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Texto de Kadmus Herschel. Traduzido por Caio Ferreira Peres.
Utilizada a tradução de Vitor Cei para os versos dos Livros Sagrados de Thelema publicada no ano de 2018 pela Madras Editora.
“A maneira de escrever é reta e torta.”
(Fragmento 59)
Heráclito o Sem Aeon
“O Senhor cujo Oráculo está em Delfos não fala nem esconde, mas dá um sinal.” (Fragmento 93)
Quando olhamos para os fragmentos que restam dos escritos de Heráclito, o que vemos é uma sabedoria de uma época de mais de cinco séculos antes do nascimento de Cristo e um século ou mais antes de Sócrates, Platão e Aristóteles. Em outras palavras, encontramos uma sabedoria anterior às duas principais fontes da história ocidental que são a filosofia da Grécia Antiga e a religião judaico-cristã. Se, como Aleister Crowley esperava, o Aeon de Hórus é um movimento além das influências dominantes que representavam o governo do Deus moribundo, seria útil buscar orientação também de uma sabedoria além do escopo do pensamento que dominou nossa história durante milênios. Mas encontramos tal sabedoria em Heráclito? Na Grécia Antiga encontramos uma visão de mundo abrangendo dois Aeons. A religião e o pensamento gregos primitivos representam, para nós, uma transição do Aeon de Ísis para o de Osíris. Mas a transição para Osíris foi, na melhor das hipóteses, parcial. A lenda de Delfos demonstra bem a transição. De acordo com o mito, Delfos era originalmente o lugar sagrado de uma enorme serpente feminina que vivia em uma fenda profunda na terra, de onde subiam vapores intoxicantes. A fim de construir um templo para si mesmo, o deus masculino do sol, Apolo, matou a serpente, derrubando assim as religiões femininas centradas na terra, na base da civilização grega primitiva. No lugar da deusa feminina, Apolo erigiu um templo que homenageia a visão e o insight derivados da intoxicação em que o poder masculino dominava o feminino. Delfos abrigou um grupo de sacerdotisas e sacerdotes. As sacerdotisas ficariam intoxicadas pelos vapores da terra, mantendo uma conexão com a antiga deusa ctônica, e vomitariam glossolalias[1] selvagens. Os sacerdotes do sexo masculino traduziam então a glossolalia em poesia grega ordenada que previa o futuro de uma forma enigmática.
Apolo é um deus do sol e, portanto, se encaixa na forma simbólica de Osíris. No entanto, ele não passa pelo processo necessário de morte e renascimento que é tão central para a estrutura mítica do Aeon do sol. Para essa história, os gregos tinham Dionísio, que nasceu de Zeus, pai dos deuses, mas também foi destruído e renasceu como um deus da fertilidade, da vida, da intoxicação e do teatro e da dança. Mas Dionísio estava longe de ser o deus central dos gregos que, de fato, não tinham uma única figura central em seu panteão. Zeus, que poderia se aproximar melhor desse papel, não representava ele mesmo a história da morte e do renascimento de Osíris e, embora autoritário, estava longe de ser todo-poderoso ou inquestionável. Seria necessária a engenhosidade de Platão para inserir no pensamento grego um conceito influente de uma ordem universal centralizada derivada do Bem, representado como o Sol, do qual toda a existência material havia de alguma forma caído e para o qual buscamos retornar por meio da purificação. Mas Heráclito, anterior a Platão, brinca com todas as possibilidades do panteão grego transitório mal definido. Ao fazer isso, ele nos oferece precursores úteis para o Aeon de Hórus. Vamos nos voltar para seus fragmentos e ver como isso acontece.
