reservado para aqueles que se identificam como tal, aqueles que conscientemente adotam Thelema na teoria e na prática. Esses termos não estão sendo usados de forma elitista ou ortodoxa para determinar quais escolas de Thelema são mais thelêmicas, ou quem é um thelemita “de verdade” e quem é apenas um poser. Em última análise, cabe a cada indivíduo chegar a suas próprias conclusões com base em sua experiência pessoal. Além disso, esse tipo de debate está além do escopo deste ensaio, portanto, essas definições terão que ser suficientes.
Em seguida, a palavra “Anarquia” precisa de alguns esclarecimentos, pois há duas definições muito diferentes em circulação, que são quase diametralmente opostas. O uso mais comum da palavra significa simplesmente caos, ausência de lei, “sem regras” ou falta de estrutura. Vale a pena observar que essa primeira definição é a utilizada por aqueles que se opõem ao anarquismo, em uma tentativa de desacreditar a filosofia sem ouvi-la adequadamente. Os anarquistas, ao contrário, usam a palavra para se referir a um sistema descentralizado de autogoverno, no qual os indivíduos são responsáveis por colaborar com outros indivíduos, de modo a projetar instituições sociais que realmente representem os vários interesses dos diversos indivíduos que participam delas. Essa segunda definição de “Anarquia” é a que se pretende dar ao longo deste artigo.
Da mesma forma, a palavra Anarquista não é um rótulo pejorativo para denunciar o comportamento sem lei de terroristas e outros criminosos, como é habitualmente usado de forma errada pela mídia convencional e por políticos de esquerda e direita. Em vez disso, um anarquista é aquele que adere a um dos muitos subgêneros da filosofia do anarquismo, como as variantes inventadas por filósofos clássicos como Proudhon, Bakunin e Kropotkin, ou desenvolvidas por teóricos posteriores como Emma Goldman, Colin Ward e Noam Chomsky. Neste artigo, os anarquistas definirão o anarquismo por si mesmos, e caberá ao leitor determinar até que ponto essa filosofia é compatível com a de Thelema.
Anarquismo Thelêmico
Primeiramente, é preciso enfatizar que Crowley nunca endossou explicitamente o anarquismo ou qualquer outra teoria política. Na verdade, a maior parte de seus comentários políticos parece ser polêmica, apenas denunciando ideias e ideologias existentes; ou extremamente especulativa, refletindo sobre a possibilidade de desenvolver sociedades projetadas para maximizar o potencial humano. Portanto, seria enganoso sugerir que o próprio Crowley era um anarquista, mesmo que muitas de suas ideias sugiram fortemente os princípios básicos do anarquismo. Ainda assim, Crowley certamente adotou muitas ideias anarquistas e as integrou em sua própria filosofia. Quer tenha tomado emprestado intencionalmente do anarquismo ou não, ele certamente estava ciente das semelhanças que Thelema compartilhava com os anarquistas e fez vários comentários sobre o anarquismo ao longo de seus escritos.
Em determinado momento, Crowley fez uma observação interessante: “Não sou um anarquista no seu sentido da palavra: seu cérebro é denso demais para ser afetado por qualquer explosivo conhecido. Não sou um anarquista no seu sentido da palavra: é como um policial solto na sociedade”. (Livro das Mentiras) Além do humor óbvio dessa declaração, é uma maneira estranha de negar ser um anarquista. De qualquer forma, a citação afirma claramente o tipo de anarquista que Crowley não é, ou seja, aquele que defende o terrorismo, uma vez que nenhum explosivo afetará uma mudança significativa. Crowley continua dizendo que “não vê utilidade no emprego de instrumentos tão fracos como bombas”. Naquela época da história, um grupo pequeno, mas expressivo, de anarquistas defendia a “propaganda da ação”, que era apenas um eufemismo para a violência revolucionária.
