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Por Antônio Vicente.
Faz o que tu queres há de ser tudo da Lei.
[…] Falar a respeito de Deus é difícil. Tudo depende da definição que damos àquela palavra. Mas para mim não há dúvidas quanto à existência de seres poderosos e inteligentes, e de um nível de desenvolvimento muito superior ao da raça humana. É este silogismo que faz da Magia um imperativo: através dela podemos entrar em contato com tais inteligências ou podemos desenvolver qualidades em nossas mentes que se aproximem das deles. A existência do universo é uma prova de que assim deve ser. Em resumo, Magia é o ofício de entrar em contato com tais Seres; Misticismo é a arte de desenvolver a mente para se atingir um estado equivalente ao deles.
– Aleister Crowley, 1947.
O ANO DE 1909 foi muito significativo para o cenário thelêmico: Aleister Crowley conquista o 7o Grau de Iniciação – o de Adeptus Exemptus 7°=4 da A.’.A.’. e escolhe o mote OU MH; as iniciações da A.’.A.’. são abertas, pela primeira vez, para candidatos que não faziam parte do grupo inicial dela; sai a primeira edição de Liber 777 e no período de 03-11 a 19-12 Crowley e Victor Neuburg realizam operações ritualísticas utilizando-se do Sistema Enochiano de Magia. Tais operações ocorreram na Argélia, um país do norte da África, culminando em Liber 418 – também conhecido como A Visão & a Voz. Essas Operações foram tão místicas e profundas que, em meio a elas, mais precisamente em 3-12, Crowley ascende ao grau de Magister Templi 8°=3, assumindo o mote de V.V.V.V.V., durante sua jornada psíquica pelo 14o Aethyr.
De todos os eventos em epígrafe, vamos nos ater a Liber XXX AERUM Vel Saecvli Svb Figvra – CDXVIII – sendo os Anjos dos 30 Aethyrs – mais conhecido como A Visão & a Voz pois ele descreve, de forma objetiva, experiências relacionadas à exploração dos planos sutis. Além disso, nos faz perceber que a Magia Enochiana tem muito mais a oferecer: ela não é somente um sistema para se contatar com determinados seres mas também pode servir como um portal de exploração dos planos interiores e propiciar a consecução de estados mais exaltados de consciência, como aconteceu com Crowley.
Um Flash Sobre a Magia Enochiana:
O sistema conhecido como Magia Enochiana foi transmitido ao Dr. John Dee, um catedrático da corte da rainha Elizabeth, através da sensitividade de Edward Kelley, no período de 1582 a 1587. Sabe-se que foi uma falange de seres espirituais que teriam se apresentado como sendo os mesmos anjos divinos que haviam instruído ao patriarca e profeta Enoch. Para tais comunicações, Kelly utilizava-se de uma bola de cristal e relatava suas visões a Dee que, então, as anotava.
A Magia Enochiana é um sistema de Teurgia (técnica para convocar e comandar seres angélicos), bem como de Goécia (um método para convocar e comandar seres demoníacos) e, basicamente, é composta de 02 partes:
1ª Ensinamento fragmentados: pequenas partes que não estavam em ordem lógica e que foram misturadas. Esses ensinamentos versavam sobre a invocação dos anjos planetários, utilizando um sistema de sigilos e quadrantes de Magia. É genericamente conhecida sob o nome de Heptarchia Mystica.
2a A parte que é mais utilizada pelos magistas, é composta pelas 04 Torres de Vigia, as Chaves ou Chamadas Enochianas e o vocabulário da Linguagem Enochiana.
Apesar de estarem separadas, é importante que o magista una, por sua arte, ambas as partes para poder trabalhar com o sistema em sua plenitude. Sobre os Portais e a Chaves é importante dizer que: as Chamadas são evocações poéticas que podem abrir os Portais para as cidades de sabedoria que são 49, ao todo. Entretanto, um dos Portais é muito sagrado para ser aberto; assim, as Chaves reais são 48. Os portais acessam às cidades de sabedoria que são reinos espirituais habitados por diferentes hierarquias de anjos, com funções distintas na Terra. Aquelas cidades celestiais são representadas por 49 números-quadrantes de letras extremamente complexos, que contêm 49 linhas e 49 colunas.