Heráclito o Obscuro
Heráclito é corretamente chamado de obscuro. A sua escrita segue o modelo dos enigmas e envolve-se fortemente em jogos de palavras que, dada a nossa distância da língua grega antiga, podem muitas vezes parecer-nos impenetráveis. Além disso, temos apenas fragmentos de sua obra e seu conteúdo, mesmo que tivéssemos sua obra completa, está longe de ser fácil de compreender. Na verdade, grande parte do seu trabalho parece propositalmente focado na obscuridade, como deveríamos suspeitar, considerando a sua afirmação de que “Uma harmonia oculta é mais forte do que uma harmonia óbvia”. (Fragmento 54). A sua escrita é torta e reta, como as letras e linhas com que é formada, e concorda com o que poderíamos considerar ser a afirmação do cabalista clássico de que por baixo das experiências mais óbvias e comuns estão importantes harmonias ocultas que revelam a natureza fundamental de uma realidade que “adora se esconder” (Fragmento 123). Por esta razão, Heráclito oferece-nos um conselho aparentemente contraditório: “Se não esperamos o inesperado, não o descobriremos…” (Fragmento 18). É claro que esperar o inesperado é precisamente impossível. No momento em que esperamos o que antes era inesperado, torna-se o esperado e devemos mais uma vez avançar para um novo inesperado. A questão, então, é claramente que as crenças e expectativas com as quais abordamos o mundo determinam parcialmente o que nele encontramos. O verdadeiro buscador, então, deve orientar-se constantemente em direção ao que está faltando em qualquer estrutura de significado, ouvindo o silêncio e não o som. Certamente podemos ouvir aqui um eco da “queda do porque” que é anunciada no Livro da Lei. Mortos, certamente, são todos raciocínios respeitados e esperados.
Quando passamos a ocupar essa abertura expectante para o oculto, o que encontramos? O comum de repente aparece de uma nova maneira. Ao observar um rio, descobrimos que “não é possível entrar duas vezes no mesmo rio, nem é possível tocar uma coisa duas vezes…” (Fragmento 91). Assim como o rio está sempre mudando, todas as coisas também estão em estado de fluxo, como no fluxo da água ao longo do tempo. Nós, assim como o rio, estamos constantemente fluindo e sendo substituídos por novas estruturas e matéria. Por outro lado, podemos descobrir que algo que parece unificado e consistente tem naturezas internamente distintas. “O caminho para cima e o caminho para baixo são um só caminho”. (Fragmento 60), assim como “O nome do arco é vida, mas seu trabalho é morte”. (Fragmento 48). Nesse segundo fragmento, encontramos o jogo de palavras que mencionamos. A palavra para arco em grego é a mesma que a palavra para vida, bios, com a diferença apenas na acentuação. Na experiência semelhante de que uma escada é claramente uma escada e um rio é certamente um rio, descobrimos como a escada para cima é muito diferente da escada para baixo e como a natureza fundamental de um rio, e de todo o ser, é basicamente não ser a mesma de um momento para o outro. Mas o que devemos fazer, no caso do arco, com o jogo de palavras como base de um argumento? Seja qual for a resposta que possamos dar, o fato é que há algo muito certo na sugestão de que o arco de caça está intimamente ligado à vida, à nossa capacidade de fornecer alimentos ou de nos proteger de perigos, enquanto seu trabalho é claramente o de causar a morte. Talvez haja algo sobre a vida e a morte que se conectam, ainda que de forma oculta, mais intimamente do que poderíamos pensar.
Morte na Vida e Vida na Morte
“Eu sou a Vida e o doador da Vida, ainda que o conhecimento de mim seja o conhecimento da morte.” (Liber Al vel Legis 2:6)
“Não penses, ó rei, nessa mentira: Que Tu Deves Morrer: em verdade, não morrerás, mas viverás. Que agora isso seja compreendido: se o corpo di Rei se dissolve, ele permanecerá em puro êxtase para sempre.” (Liber Al vel Legis 2:21)
“Sim! Festejai! Regozijai-vos! Daqui por diante não há o que temer. Existem a dissolução e o êxtase eterno nos beijos de Nu.” (Liber Al vel Legis 2:44).