Ainda assim, a citação acima implica que Crowley pode ser um anarquista, mas não nesse sentido. Então, em que sentido Crowley poderia ser um anarquista? Crowley termina esse pequeno discurso poético sobre o anarquismo com o comentário pontual: “Todo “emancipador” escravizou os livres”. Assim, parece que Crowley supera até mesmo os anarquistas em sua busca pela Liberdade. Ele continua explicando que discorda “do objetivo dos anarquistas, já que, embora os próprios anarquistas não precisem de restrições… os policiais, a menos que fossem severamente reprimidos, seriam bestas perigosas”. Mais uma vez, zombando da polícia. Por quê? Parece que Crowley está usando o policial como uma imagem das emoções mais baixas da humanidade, aquelas que buscam dominar e controlar os outros. É sob esse ângulo que ele diz: “Enquanto existir… qualquer homem que esteja muito aquém de MIM — sou contra a Anarquia e a favor do Feudalismo (Livro das Mentiras)”, reconhecendo claramente que o Anarquismo só funcionaria se as massas de pessoas atingissem um estágio mais elevado de desenvolvimento moral.
Agora, o que Crowley quer dizer com a defesa de um sistema regressivo como o feudalismo? Bem, parece que ele está sendo extremo para transmitir seu ponto de vista. Não basta “libertar as pessoas”, pois a verdadeira liberdade exige responsabilidade genuína. De fato, se as pessoas não tiverem a responsabilidade de lidar com a liberdade, elas podem se sair melhor sob o governo de um rei. É claro que alguns Thelemitas param por aí e insistem que voltemos a uma espécie de neofeudalismo, já que a maioria das pessoas é estúpida demais para governar a si mesma. Mas Crowley claramente tinha algo mais em mente e desenvolveu uma filosofia política que não se parece nem um pouco com o feudalismo.
Como de costume, parece que Crowley estava brincando com as mentes e emoções de seus leitores, tentando provocá-los a pensar de maneiras novas e incomuns. Assim, Crowley insiste que “A única solução para o Problema Social é a criação de uma classe com o verdadeiro sentimento patriarcal e as maneiras e obrigações do cavalheirismo”, o que soa tão conservador quanto possível (mesmo em sua época). Mas, no contexto da declaração acima sobre o anarquismo, fica claro que ele está falando metaforicamente sobre a necessidade de aqueles que atingiram estágios mais elevados de desenvolvimento moral orientarem os que não atingiram. Assim como um pai amoroso orienta a criança a desenvolver “boas maneiras” e “cavalheirismo”, não para dominá-la, mas para libertá-la, a sociedade precisa de orientação adequada se quiser ascender ao próximo estágio de desenvolvimento social e político.
Com relação à liderança, as especulações de Crowley sobre as implicações políticas de Thelema são perspicazes e provocativas. Em suas Confissões, Crowley insiste que Thelema,
“oferece a cada indivíduo a mais completa satisfação de suas verdadeiras aspirações; e fornece uma justificativa para todos os tipos de sistemas políticos além das críticas que minaram todas as teorias anteriores de governo. Não há necessidade da fraude do direito divino ou da cantilena da democracia. O direito do governante de governar depende exclusivamente da prova científica de sua aptidão para fazê-lo, e essa prova é capaz de ser confirmada pela evidência da experiência de que suas medidas realmente resultam em permitir que cada indivíduo em sua jurisdição cumpra sua própria função peculiar tão livremente quanto possível.” (Confessions)
Embora essa declaração seja diferente da posição do anarquismo em seu otimismo em relação à criação de um governo que permita que “cada indivíduo em sua jurisdição cumpra sua função peculiar tão livremente quanto possível” (Confessions), ela compartilha o sentimento de que uma sociedade justa ofereceria “a cada indivíduo a mais completa satisfação de suas verdadeiras aspirações”. A principal diferença parece estar na definição de governo. Historicamente, o anarquismo usou o termo governo, ou Estado, para se referir a uma instituição que era inerentemente despótica, como todos os governos têm sido ao longo da história humana. Em seu lugar, os anarquistas defendem formas não coercitivas de organização social. Nesse sentido da palavra, Crowley não está promovendo o controle governamental de forma alguma, mas uma forma muito sofisticada de organização social. Novamente, é muito importante entender que autores diferentes diferem no uso de palavras-chave, especialmente em filosofia.