Conforme compreenderemos ao final deste artigo, a Magia Enochiana pode ter uma finalidade mais profunda e transcendental do que aquela que comumente se lhe atribui (Teurgia ou Goécia). Existem níveis de mistério e poder na Magia Enochiana que poucos ocultistas ousam explorar. O que devemos ter em mente é que o Sistema Enochiano também, a despeito de sua complexidade, pode servir a uma finalidade mais elevada; e que o magista deve buscá-la dentro de si. Um belo exemplo nos é dado por Crowley em Liber 418. Ali, o Sistema Enochiano se mostra desvelador, um agente facilitador, da obtenção de estados gloriosos de consciência, levando-nos aos portais da Grande Iniciação, conhecida Iluminação ou Conversação com o Sagrado Anjo Guardião.
A Visão & a Voz:
A Visão & a Voz é o registro das explorações que Crowley e Neuburg fizeram dos planos sutis a partir da utilização da 30a Chamada Enochiana. Nessas Operações, Neuburg (Frater O.V.) atuava como escriba das visões que Crowley tinha após as invocações. Usava-se uma bola de cristal como veículo para visões. Sabe-se que durante esses ritos, visões muito belas e interessantes eram obtidas. Essas visões mostraram-se muito profícuos e forneceram subsídios para muitos trabalhos futuros de Crowley, especialmente para a criação do Tarot de Thoth, que deve muito de seu simbolismo a essas Operações. Além disso, temas relevantes como a Travessia do Abismo e a realização da Grande Obra são tratados. Estaremos, portanto, discorrendo sobre essas duas temáticas muito significativas para todo buscador.
Como dissemos antes, durante essas Operações Crowley atingiu níveis elevados de consciência (o Grau de Mestre do Templo). Este é um dos mais exaltados graus da Grande Fraternidade Universal (também chamada de Grande Fraternidade Branca – sendo o termo Branca desprovido de qualquer conotação racista – antes, alude à fusão dos sete raios ou vias de iniciação). Conforme afirmamos nas Monografias da SETh: “a G’.’F’.’U’.’ é composta de consciências que examinam, dinamizam e dão impulso aos conhecimentos Arcanos, bem como veiculam novos conhecimentos aos seus representantes terrenos quando assim se faz necessário.” O que precisamos ter em mente quando lidamos com assunto tão delicado é que tais consciências estão além de nossa capacidade imediata de compreensão. O que se pode afirmar é que elas atingiram maestria pessoal e, por conseguinte, o domínio de algumas Leis Cósmicas e transcenderam a dualidade. Já são capazes de perceber que ao nível da Mônada, do Purusha ou do Iehida não existe nem o eu, nem o tu, mas sim um continnum de existência. Em outras palavras, estão cientes de que a sensação de que somos seres independentes e separados uns dos outros não é real.
Um dos objetivos do Ocultista é atingir essa consciência de unidade com todos os seres e vencer esse condicionamento a que estamos acostumados: o da separatividade. Atravessar o Abismo (cruzar Daäth) é justamente partir do Eu para o Não-Eu, do Ser para o Não-Ser, isto é, é cruzar a ponte da consciência humana (separativista) para se mergulhar em uma consciência mais profunda e abrangente, porque não dizer, divina. Implica, portanto, em um abandono de tudo aquilo que temos e somos. Em Thelema, tal processo é metaforicamente descrito como o derramar de cada gota de sangue na Taça de Babalon. Assim, quando se cruza o Abismo, há um renascimento e temos um novo Bebê do Abismo que está apto para assimilar o Entendimento (a esfera de Binah).
No decurso desta Operação, Crowley cruzou o Abismo diversas vezes e confessa o estado de quase insanidade que era submetido ao passar por tais experiências. Talvez a música de Raul Seixas, Maluco Beleza, quando fala da maluquez misturada com a lucidez possa ilustrar melhor esse processo. Assim, não podemos pensar que Cruzar o Abismo seja uma experiência que ocorra apenas uma vez. Na verdade, é um processo cumulativo e que pode levar anos. No caso de Crowley, as vivências relatadas em A Visão & a Voz foram por ele consideradas como a culminação de anos atravessando ‘abismos’. Na verdade, o Abismo faz parte da nossa caminhada, está sempre conosco e o atravessamos paulatinamente à medida que procuramos e direcionamos nossa consciência para planos mais sutis.