Há poucas partes de Heráclito ou do Livro da Lei que sejam mais obscuras do que as discussões sobre a vida e a morte. Se o Aeon de Hórus nos oferece algo além de uma recapitulação da fé na imortalidade oferecida pela história do retorno do deus moribundo, então a resposta para a mentira da morte deve ser diferente da ideia de que há algo em nós, nossa alma, que vive em algum outro mundo após a morte. Em vez disso, o Livro da Lei nos apresenta a ideia de que a natureza da morte já está contida e é contígua à vida. A natureza de Hadit é muito parecida com a do arco de Heráclito. Se o conhecimento de Hadit é o da essência da vida e o segredo da morte, então a interação entre Hadit e Nuit deve conter a resposta para o enigma da morte. A própria Nuit nos conta o enigma e a resposta, “Nenhuma, respirou a luz, tênue e encantada, das estrelas, e dois. Pois estou dividida em nome do amor, pela chance de união. Esta é a criação do mundo, que a dor da divisão é como nada e o júbilo da dissolução toda.” (Liber Al vel Legis 1:28-30). Aqui vemos que o nascimento da dualidade entre o ponto vital que é Hadit, o ponto central onipresente do universo, e a extensão sem fim que é Nuit, a rainha do espaço infinito, é um jogo do nada consigo mesmo. Aqui, a equação de Crowley 0 = 2 é muito útil. Do vazio surge o jogo de opostos que, em sua oposição, se constituem e se destroem mutuamente. Tudo é Nada e Hadit anseia por se dissolver em Nuit. Essa mesma interação é, no entanto, pura alegria impulsionada pelo amor que expressa a tensão vital entre as oposições. Morrer, então, não é continuar a viver em outro estado, mas sim que Hadit, ou a vida, finalmente alcance a união com Nuit, ou o espaço infinito. Mas essa união já é um fato oculto subjacente à realidade que o iniciado pode vivenciar ao alcançar a consciência de Nuit. Essa também é a mensagem da Verdadeira Vontade, que não é uma vontade atômica pessoal, mas sim uma consciência do lugar de cada um como parte da totalidade da realidade. A morte, portanto, é uma transformação em pura Verdadeira Vontade.
Dois dos fragmentos mais enigmáticos de Heráclito abordam esse conceito. Primeiro, podemos dar uma olhada no meu fragmento favorito de Heráclito: “Mortais imortais, imortais mortais, vivendo a vida do outro e morrendo a morte do outro”. (Fragmento 62). Aqui é afirmada a interconstituição da mortalidade e da imortalidade, sugerindo que os deuses dependem dos mortais para existir e vice-versa, e também que o processo de viver e morrer estão intimamente ligados. Somos levados a imaginar que a vida dos mortais pode ser a morte sonhada de imortais adormecidos, pois a imortalidade da divindade é o sonho pelo qual os mortais anseiam. “Uma pessoa acende uma luz para si mesma durante a noite, já que suas visões se apagaram. Em seu sono, ela acende o que está morto, embora viva, e quando acordada, acende o que dorme.” (Fragmento 26). Nesse fragmento, descobrimos que a morte é como uma luz entre as sombras do sono, assim como uma vela é uma luz na escuridão, no mesmo sentido em que o mundo da vida desperta carrega e acende a centelha do sono em seu interior. A imortalidade dos mortais e a mortalidade dos deuses são, portanto, dois lados do mesmo processo. Cada um cria o outro como sua própria verdade e desejo interior. Mas é a reciprocidade que mais chama a atenção aqui, e o fato de que a relação, e não um dos lados da relação, é priorizada. Quando o mortal desperta, por meio da morte, para a imortalidade de um deus, o processo ainda está incompleto, pois até mesmo o deus sonhará mais uma vez com a mortalidade da humanidade.