Anarquia de Kropotkin
Como Kropotkin foi um dos filósofos anarquistas mais articulados, sua definição de anarquismo será suficiente para o propósito desta exploração. Kropotin define o anarquismo como “o ideal de uma sociedade em que cada um se governa de acordo com sua própria vontade. (Anarchism)” Em nítido contraste com o comunismo autoritário de Marx, Kropotkin apresentou a ideia do comunismo anarquista, ao qual ele se referiu como “o sistema de socialismo sem governo”. Ele também descreve esse sistema como uma “organização política da sociedade… onde as funções do governo são reduzidas ao mínimo, e o indivíduo recupera sua total liberdade de iniciativa e ação para satisfazer, por meio de grupos e federações livres — livremente constituídos — todas as necessidades infinitamente variadas do ser humano”. (Anarchism) De fato, parece que Kropotkin imaginou uma sociedade ideal para o desenvolvimento e a realização da Vontade do Indivíduo, o que é bastante compatível com a filosofia de Thelema.
Kropotkin não pensa no anarquismo no sentido vulgar de “ausência de regras”, como é comumente definido, mas como sem governantes. A ideia básica é que, na sociedade anarquista ideal, cada indivíduo governaria a si mesmo. É claro que isso pode parecer um exagero na sociedade atual, como certamente era na Rússia de Kropotkin. Ao longo da história, as massas da humanidade foram prejudicadas e não tiveram permissão para desenvolver todo o seu potencial. Assim, Kropotkin reconheceu a necessidade do desenvolvimento humano, dizendo que o anarquismo “busca o mais completo desenvolvimento da individualidade combinado com o mais alto desenvolvimento da associação voluntária em todos os seus aspectos, em todos os graus possíveis, para todos os objetivos imagináveis”. Deve-se entender que o indivíduo em uma sociedade anarquista seria muito diferente das pessoas das sociedades industrializadas modernas que foram criadas para a servidão. Em vez disso, as pessoas seriam criadas para a liberdade e a solidariedade, de modo a estarem bem adaptadas para participar de “associações sempre mutáveis, sempre modificadas, que carregam em si os elementos de sua durabilidade e constantemente assumem novas formas, que respondem melhor às múltiplas aspirações de todos.” (Anarchism) Com essa definição mais esclarecida de Anarquismo em mente, em vez da definição vulgar da qual Crowley estava zombando, parece que não haveria nenhum conflito com os princípios de Thelema.
O anarquismo, nesse sentido refinado, é uma crítica ao indivíduo tanto quanto às instituições políticas. Kropotkin previu a necessidade de desenvolvimento social e pessoal, reconhecendo com muita clareza a fragilidade emocional da sociedade industrial. A maioria das pessoas olha para os horrores da história, perpetuados até o presente, com indiferença fatalista; esquivando-se da responsabilidade, elas preferem ignorar os detalhes perturbadores. Mas Kropotkin via a crueldade histórica não como um destino divino ou uma falha inerente à natureza humana, mas como a consequência inevitável da série de abusos que a humanidade suportou nos últimos milênios. Ele entendia que o ciclo de abusos deveria ser interrompido para que houvesse alguma melhora significativa no futuro. Em vez de se entregar à apatia desesperada, ele se propôs a desmantelar os preconceitos que perpetuam as instituições da guerra e da escravidão.
