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A visão de Crowley sobre o Islam

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por Tamosauskas

O Livro da Lei foi escrito em uma cidade predominantemente muçulmana e seu texto inclui algumas palavras significativas de origem islâmica como KaabaQiblah. Ainda que para uma admoestação,  Maomé, o Profeta do Islam, também é citado no Livro da Lei  e posteriormente nomeado como um santo da E.G.C. e um Magus da A.’.A.’. Em Confissões, Crowley até mesmo compara seu próprio relacionamento com Aiwass com o relacionamento de Maomé com o anjo Gabriel. Assim não é difícil encontrar no mínimo um interesse ou mesmo uma certa admiração ao Islam na obra Aleister Crowley. Entretanto, talvez pelo fato desta religião não ter um papel significativo na história formativa dos países ocidentais esta influência ainda não foi suficientemente apreciada por boa parte dos thelemitas.

Mas o Islam está crescendo. Agências de pesquisas[1] dizem que o Islamismo cresce em um ritmo muito mais rápido que as outras religiões e deve superar o cristianismo em todos os números absolutos antes deste século acabar. Sua influência e possíveis pontos de conflito e diálogo terão que ser eventualmente melhor investigados. Que este artigo, que não é senão uma coleção de citações do próprio Crowley e uns poucos comentários para dar contexto, possa ser um primeiro passo para isso.

Do Livro da Lei[2]:

O terceiro capítulo do Livro da Lei trás uma admoesteção a aquilo que Maomé representa, embora isto seja visto nos comentários apenas como uma pequena correção no nível exotérico de entendimento:

AL III,52: “Eu Ruflo minhas asas na face de Maomé & cego-o.”

Novo Comentário

O ponto de vista de Maomé está errado, mas ele não precisa de nenhuma retificação brusca como “Jesus”. É o rosto dele – seu semblante visível – que deve ser coberto com Suas asas. As doutrinas do Islã, corretamente interpretadas, não estão longe de nosso modo de vida e luz e amor e liberdade. Isso se aplica especialmente às doutrinas secretas. A crença externa não passa de baboseira adequada a inteligência dos povos entre os quais ela foi promulgada; mas mesmo assim, o Islã é magnífico na prática. Sua norma é a de um homem de coragem, e honra e respeito a si mesmo; em admirável contraste com a covardia servil dos cristãos que fogem da danação com sua aceitação desonesta e pouco viril do sacrifício vicário, bem como a concepção covarde que fazem de si mesmos como “nascidos em pecado”, “pecadores miseráveis” e “desprovidos de saúde”.

Do Liber Aleph[3]

Em diversas ocasiões Crowley coloca Mohammed, o fundador do Islam, como um Magus (9=2), um Mestre de Magick no sentido mais amplo e elevado possível, como o Logos do Aeon que tráz sua própria palavra. A Palavra de Lao Tsé teria sido o Tao, a de Moisés I.H.V.H. Ousadamente no Liber Aleph, Crowleu afirma que a palavra de Mohammad escondida em ALLA é na verdade AL LA Não-Deus. Allah não é algo que possa ser entendido pelo conceito ocidental de divindade, principalmente após as incursões cristãs na teologia. Voltando ao Liber Aleph:

74. DE MAGO ARABICO MOHAMMED

VÊ! nestes capítulos tenho Eu teu Pai me restringido, não falando de algum Eco imediato de uma Palavra no Mundo; porque, estes homens há muito se tendo retirado ao Seu Silêncio, é a Sua Palavra Única, e aquela Só, que ressoa indiminuída através do Tempo. Agora, Mohammed, que Segue, é obscurecido e confundido porque está tão perto de nosso Tempo; de forma que Eu não digo, salvo com Hesitação, que Sua Palavra ALLH possa significar isto ou aquilo. Mas Eu ouso no que concerne à Sua Doutrina da Unidade de Deus, pois Deus é o Homem, e Ele disse portanto: o Homem é Um. E Sua Vontade era unir todos os homens em Uma Fé Razoável: tornar possível a Cooperação de todas as Raças na Ciência. Entretanto, porque ele se ergueu na época da máxima Corrupção e Escuridão possível, quando todas as Civilizações e todas as Religiões haviam caído em Ruína, pela Malícia do grande Feiticeiro de Nazareth, qual dizem alguns, Ele ainda está oculto no Pó do Simum, e nós não podemos percebê-Lo em Seu verdadeiro Ente de Glória.

Apesar disto, contempla, ó meu Filho, este Mistério. Sua verdadeira Palavra era LA ALLH, quer dizer: Não (existe) Deus, e LA AL é aquele Mistério de Mistérios que teu próprio Olho penetrou em tua Iniciação. E a Ilusão e Falsidade daquela Verdade tem escravizado as Almas dos Homens, como está escrito no Livro do Magus.