Encontramos uma sugestão semelhante, embora mais concreta, com relação à vida e à morte no jogo de palavras mais complexo de Heráclito. Nele, Heráclito discute a tradição de celebrar o deus Dioniso por meio de símbolos fálicos e indulgência sexual: “Se não fosse em honra de Dioniso que eles fazem uma procissão e cantam um hino às partes vergonhosas, seu ato seria muito vergonhoso. Mas Hades e Dioniso, por quem eles deliram e celebram o festival da Lenaea, são a mesma coisa!” (Fragmento 15). O que precisamos saber para entender o enigma desse fragmento é que o termo para vergonha, aidos, se assemelha ao nome de Hades, que é escrito Aides, mas é acentuado com o que é chamado de respiração áspera, que adiciona um som de H no início da palavra. No fragmento, então, ouvimos ecos do nome de Hades nas duas palavras para vergonha, aidoioisin – vergonhoso e anaidestata – muito vergonhoso. Na harmonia oculta entre as celebrações do deus da vida, do sexo e das drogas e do deus do submundo, encontramos uma sugestão em várias camadas. Primeiro, a intoxicação e a autoperda sexual levam à experiência da consciência do todo, “a alegria da dissolução”, que é a morte. Em segundo lugar, o que é vergonhoso na vida é, talvez, visto como vergonhoso precisamente porque direciona nossa atenção para além do normal, para os segredos ocultos pelo esperado. A vergonha, portanto, oculta nosso acesso à verdade e também aponta as áreas em que uma passagem para a verdade é possível para os corajosos. Finalmente, como no caso do arco, a própria natureza da vida é servir à morte e a morte à vida. Os dois não são, portanto, dois reinos ou estados distintos, mas sim como o caminho para cima e o caminho para baixo, que são um só caminho.
Guerra, Mudança e Conflito
“Que assim seja primeiramente compreendido que eu sou um deus de Guerra e Vingança.” (Liber Al vel Legis 3:3)
“Eu sou único e conquistador. Eu não sou dos escravos que perecem.” (Liber Al vel Legis 2:49)
“A guerra é o pai e o rei de tudo. Ele faz alguns deuses, outros homens; ele torna alguns escravos, outros livres.” (Fragmento 53)
O Aeon de Hórus é a era da criança coroada e conquistadora, livre e impensada em suas brincadeiras. “A vida é uma criança brincando, movendo peças em um jogo; o poder real está nas mãos de uma criança.” (Fragmento 52). A brincadeira, entretanto, é principalmente divertida porque não é séria. Entretanto, quando levamos a sério as mudanças pelas quais o mundo passa, descobrimos que a brincadeira pode ser aterrorizante, o terrível espetáculo e a destruição de Ares, o deus da guerra. A mudança sem fim pode se assemelhar tanto a um fogo terrível quanto ao fluxo de um rio. O ditado heraclitiano, então, de que “Tudo é fluxo” é tão duplo quanto o caminho para cima e para baixo. Esse também é o caso da terrível liberdade oferecida por Hórus.
O Aeon de Osíris foi a era da ordem durante a qual toda mudança foi rejeitada. O centro da filosofia grega, após Heráclito, concentrava-se na rejeição da ilusão da mudança. Somente o atemporal, o eterno, o imutável era visto como real e digno de preocupação. Da mesma forma, no cristianismo, é um ser eterno e imutável, e o estado infinito encontrado no céu, que é o foco das pobres criaturas mutáveis da Terra. A rejeição de Osíris, portanto, pode muitas vezes vir na forma de uma aceitação da mudança em detrimento do Ser estável. Por essa razão, Nietzsche, ao rejeitar Platão e Cristo, acreditava que seguia Heráclito quando rejeitava qualquer Ser estável como uma ilusão e expressava a crença de que toda a existência era um fluxo mutável de criação, crescimento e força. Para Nietzsche, então, na medida em que a natureza da vida é a mudança, qualquer rejeição da mudança é um abraço da morte. Heráclito apresenta uma ideia semelhante quando sugere que “até a bebida de cevada se separa se não for agitada”. (Fragmento 125). Quer estejamos modelando nossa visão da realidade no rio ou na cerveja, vemos que há algo inerentemente insalubre na estagnação e na estabilidade. De fato, “Todo animal é levado ao pasto com um golpe”. (Fragmento 11). É a partir dessa perspectiva que “É preciso perceber que a guerra é comum, e a justiça, um conflito, e que todas as coisas vêm a existir por meio do conflito e são assim ordenadas”. (Fragmento 80). Com relação a isso, tive uma experiência mística pessoal da qual gostaria de falar brevemente.