Muitas das vezes, a exploração de um Aethyr não se consolida imediatamente. Ao trabalhar com 14o Aethyr, por exemplo, Crowley não obteve muito sucesso e teve que repetir a operação. Numa dessas tentativas, ele foi impelido a parar o ritual e executar um rito cerimonial utilizando-se da Magia Sexual. Em suas Confissões, ele menciona que para cruzar este abismo
[…] eu tinha me apegado a certas concepções de conduta que eram perfeitamente adequadas para mim, sob o ponto de vista humano, mas que eram incompatíveis com a iniciação; eu não poderia cruzar o Abismo até que elas tivessem deixado completamente o meu coração.
Na noite de 3 de dezembro, ele retornou ao local da Operação e prosseguiu com seu trabalho com aquele Aethyr. Desta vez, ele obteve êxito e sua consciência se transportou à Cidade das Pirâmides como Nemo (Nenhum), um Mestre do Templo. A partir desta experiência, o lado mundano de Aleister Crowley ficou abaixo do Abismo e sua consciência transcendeu à identidade humana, permitindo o desabrochar do Adepto (Frater V.V.V.V.V. – Vi Veri Universum Vivus Vivi – Durante Minha Vida, Conquistei o Universo pelo Poder da Verdade). O ‘sangue’ havia sido derramado na Taça de Babalon, a individualidade transcendida e o prazer da dissolução no Oceano Cósmico sentida.
De acordo com a Tradição, só recebem a influência de Binah aqueles que chegaram à plena compreensão de que a personalidade é um instrumento para a Divindade. Um Mestre do Templo é aquele que está plenamente aberto às influências de Yehida, o Eu Universal. Este Eu é a expressão positiva e negativa do Grande Agente Mágico ou Luz Astral, representado no Arcano VII, pela esfinge. Aliás, o Arcano VII é símbolo do Mestre do Templo. O campo de maestria de um Mestre do Templo é o poder da palavra atribuindo à letra cheth e ao 18° Caminho. Um Mestre do Templo conhece o segredo da Magia do verbo e do poder das letras. Não é ansioso e tem pouca curiosidade sobre o futuro. Ele vê o que está próximo e, às vezes, o que está distante; mas sabe que o futuro é o presente. Ele é capaz de “viajar” livremente pelos diversos níveis de consciência de seu próprio ser. Um antigo adágio Rosacruciano diz: Um Mestre do Templo tira suas forças da águia, isto é, pelo uso da estimulação das correntes nervosas do cérebro que, no ser humano comum, têm sua válvula de escape através da função sexual. Um Magister Templi recria seu corpo a partir da Morte (Arcano XIII). Assim, ele vive com alegria, livre das limitações do tempo e do espaço e das restrições de suas atividades pessoais. Pela influência que recebe do caminho de Zain, o Mestre do Templo é capaz de agir como um agente das forças criativas que a bíblia chama de Elohim, pois ele é um templo vivo do Senhor do Universo.
Desta forma, o ponto focal da iniciação é transcendência, isto é, é ir além da identidade humana e despertar-se para a verdade de que somos muito mais que um corpo físico. É estarmos cientes de que somos um conosco, com o outro, com a natureza e com o próprio universo. Quando falamos em consciência extraterrestre é exatamente isto que queremos dizer: uma consciência lúcida de sua verdadeira natureza que percebe a si mesma como sendo una à Criação; se sente parte do todo, sabe e cumpre seu papel (dharma) dentro do esquema Cósmico.
Normalmente, o Sistema Enochiano é empregado de duas maneiras: invocação de entidades ou projeção aos planos sutis. Mas quando levamos em consideração as consecuções místicas que Crowley obteve e que são relatadas em a Visão & a Voz, percebe-se que ele não fez dela apenas uma exploração convencional. Ratificamos que ele a utilizou como uma espécie de trampolim para acessar níveis profundos de iniciação. Tal proposição pode ser ratificada quando levarmos em consideração o número 418 que designa este Liber. Quatrocentos e dezoito (418) é o número da palavra mística Abrahadabra que é símbolo da união do micro com o macrocosmo (a Grande Obra).