Do livro das mentiras[4]

7
KEFALH  Z

OS DINOSSAUROS

Ninguém são Eles cujo número é Seis: mas eles foram seis, de fato.
Sete são estes Seis que não vivem na Cidade das Pirâmides, sob a Noite de Pan.
Houve Lao-tzu.
Houve Siddhartha.
Houve Krishna.
Houve Tahuti.
Houve Mosheh.
Houve Dionísio.
Houve Mahmud.
Mas o Sétimo homem, chamado PERDURABO, por perdurar até O Fim, no
Final não tinha Nada para perdurar.
Amén.

e

66

KEFALH XF

O LOUVA-A-DEUS

“Diga: Deus é Um.” Isto eu obedeci: mil e uma vezes por noite, durante mil e uma noites, eu afirmei a Unidade.

Mas “noite” quer dizer apenas LAYLAH; e Unidade e DEUS não valem sequer as blasfêmias dela.

Al-lah é apenas sessenta e seis; mas LAYLAH conta Setenta e Sete.

“Sim! a noite cobrirá tudo; a noite cobrirá tudo

Layla é um motivo clássico na literatura árabe e sufi referindo-se a Deus com suas conexões com a frase “meu amado”, Crowley freqüentemente o emprega neste livro como um duplo sentido para a visão apofática de Deus (que é muito coerente com a Surata 16:74, Sura 42:11, Sura 6:103, Sura 112:4, etc, e as palavras do Imam Ali e Imam al-Sadiq), e um símbolo para a ‘mulher escarlate’ da época da escrita que foi Leila Wadell.

Liber 777[5]

Ainda que a mensagem central do Islam seja a unicidade de Allah, a recitação dos seus 99 nomes é uma pratica central dentro de agrupamentos sufis. Na coluna V do 777 onde Crowley lista estes nomes há uma nota que diz

“Conforme Corão XVII:110, estes nomes a seguir são apenas títulos do Nome Inefável Único. Mas o monoteísmo não é verdadeiro para a consciência normal, mas sim apenas para a consciência do adepto.”

Esta passagem do Alcorão diz:

“Dize: “Chamai-O Allah ou chamai-o Clemente, a Ele pertencem os nomes mais belos. Nem diga sua Oração em uma voz nem muito alta nem muito baixa. Procura um caminho intermediário.”

Do Confissões [6] :

Existem muitos professores mágicos, mas na história registrada mal tivemos uma dúzia de Magos no sentido técnico da palavra. Eles podem ser reconhecidos pelo fato de que sua mensagem pode ser formulada como uma única palavra, palavra essa que deve ser tal que subverta todas as crenças e códigos existentes. Podemos tomar como exemplos a Palavra de Buda: Anatta (ausência de um atman ou alma), que estabeleceu seu eixo na raiz da cosmologia, teologia e psicologia hindus e, incidentalmente, derrubou o fundamento do sistema de castas; e, de fato, de toda moralidade aceita. Maomé, novamente, com a única palavra Alá, fez a mesma coisa com os politeísmos, patentemente pagãos ou camuflados como cristãos, de sua época.

Quanto ao meu estudo do Islã, pedi a um sheik que me ensinasse o árabe e as práticas de ablução, oração e assim por diante, para que em algum momento futuro eu pudesse passar por muçulmano entre eles. Eu tinha em mente repetir a viagem de Burton a Meca mais cedo ou mais tarde. Aprendi de cor vários capítulos do Alcorão. Nunca fui a Meca, parecia bastante antiquado, mas minha capacidade de confraternizar plenamente com os maometanos provou ser de uso infinito de muitas maneiras.
Meu sheik era profundamente versado no misticismo e na magia do Islã e, ao descobrir que eu era um iniciado, não hesitou em me fornecer livros e manuscritos sobre a cabala árabe. Estes formaram a base de meus estudos comparativos. Consegui encaixá-los em doutrinas semelhantes e outras religiões; a correlação é dada no meu 777.

“Onde as missões cristãs e muçulmanas estão em rivalidade direta, o Islã reúne as parcelas superiores e o Cristianismo as parcelas inferiores da sociedade.”

..