Kropotkin reconheceu que a maioria das pessoas mal consegue imaginar a possibilidade de ir além do passado trágico e, portanto, o anarquismo parece pouco mais do que uma fantasia utópica. Ele aborda essa questão, afirmando que “Costuma-se dizer que os anarquistas vivem em um mundo de sonhos futuros e não veem as coisas que acontecem hoje. Nós as vemos muito bem, e em suas cores verdadeiras, e é isso que nos faz carregar o machado de guerra na floresta de preconceitos que nos cerca.” (Anarchism) A partir dessa declaração, fica claro que o anarquismo não se baseia na negação da realidade, mas no confronto direto com as crenças e os valores que possibilitam a corrupção, a opressão e a exploração sistêmicas. Assim, o anarquismo rejeita veementemente todas as formas de autoritarismo, seja do governo, da religião, da educação ou da família, pois é o abuso de poder, inerente ao exercício da autoridade arbitrária, que está na raiz da maior parte da tristeza humana. Esses relacionamentos abusivos, em que um domina o outro, produzem a ampla gama de abusos que assolam a humanidade. Essa é a causa da maior parte do sofrimento evitável da humanidade; portanto, o anarquismo busca destruir a dominação em todas as suas formas.
É claro que muitos protestarão contra o fato de o anarquismo ser muito negativo, muito pessimista em relação ao papel do Estado. Acredita-se que a anarquia é uma força destrutiva, que só destrói, nunca conserta. Mas essa suposição é falsa, pois o anarquismo está enraizado no otimismo em relação ao potencial do indivíduo de prosperar quando totalmente libertado do controle do Estado. Assim, o anarquista está totalmente comprometido com a evolução da humanidade, não apenas com a destruição do Estado. Como diz Kropotkin,
“Mas não é suficiente destruir… É por isso que a Anarquia, quando trabalha para destruir a autoridade em todos os seus aspectos, quando exige a revogação das leis e a abolição do mecanismo que serve para impô-las, quando recusa toda organização hierárquica e prega o livre acordo — ao mesmo tempo se esforça para manter e ampliar o precioso núcleo de costumes sociais sem os quais nenhuma sociedade humana ou animal pode existir.”
Anarchism
Naturalmente, esse precioso núcleo é o Amor. Assim, os anarquistas trabalham em solidariedade com toda a humanidade, não se contentando em libertar qualquer subseção da sociedade às custas de outra. Essa posição, em última análise, baseia-se na crença de que cada indivíduo tem o direito de viver como Quiser, como a expressão máxima de um amor universal pela vida. Assim, o anarquismo de Kropotkin e aquele representado pelos filósofos anarquistas mais esclarecidos não é nada niilista. De fato, essa ideia de anarquia é diametralmente oposta à definição vulgar tão frequentemente utilizada. Longe de ser uma digressão ao caos, o anarquismo representa uma ascensão a uma forma superior de organização social. Assim, o anarquista trabalha para tirar o poder do Estado e colocá-lo de volta nas mãos das pessoas às quais ele pertence.
Um Anarquismo Aristocrático
Parece que Crowley pode ter feito parte dessa escola mais refinada de anarquismo que defendia consistentemente a liberdade dos indivíduos para assumir o controle de suas próprias vidas, mas reconhecia a agressão política como uma prática bárbara que geralmente fazia mais mal do que bem. Além disso, ao contrário de muitos socialistas (incluindo anarquistas) que se ressentiam da aristocracia e queriam nivelar todos à condição do proletariado, Crowley reconhecia o valor da cultura aristocrática. Ele resume sua posição política de forma sucinta em um de seus diários, dizendo: “Tenho um cérebro socialista ou anarquista, mas um coração de aristocrata; daí a constante confusão não em mim, mas nos outros que me observam”. (“The Urn”) De fato, essa declaração explica muito sobre algumas das aparentes contradições na ética e na política de Crowley.