A amplitude de tais visões, obtidas a partir do trabalho com o Sistema Enochiano, podem ser vislumbradas nessa passagem extraído das Confissões de Crowley:
Quando atingi Bou Saâde e iniciei o trabalho com 20o Aethyr, comecei a compreender que essas visões eram, por assim dizer, cosmopolitanas. Elas me trouxeram a relação harmoniosa que perpassa a todas as doutrinas mágicas. O simbolismo dos cultos asiáticos; as idéias dos qabalistas, judeus e gregos; os arcanos gnósticos; o panteão pagão, de Mitras a Marte; os mistérios dos antigos egípcios; as iniciações de Elêusis; a saga escandinava; os rituais célticos e os druídicos; as tradições do México e da Polinésia; o misticismo de Molinos assim como o islâmico uniram-se harmonicamente sem o menor conflito. Todas as tradições do velho aeon surgiram reverentes a Hórus, a Criança Coroada e Conquistadora, o Senhor do aeon anunciado pelo O Livro da Lei. Essas visões cristalizaram, de forma dramática, as conclusões teóricas que eu havia parcialmente chegado, a partir do estudo comparativo das religiões. Além disso, tomei consciência de que esta Operação era muito mais do que uma exploração impessoal a qual eu tinha me proposto fazer. Senti que havia uma mão que segurava meu coração, que um sopro sussurrava palavras em uma língua desconhecida cujo sotaque era muito feio e, como em todo encantamento, ela me envolvia com uma energia poderosa que atuava em minha vontade, de uma maneira inescrutável.
A Visão & a Voz de Babalon em Liber 418:
Para ter acesso às suas visões, Crowley utilizava uma grande pedra de topázio dourada, sobre uma cruz grega que tinha 49 pétalas de rosas, gravadas ao redor. De posse desta sagrada regalia, iniciava-se as Chamadas. Crowley comenta como era a natureza de suas visões durante as Operações:
Aprendi a não me preocupar em viajar com meu corpo astral para algum lugar específico. Percebi que o espaço não era nada em si mesmo; é meramente uma categoria convencional (uma de muitas), através da qual podemos distinguir um objeto do outro. Quando digo que estava em um Aethyr qualquer, quero dizer que simplesmente estou no estado característico e peculiar dele, isto é, sentindo sua natureza. Assim, meus sentidos podem receber as impressões sutis para os quais foram treinados a registrar, me torno ciente dos fenômenos que se passam em tais planos ou mundos, a exemplo de um ser humano comum que está ciente do plano físico. Eu descrevo o que vejo e repito o que ouço e Frater O.V. anota minhas palavras e, casualmente, ele observa algum fenômeno que considera peculiar.
É curiosa a presença do número 49 no total de pétalas que ornamentavam a cruz. Curiosa porque 49 é um numero associado à Babalon. Os thelemitas identificam a Sephira Binah (o Entendimento) com Babalon. Também devemos observar que, em relação à fórmula de IHVH (o Tetragrammaton), Binah corresponde ao primeiro He, enquanto Malkuth ao segundo. Assim, temos uma fórmula de transcendência: o Hê final, a Terra (Malkuth ou a Divina Shekina) seria uma segunda manifestação de um mesmo princípio cósmico, o que permite à criação manifesta ascender a planos que normalmente escapam à nossa percepção imediata.
Binah é a primeira Sephira (emanação ou envoltório) que encontramos tão logo cruzamos o Abismo. Daí deriva seu Mistério: a impossibilidade de se discursar sobre Ela. Só a experiência direta é que poderá desvelar esse Grande Arcano. Na Visão & a Voz, Babalon foi acessada por Crowley no 2o (as descrições das visões no livro são feitas em ordem decrescente, do 30o a 1o Aethyr) Aethyr Enochiano, chamado de ARN, no qual é dito:
Todo homem que me viu jamais me esqueceu. Eu venho muitas vezes nas brasas do fogo, e sobre a suave pele branca de uma mulher, e na constância da cascata, e no vazio dos desertos e pântanos, e sobre grandes penhascos a beira-mar; e em muitos lugares estranhos, onde os homens não me buscam. E muitas milhares de vezes ele não me contemplou. E por fim Eu me lancei nele como uma visão golpeada em uma pedra e quem Eu chamo deve seguir.