Há vários anos, durante um período particularmente cheio de conflitos em minha vida, experimentei um estado místico extático enquanto observava o nascer do sol em uma praia deserta. O céu inteiro estava em chamas como se estivesse pegando fogo e, então, de dentro do fogo, ecoou a frase “Ompehda Balatah!” No Livro da Lei, durante uma passagem particularmente violenta, Hórus exclama “Bahlasti! Ompehda!” e tem havido poucas discussões adequadas sobre o significado dessas maldições. Durante minha experiência, sem ter em mente nem o Livro da Lei nem Heráclito, senti imediatamente que a frase significava “Conflito é Justiça” e que essa “era uma canção de amor”. Foi mais tarde, ao tentar uma tradução mais acadêmica, que descobri que a palavra Balatah é a pronúncia da palavra para justiça, Balt, no idioma angelical enoquiano. Ompehda, entretanto, produziu resultados menos diretos. O que se pode notar, entretanto, é que a palavra é composta de três elementos. Om-peh-da. Om é a palavra hindu que representa a mudança de estar no mundo para uma centralização no silêncio. É a transição da manifestação para o nirvana e tem o objetivo de capturar a vibração básica do universo. Peh é uma das letras hebraicas, representando a boca e correspondendo a Ares, Guerra e à carta da Torre no Tarô. Entre os vários significados possíveis, o explosivo Da é claramente uma inversão da contração centralizadora Om. Nessa palavra, então, é capturado o movimento de contração centralizadora calmante e expansão explosiva que gira em torno da essência da Guerra ou da Torre atingida por um raio. Guerra e conflito, portanto, são a Justiça e o movimento básico do universo.
“Para Deus, todas as coisas são justas e equitativas, enquanto os humanos supõem que algumas coisas são injustas e outras justas.” (Fragmento 102). Neste ponto, talvez seja apropriado dizer algo sobre a natureza do Mestre do Templo e do Magus sob a perspectiva de Crowley. O Mestre do Templo e o Magus são dois dos três níveis mais altos que podem ser alcançados pelos iniciados. Ambos os graus são encontrados “além do abismo”, o que significa, resumidamente, que eles representam uma transcendência dos níveis de realidade constituídos por dualismos como certo/errado, verdadeiro/falso e sim/não. Esses são os indivíduos que mais alcançaram o decreto de Nuit: “Nada amarreis! Que entre vós não haja nenhuma diferença entre uma coisa & qualquer outra coisa, pois daí vem dor.” (Liber Al vel Legis 1:22). A partir de nossa leitura de Heráclito, é possível sugerir que esse estado é aproximado pela realização da não expectativa, que é, em si, uma forma de “vontade pura, desprovida de objetivo, livre da ânsia por resultado” (Liber Al vel Legis 1:44). A partir desse ponto de vista, todas as coisas são justas e equitativas. Esse estado, também podemos sugerir, contém em si a consciência de Nuit, na qual fica claro que “No círculo, o começo e o fim são comuns”. (Fragmento 103). É também a partir daqui que podemos compreender que “O raio guia tudo”. (Fragmento 64) enquanto nos lembramos da descrição dionisíaca do próprio Crowley sobre a essência da força mágica “0. Carvalho Nodoso de Deus! Em teus galhos o relâmpago está aninhado! Acima de ti paira o Falcão Sem Olhos. 1. Tu és carcomido e negro! Supremamente solitário nesse urzal coberto por arbustos. 2. Para cima! As nuvens rubras pairam sobre ti! É a tempestade.” (Liber A’Ash).