Em apenas um ponto, Fuller e eu estávamos em desacordo. Seu ódio pelo cristianismo se estendia à ideia de religião em geral. Ele tinha, é claro, uma simpatia em seu coração pelo Islã; a masculinidade de Maomé torna impossível desprezar sua crença em Allah. O Islã está livre da doutrina degradante da expiação e da glorificação das virtudes escravas. A atitude do muçulmano para com Allah só erra na medida em que envolve a ideia infantil de personificar os poderes do universo. É certo que devemos reverenciar a majestade da natureza e obedecer às suas leis; mas ele lutou comigo, corpo a corpo, semana após semana, sobre o assunto de Magick. Ele pretendia originalmente que seu ensaio terminasse no sexto capítulo e evitou escrupulosamente qualquer referência ao lado mágico e místico de meu trabalho; não, até mesmo para o lado filosófico no que diz respeito ao transcendentalismo.

O cristianismo nunca pode causar qualquer impressão em um maometano. As idéias antropomórficas e antropoteístas ligadas à Encarnação chocam as pessoas cuja concepção de Deus, por mais irracional que seja, é no mínimo sublime. “Deus não tem igual, filho ou companheiro. Nada permanecerá diante de Sua face.” As implicações éticas da Expiação são igualmente repulsivas para o muçulmano. Como disse Ibsen, “Seu Deus é um velho a quem você engana”. O islamismo ensina o homem a respeitar a si mesmo; sua relação com seu suposto criador é direta; ele não pode escapar da pena de seus pecados pagando o padre ou persuadindo-se de que tudo foi arranjado para ele por uma transação da mais estúpida injustiça. O budismo, de uma maneira totalmente diferente, compartilha dessa conformidade com a decência comum, e é apenas a casta inferior do hindu que realmente se convence de que sacrifícios e servilismo são suficientes para a salvação. Onde o Islã e o Cristianismo se encontram em competição aberta, como em algumas partes da África, descobre-se que apenas o tipo mais baixo de negro, como o acusado conscientemente pendurar um trapo em um pedaço de pau, aceita o Cristianismo. Qualquer pessoa com um traço de auto-respeito desdenha as superstições luxuosas que obrigamos o arcebispo de Canterbury a subscrever, mas pode aceitar prontamente a simplicidade do Islã como um estágio além do fetichismo.

A religião do maometano, ao contrário da do cristão, é positiva. Não se baseia no medo, mas no sentido real das relações do homem com Deus. Eu rio ao pensar nos bem alimentados, ociosos e ignorantes missionários em Shigar tentando converter homens deste selo. Sua simplicidade vê através da sofisticação cristã à primeira vista; e, sendo ultrajados tanto o seu sentido ético como o seu sentido de reverência, é fácil compreender que os únicos convertidos do maometismo são canalhas absolutamente sem consciência que desejam viver dos subsídios mal camuflados das missões.

Não me deixei enganar nem por um momento por meu próprio pretexto de querer estudar o maometismo e, em particular, a mística do faquir, do darwesh e do sufi, de dentro, quando propus me fazer passar no Egito por um príncipe persa com uma bela esposa inglesa. Eu queria andar com um turbante com um aigrette de diamantes e mantos de seda ou um casaco de ouro, com um talwar de joias ao meu lado e dois lindos corredores para abrir caminho para minha carruagem pelas ruas do Cairo. Para retornar a questão geral da religião. O problema fundamental nunca foi explicitamente declarado. Sabemos que todas as religiões, sem exceção, quebraram no primeiro teste. A pretensão da religião é completar e (aliás) inverter as conclusões da razão por meio de uma comunicação direta de alguma inteligência superior em espécie à de qualquer ser humano encarnado. Pergunto a Mohammed: “Como vou saber que o Alcorão não é sua própria compilação?”

É impertinente responder que o Alcorão é tão sublime, tão musical, tão verdadeiro, tão cheio de profecias que o tempo cumpriu e confirmou por tantos acontecimentos milagrosos que Maomé não poderia tê-lo escrito sozinho.

Só podemos imaginar qual teria sido a reação de Crowley diante da sobre a anomalia estatística identificada no Alcorão 1974 pelo matemático Dr. Rashad Khalifa.[7] Como todo mistério gira em torno do número 19 podemos imaginar que seus comentários girariam em torno do Trunfo do Sol e suas implicações diante de uma religião cujo símbolo e o calendário são lunares.

do Liber 813[8]

Estas palavras foram tiradas diretamente da Sura Ikhlas (A Sinceridade), cuja tradução do significado em português conversa tanto com este liber como a mais profunda espressão literária do Monismo:

Dize: Ele é Allah, o Único!
Allah, o Absoluto!
Jamais gerou ou foi gerado.
E ninguém é comparável a Ele.”[9]

Magick without Tears[11]

O mais importante de todos os esforços da Escola Branca, do ponto de vista exotérico, é o Islã. Em sua doutrina há uma leve mácula, mas muito menos do que no cristianismo. É uma religião masculina. Ele olha os fatos de frente e admite seu horror; mas propõe superá-los por pura força de masculinidade. Infelizmente, as concepções metafísicas de suas Escolas quase profanas são grosseiramente materialistas. É apenas o panteísmo dos sufis que elimina a concepção de propiciação [característica da Escola Negra]; e, na prática, os sufis são aliados muito próximos dos vedantistas para manter o domínio da realidade.