Seguir o chamado da Deusa pressupõe disponibilidade para conviver como a desolação e superar os ordálios inerentes a tal consecução, até que estejamos aptos a cavalgarmos com Ela, sentindo todo o seu Prazer e Deleite. Na visão de ARN, Tifon, o Deus da Tempestade, leva Crowley ao desatino, mostrando-lhe como são inúteis todas as formas de adoração que ele conhecia. Tifon, assim, brada:
Desesperança! Desesperança! Pois podes enganar a Virgem e também adulares a Mãe; mas o quê dirás à antiga Prostituta que está entronizada na Eternidade? Pois se ela não quiser, não há força ou astúcia, ou qualquer saber que possa prevalecer sobre ela. Tu não podes cortejá-la com amor, pois ela é amor. E ela tem tudo, e não precisa de ti. E tu não podes cortejá-la com ouro, pois todos os reis e capitães da terra, e todos os deuses do céu, derramaram o seu ouro sobre ela. Assim ela tudo tem, e não precisa de ti. E tu não podes cortejá-la com sabedoria, pois o senhor dela é Sabedoria. Ela tem tudo isto, e não precisa de ti. Desespero! Desesperança!
Ao Adeptus Exemptus, entretanto, Crowley entregou o sutra sagrado Liber Cheth Vel Vallum Abiegni como sendo a fórmula de Realização da Grande Obra, através da devoção a Nossa Senhora Babalon. Segundo ele, o texto instrui o aspirante em como dissolver a sua personalidade na Vida Universal.
Michael Stanley, em seu artigo The Vision and the Voice, chama a nossa atenção para o fato de que, para além do caráter monoteísta que circundava as operações de Dee, uma leitura atenta dos diários dele, denuncia a presença de uma entidade feminina com características babalônicas por trás das comunicações. Essa entidade chamava-se Madimi. Algumas comunicações de Madimi revelam uma beleza poética que se aproximam muito daquelas que Crowley nos fornece em A Visão & a Voz. Seria essa mesma entidade que Crowley, quatro séculos depois, reencontraria?
Sabe-se, ainda, que Kelley nunca conseguiu ver Madimi no cristal, mas ouviu a sua voz. Certa vez, quando ele indagou o seu nome, ela respondeu furiosamente: Eu Sou o que mais queres? Quando Dee relutava em obedecer a certas imposições dela, ela o ameaçava. Certa vez, ela até mesmo chegou a propor uma troca de esposas aos dois, para que o trabalho mágico tivesse a continuidade desejada. Apesar do espanto, Kelly e Dee e suas esposas realizaram o pedido.
Ao investigarmos o 7o Aethyr, Kelley canalizou uma bela mensagem mas que, devido aos condicionamentos da época, foi considerada aterrorizante e foi a gota d’água que levou Dee a parar com as comunicações.
A seguir, reproduzimos fragmentos desta comunicação, conforme encontramos no artigo de Stanley. Reparem que o texto faz menção a um porvir da Deusa. Seria isso uma referência à chegada do Novo Aeon, alguns séculos depois?
Eu sou a filha da Fortaleza e em minha juventude fornico continuamente. Eu sou o Entendimento, e a Ciência reside em meu ser; os céus me oprimem e eles me cobrem e me desejam com apetite infinito; pois quase nada que seja terreno me abraçou, pois sou a sombra que recai com o Círculo de Pedras, e coberta com as nuvens da manhã. Eu sou uma prostituta para aquele que me violenta, e uma virgem para quem não me conhece. Purguem suas ruas, Ó vós filhos dos homens, e tornem suas moradas limpas; tornem-se santos, e vistam a retidão. Joguem fora vossas velhas prostitutas e queimem suas roupas; assim, trarei filhos a vós e eles serão os Filhos do Conforto. […] Prepare para mim pois eu voltarei em breve para residir entre vocês.
É interessante notar a menção que o texto faz à Fortaleza, uma vez que Crowley chamou a carta A Força de A Luxúria; bem como a presença do termo Entendimento que se aplica à esfera de Binah. Conforme nosso artigo anterior, Jack Parsons & a Operação Babalon (Revista Sothis, Vol. I, N.5), falamos rapidamente do simbolismo de Babalon presente no Tarot de Thoth, o Arcano ou Chave XI – a Luxúria. Ali também ressaltamos que boa parte da compreensão que Crowley obteve sobre o Mistério de Babalon, deve-se muito às suas experiências com o Sistema Enochiano durante esta Operação.
A partir das descrições de Babalon – quer via canalizações de Dee, quer através do texto de Parsons, dos escritos de Crowley ou mesmo do Tarot de Thoth, fica patente uma trilogia que nos ajuda a desvendar esse arcano: Beleza, Desejo e Magia. A Besta que Ela monta alude a uma energia de natureza primitiva e criativa, além da razão. Contemplar Babalon em toda sua nudez é contemplar sua própria morte ou aniquilação, isto é, a dissolução da ilusão de separatividade que mergulhamos.