O Logos e a Vontade
“…todas as coisas acontecem de acordo com o Logos…” (Fragmento 1)
Heráclito talvez seja o mais discutido por sua doutrina de que a realidade é estruturada de acordo com o Logos. No entanto, está longe de ser claro o que isso poderia significar, especialmente considerando seu ensinamento sobre fluxo universal e conflito constitutivo. A palavra “logos” no grego antigo pode significar muitas coisas. Sua tradução mais básica é “palavra”, como é usada por Crowley para significar a palavra ordenadora que inicia e estrutura um novo Aeon. Thelema, então, é o Logos do Aeon de Hórus. Podemos sugerir que o Logos de Heráclito é Conflito, ou Eris em grego antigo. Mas Logos também pode significar “razão” ou “relato”. Agora parece bastante claro que a realidade, para Heráclito, está em um estado de fluxo constante, mas também em um estado de harmonia oculta. Tudo pode ser mudança, mas é a mudança de uma peça musical improvisada e não estruturada na qual a harmonia surge naturalmente. O conflito, então, é harmonia na medida em que o conflito é tanto uma interação quanto uma interconstituição de entidades relacionais. De uma perspectiva universal, a dança e a batalha são uma coisa só.
No entanto, podemos dizer mais sobre o conceito de Logos e o conceito relacionado da Verdadeira Vontade. No fragmento 119, Heráclito afirma que “o Caráter de uma pessoa é o seu destino”. Gostaria de oferecer uma interpretação direta e depois uma interpretação mística desse fragmento. Muitas vezes, esse fragmento tem sido lido de acordo com linhas éticas bastante padronizadas. A maneira como os hábitos de uma pessoa moldam seu caráter determina o que ocorrerá com ela na vida e como ela será capaz de reagir às circunstâncias. No entanto, a palavra para “caráter” aqui é ethos, da qual obtemos a ética, mas também o conceito de ethos entendido como um contexto cultural. Se estendermos o conceito de contexto, encontraremos a ideia de que o lugar de uma pessoa no mundo é seu destino, ou seja, nossas características surgem como expressões da totalidade da existência e determinam nosso destino. Esse é, de fato, o conceito de Crowley sobre a Verdadeira Vontade. Mas há mais a dizer aqui. A interpretação mística gira em torno do mundo do “destino” nesse fragmento. A palavra que Heráclito usa é daimon, de onde vem a palavra “demônio”, mas que significava na Grécia Antiga a divindade governante que dirige e guia nossas vidas. Em outras palavras, o que se tornaria o Eu Superior Verdadeiro ou Sagrado Anjo Guardião no trabalho de Crowley. O que, então, esse fragmento pode ser visto como afirmando é que o caráter de uma pessoa, ou talvez seu lugar no mundo, é um com aquele eu divino superior que dirige nossas ações. Tornar-se claro sobre sua Verdadeira Vontade é, da mesma forma, entrar em contato com seu Eu Superior, Daimon ou Sagrado Anjo Guardião.
O último fragmento que talvez queiramos examinar amplia essa sugestão para relacioná-la ao Logos em geral. No Fragmento 115, Heráclito afirma que “a alma possui um Logos que aumenta a si mesmo”. Se todas as coisas acontecem de acordo com um Logos universal, mas, de acordo com a regra do fluxo, esse Logos representa o conflito e a mudança, bem como a harmonia resultante deles, então seria de se esperar que esse Logos da alma se relacionasse com o Logos do mundo. O Logos dentro de nós que aumenta a si mesmo, então, é a interação entre o que somos e o resto da dança que é a existência. Não seria exagero sugerir que esse Logos também poderia ser chamado de nosso Daimon, nosso Destino ou nossa Vontade. Temos então uma Vontade que se amplia no jogo harmônico da existência, no qual se expressa a Vontade, ou Logos, da Realidade.
Nota do Tradutor:
[1] No original, gibberish, denota uma fala incompreensível e sem sentido. Um bom exemplo disso seria o que os cristãos chamam de “falar em línguas”.
Link para o original: https://starandsystem.blogspot.com/2013/07/the-thelemic-wisdom-of-heraclitus.html?m=0
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