Para Crowley, nunca foi uma questão de escolher entre esta ou aquela ideologia; ele considerava o valor relativo de cada uma e, em seguida, construía seu próprio sistema, integrando as ideias que faziam sentido em sua experiência. Portanto, pode-se dizer que Crowley era e não era um anarquista, dependendo do sentido em que a palavra é usada. Em outro lugar, Crowley diz: “Certamente não sou um anarquista, pois a família é a menor e mais vil unidade de governo, nem um socialista, pois o Estado é a maior unidade humana”. Mas aqui ele parece estar usando essas palavras em um sentido diferente. Nessa declaração, Crowley está contrastando os interesses do Indivíduo (ou unidade familiar) com os do Estado, reconhecendo que nenhum dos extremos permitiria uma organização social adequada. Em seguida, ele conclui que deseja “um sistema patriarcal-feudal dirigido por reis iniciados”. (The Magical Diaries of ΤΟ ΜΈΓΑ ΘΗΡΊΩΝ: 32) Agora, se o termo “patriarcal-feudal” for entendido metaforicamente, como sugerido, fica claro que Crowley está reconhecendo o fato de que as pessoas precisam da orientação de professores. Assim como as crianças precisam da orientação de pais receptivos para atingir seu potencial máximo, a sociedade precisa de líderes esclarecidos que guiarão o desenvolvimento da civilização de um estágio para o outro.
Além disso, deve-se entender que Crowley não estava se referindo à “aristocracia do nascimento ou da bolsa”, como Ibsen escreveu, mas à “aristocracia do caráter, ou da vontade, da mente”. (Ibsen) Para entender o uso que Crowley faz da palavra aristocrata, basta separar a palavra. Aristo-cracia significa simplesmente o governo do melhor. É um erro presumir que os melhores são necessariamente os ricos, como a classe dominante sempre afirmou. O governo dos melhores, tomado literalmente, significaria que os mais aptos à liderança deveriam liderar. Além disso, a Aristocracia assume um significado mais sutil em um contexto thelêmico, pois implica a necessidade de cada indivíduo ser governado pela melhor parte de si mesmo, a Vontade. Pois, como disse Crowley, “Os ‘senhores da terra’ são aqueles que estão fazendo sua Vontade”. Ele continua explicando que “Isso não significa necessariamente pessoas com coronetas e automóveis [símbolos de status em sua época]; há muitas dessas pessoas que são os escravos mais infelizes do mundo”. Não, para Crowley, “O único teste de um senhor é saber qual é a sua verdadeira Vontade e fazê-la”. (The Commentaries of AL) Portanto, para Crowley, a aristocracia não tinha nada a ver com o esnobismo consanguíneo que geralmente leva esse nome; em vez disso, o termo aristocrata era usado para descrever a realização pessoal de alguém que havia desenvolvido a capacidade de liderar.
Na realidade, Crowley era muitas coisas ao mesmo tempo; nunca se prendeu a um único sistema. Isso torna muito difícil discernir sua posição exata em um determinado ponto, especialmente em relação à política e à ética. Como dedicou sua vida a abraçar aquela coisa única que é todas as coisas, ele passou a reconhecer que todas as ideologias humanas eram meramente sombras lançadas sobre a realidade pelo medo e pela ignorância da humanidade. Embora cada pensamento possa estar correto em sua esfera limitada, ele é, em última análise, falso. Talvez essa seja uma das lições mais valiosas que Crowley ensinou como requisito para fazer qualquer progresso na prática da Magia, a capacidade de suspender a identificação com qualquer ideia, exceto a única ideia em que todas as ideias se dissolvem em nada. Crowley parece ter tentado integrar esse entendimento ao formular as implicações sociais e éticas da filosofia de Thelema, assim como fez em sua própria alma. De fato, essa é certamente uma habilidade crucial quando se trata de analisar a teoria política, uma habilidade extremamente ausente na política contemporânea.