Orientalismo Subversivo

Com estas citações fica patente a influência do Islã no que diz respeito à Thelema e a função essa influência como alternativa de subversão e rebelião contra a sociedade vitoriana e, mais especificamente cristã em que Crowley foi criado.

Em “Aleister Crowley and Islam”[10], Marco Parsi faz aqui uma comparação interessante com outro esoterista moderno que normalmente seria considerado seu oposto: René Guénon. Assim como Crowley, Guénon também criticou o cristianismo e a modernidade ocidental e encontrou no Islã uma fonte de inspiração para seus próprios ensinamentos esotéricos. No entanto, enquanto Crowley usou essa influência para desafiar a moralidade dominante e defender uma ética de autoafirmação, Guénon buscou uma abordagem mais conservadora, procurando restaurar a tradição espiritual universal através do retorno ao Islã original e autêntico. Apesar das diferenças entre as visões de Crowley e Guénon, ambos compartilhavam uma postura crítica em relação à cultura ocidental e encontraram no Islã uma alternativa espiritual que ressoou em suas respectivas obras e vida. Guénon mudou para o Egito, se converteu ao Islã, e pasosu a viver como um muçulmano piedoso. Crowley fundou uma nova religião, reformando o pouco que acreditava que o Islam tinha perdido. Um reagiu como um conservador e outro como um libertário, mas ambos os gestos foram profundamente subversivos em relação à modernidade, a sociedade inglesa, ao cristianismo e ao Ocidente como um todo.

Segundo Parsi, se Crowley enxergou no sufismo uma ênfase no livre-pensamento, no misticismo homoerótico e no panteísmo foi devido a sua influenciada por sua admiração por Richard Francis Burton (1821-1890). Burton teve um impacto significativo na personalidade de Crowley como explorador, escritor e linguista. Ele foi um diplomata britânico que ficou conhecido por suas viagens exploratórias à África, Oriente Médio e Ásia, incluindo a peregrinação a Meca disfarçado de muçulmano em 1853, bem como por suas traduções de obras como “As Mil e Uma Noites” e do “Kama Sutra”.

“Crowley é exemplar aqui, pois representa, assim como seu herói, o explorador vitoriano Richard Burton, um uso do orientalismo para propósitos subversivos, ou, em outras palavras, “como uma fonte de inspiração para os europeus que buscavam desafiar ou enriquecer suas próprias sociedade”, em vez de reforçar os valores do estabelecimento.”[11]

Como demonstram o Bagh’i’Muattur, citado em Liber De Nuptiis Secretis Deorum cum Hominibus[12], lado a lado do material tântrico,  a compreensão de Crowley sobre o sufismo dependeu de percepções e interpretações que têm raízes na cultura europeia, pelo menos desde o Iluminismo, independentemente de suas correspondências com o sufismo histórico e real.

Por fim ao que tudo indica Crowley só teve contato com a vertente sunita do Islam, o que foi uma grande perda para ele e para nós. Quase todos os grandes nomes do sufismo foram shiitas. Assim não temos nenhum comentário sobre o lado iniciático do Imamato, da Casa profética ou do sagrado feminino construído ao redor da imagem de Fatimah az-Zahra. Este perda é ainda mais lamentável que o fato da biblioteca de Nag Hammadi só ter chegado ao grande público após a morte da Besta, pois já estava tudo lá presente em países em que ele nunca foi. Cabe a nós e aos thelemitas do futuro fazer as comparações e correspondências que ele nunca pode.

Bibliografia

[1] Pew Reasearch 

[2] O Livro da Lei Comentado pr Aleister Crowley, trad Johann Heyss

[3] Liber Aleph

[4] Livro das Mentiras, trad Dom Marcelo Santos

[5] The Equinox, Livros Selecionados, Editora Daemon, Tomo II

[6] Confissões, Aleister Crowley

[7] 19 NINETEEN: God’s Signature in Nature and Scripture, Edip Yuksel

[8] Liver DCCCXIII vel Ararita

[9] “Os Significados dos Versículos do Alcorão Sagrado, Samir El Hayek.

[10] Magick without Tears

[11] Marco Parsi, Aleister Crowley and Islam

[12] The Secret Rituals of the O.T,O, Francis King


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Uma resposta em “A visão de Crowley sobre o Islam”

Magnífica abordagem dialética este texto. Fica evidente a força de cada expressão das referências de Crowley nas profundidades fundadores da Religião que modelou.

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