Infelizmente, a maioria das pessoas é completamente incapaz de manter dois pontos de vista opostos ao mesmo tempo, muito menos as inúmeras perspectivas representadas em uma população diversificada como a dos Estados Unidos, muito menos do mundo. Assim, as pessoas se apegam à sua linha partidária por segurança, com medo da ameaça de realmente ter que pensar sobre todos os problemas que a humanidade enfrenta, muito menos confrontar e resolver seus próprios dramas pessoais mesquinhos. Mas não é de se admirar, uma vez que os cidadãos de todas as nações industrializadas têm sido criados em fábricas até a submissão. As crianças são ensinadas a memorizar a única resposta certa ou são punidas e ridicularizadas se não se adequarem às normas sociais impostas por seus professores, pais e colegas. Em geral, elas crescem incapazes de pensar criticamente sobre as complexidades de várias ideologias, de decompor os sistemas em seus componentes mais básicos, de reconhecer quais partes são válidas, quais precisam ser aprimoradas e quais podem ser descartadas.
É por isso que os anarquistas sempre defenderam a pedagogia progressista, pois a viabilidade do anarquismo sempre se baseou na possibilidade de educar as crianças com compaixão e solidariedade. Ao contrário da opinião popular, os anarquistas não defendem uma descida à barbárie, à guerra brutal de todos contra todos. Em vez disso, o anarquismo se baseia na premissa da perfectibilidade da natureza humana, não que os seres humanos sejam perfeitos por natureza, mas que a humanidade tem o potencial de melhorar perpetuamente. Assim, quase todo o pensamento anarquista gira em torno da ideia da educação como o principal método de preparar as gerações futuras para a responsabilidade da liberdade.
Os pensamentos do próprio Crowley sobre educação refletem os dos anarquistas clássicos em muitos aspectos. (Consulte A Pedagogia de Thelema, de Frater Parrhesia, para obter uma análise completa da filosofia de educação de Crowley). Como muitos filósofos anarquistas antes dele, Crowley defendia métodos progressistas de educação que respeitavam a individualidade da criança. A ideia essencial é que todas as crianças merecem uma educação aristocrática para que possam desenvolver todo o seu potencial. A pedagogia do anarquismo decorre do entendimento de que as crianças devem ser criadas com muita liberdade para que possam adquirir a responsabilidade social essencial para a liberdade pessoal. Da mesma forma, a pedagogia de Thelema reconhece que a liberdade das crianças para explorar seus próprios interesses é essencial para o desenvolvimento da Vontade.
Em vez de defender um retorno às hierarquias arbitrárias institucionalizadas no feudalismo, Crowley defendeu uma verdadeira meritocracia em que cada indivíduo seria capacitado a fazer o que faz de melhor. De fato, isso seria aristocracia no melhor sentido da palavra, um mundo no qual aqueles que fossem mais adequados para cada ocupação teriam a oportunidade de cumprir essa função. Mas para que todos sejam o melhor que podem ser no que quer que façam, as crianças precisam de uma chance de explorar suas aspirações e habilidades, desde o nascimento até a idade adulta. Qual a melhor maneira de incentivar o indivíduo a conhecer e fazer a Vontade? Qual a melhor maneira de garantir que o futuro da humanidade venha a abraçar a Lei da Liberdade?
Diante de Alguma Conclusão
Deve-se entender que cada thelemita tem a liberdade de desenvolver suas próprias interpretações do Livro da Lei, em referência aos comentários confusos e muitas vezes contraditórios de Aleister Crowley. Portanto, não é surpresa que os thelemitas venham a entender a Lei de maneiras muito diferentes. Assim como a corrente de Thelema, o anarquismo passou a significar muitas coisas para muitas pessoas diferentes. De fato, há tantas escolas diferentes de anarquismo, com entendimentos drasticamente diferentes de anarquia, que é enganoso falar de anarquismo sem alguma qualificação. Pode-se até argumentar que o respeito à diversidade e à individualidade é inerente à teoria anarquista, de modo que é inevitável que os filósofos do anarquismo se desviem das filosofias de seus predecessores e contemporâneos de forma crítica. O mesmo pode ser dito de Thelema. Sem dúvida, existem alguns thelemitas ortodoxos por aí, que aderem a uma visão quase fundamentalista de Thelema. Mas eles representam apenas um ponto de vista entre as infinitas perspectivas adotadas por Thelemitas individuais.
Da mesma forma, este ensaio apenas apresenta mais uma perspectiva. O objetivo não é converter ninguém ao “Anarquismo Thelêmico”, mas apenas provocar uma reflexão séria sobre a interseção da Anarquia e de Thelema. A esperança é que, ao abrir a discussão sobre esses tópicos, a comunidade thelêmica mais ampla seja incentivada a refletir sobre as implicações sociais, políticas e econômicas da ética de Thelema. Além disso, muitos anarquistas poderiam ganhar muito explorando algumas das interpretações míticas do espírito do anarquismo, transmitidas na filosofia poética de Aleister Crowley.
Além disso, Thelema apresenta às pessoas um sistema de evolução pessoal que desenvolve o estado de espírito necessário para a liberdade genuína, pelo menos se as práticas forem levadas a sério. Assim, o Anarquismo faria bem em integrar o ideal Thelêmico de desenvolver a Vontade por meio de uma série de exercícios graduados. Mesmo que a ideia da Magia pareça absurda para a maioria dos anarquistas, há muito a ser dito sobre o treinamento da mente e o fortalecimento da Vontade. No mínimo, os anarquistas podem reconhecer o thelemita como um aliado, pois o thelemita busca fazer internamente o que o anarquista luta externamente.
De certa forma, a filosofia de Thelema pode ser entendida como um desenvolvimento natural, se não inevitável, do anarquismo filosófico; uma espécie de anarquismo religioso, para complementar as teorias políticas que se desenvolveram no século anterior. Nenhum individualista que se preze jamais se curvaria a qualquer tirano, seja ele humano ou divino; no entanto, o impulso religioso persiste, até mesmo atormentando os ateus mais inflexíveis. De fato, grande parte do pensamento da nova era também faz parte desse desenvolvimento, mas Crowley parece ter sido particularmente consciente dos fundamentos filosóficos de seu pensamento, quer citasse ou não suas fontes.
Sim, “Faz o que tu queres há de ser o todo da Lei” apresenta um lema poderoso que encapsula o Espírito do Anarquismo em uma única frase. A filosofia da Vontade articulada por Aleister Crowley na elaboração dessa declaração fornece uma base sólida sobre a qual se pode construir um novo entendimento do Anarquismo. Pelo menos, o objetivo deste ensaio é demonstrar como a compreensão Thelêmica da Vontade pode inspirar os anarquistas do futuro a desenvolver uma abordagem mais sofisticada para reconciliar os interesses conflitantes de diversos indivíduos. Talvez o mais importante seja o fato de que essa formulação do Anarquismo Thelêmico tem a intenção de fornecer uma contra-narrativa à ascensão do neofascismo na Thelema moderna.
Que se saiba que há inúmeras maneiras de interpretar as implicações éticas e políticas da Lei, mas que qualquer ideologia que busque usurpar o direito do indivíduo de viver como Quiser não é thelêmica. Não importa como a pessoa se identifica politicamente, se ela se inclina para a esquerda ou para a direita, desde que reconheça que “não há lei além de faz o que tu queres” e que “a lei é para todos”. Qualquer filosofia que fique aquém dessa percepção não é digna do nome Thelema. O mesmo pode ser dito do anarquismo, pois nenhuma filosofia que defenda a dominação de qualquer indivíduo ou grupo por qualquer outro indivíduo ou grupo é digna do nome anarquia. Portanto, que os Thelemitas e os Anarquistas trabalhem juntos em “amor sob Vontade” para a realização do Novo Aeon, a libertação da humanidade das pragas da superstição e da tirania.
Fonte: https://thelemicunion.com/thelemic-anarchism-anarchy-thelema/
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