Notem que a morte ou o amor dos santos é de fato um acréscimo de vida. A fórmula de 156 é a copulação constante ou um Samadhi com tudo.
– A Visão & a Voz.
Por falar em santo, ainda encontramos em A Visão & a Voz, mais precisamente no 12o Aethyr, a santidade a que faz jus um Mestre do Templo: “o santo é aquele que aperfeiçoou sua devoção à Babalon” (Binah). Apesar desta feliz definição, faz-se mister também destacar uma outra presente em Liber XV: “são tidos como santos todos aqueles que adoraram o Senhor da Vida e que são capazes de espargir suas divinas bênçãos entre as legiões de seres vivos.”
O Quinto Aethyr:
Uma Flecha para a Grande Obra:
A fórmula completa da Magia está descrita em 11 palavras: Faz o que tu queres há de ser tudo da Lei. O significado básico desta fórmula é de que a lei básica, a tendência de cada indivíduo, é em direção à total transformação de si mesmo: de um ser limitado (o qual ele acredita que é) para a sua realidade última que é em essência (um ser transcósmico, extraterrestre, extradimensional).
– Kenneth Grant, Outside Circles of Time.
Para concluirmos este artigo, gostaríamos de fazer um fazer um comentário sobre um assunto fundamental para todos os estudantes do Oculto: a realização da Grande Obra. No 5o Aethyr, é predominante a visão de uma flecha. Esta flecha é a flecha da Vontade e da Verdade. A visão ali narrada é muito inspiradora e sublime, elucidando a essência da filosofia thelêmica.
Como já frisamos antes, há uma relação entre A Visão & a Voz e a concepção posterior dos Atus de Thoth. Quando falamos em Grande Obra, em termos de Tarot, é inevitável que não falemos do Arcano XIV (A Arte ou A Temperança).
Do ponto de vista astrológico, este arcano é atribuído ao signo de Sagitário que é regido por Júpiter. Sagitário é o arqueiro e a palavra hebraica para este signo é Queshet que também significa arco. No Tarot de Crowley, temos uma figura central andrógena que é perpassada por uma flecha que se eleva do plexo solar em direção aos centros psíquicos superiores. Esta flecha que é um símbolo de direção, do dardo veloz da Vontade, emana do fogo para consumir os pensamentos vagueantes.
Notamos que a personagem está concentrada e direciona conscientemente suas ações; logo, temos neste Atu a simbolização da Verdadeira Vontade. O arqueiro, a flecha e o alvo são um, há uma espontaneidade que vai além do caos e do controle. A Verdadeira Vontade não tem sua própria vontade, ela é a própria vontade. A flecha (que também aparece no arcano VI – os Amantes) é a fonte de todo o movimento; é um movimento infinito sem movimento e, portanto, do ponto vista da iluminação, não há movimento, nem matéria. Esta flecha mantém elos simbólicos com o Olho de Shiva. Mas por não haver movimento, o universo não é destruído. Ele é expandido e é engolido pelas vibrações da Pluma de Maät, que são as plumas da flecha; mas tais plumas não vibram.
Esses paradoxos paralisam as análises intelectuais, extrapolam os limites da razão. A Verdadeira Vontade não é algo que o indivíduo possa possuir. É esta Vontade que cria lila, a brincadeira ou a ilusão da manifestação, e se expressa através dela. Tudo é um aspecto desta diversidade e nada aí está aparte ou separado. Tais paradoxos são também encontrados na expressão 0=2, familiar aos thelemitas. Também sabemos que existe uma estreita ligação entre Thelema e alguns apontamentos do TAO. Em Thelema, assim como no Yoga, a análise racionalista é inútil; aliás, o Yoga chama o racionalismo excessivo de cacá bishna (excremento de corvo). Antes, privilegia-se o insight, a intuição e o fruto direto das experiências quer mágicas, quer místicas. Nesta direção, Liber 418 é um exemplo.
Quanto ao Arcano XIV, não podemos deixar de considerar a letra hebraica que corresponde a ele: Samekh. Sendo a terceira das três letras serpentinas do alfabeto judeu, sua forma lembra a serpente que morde a própria cauda – o Ouroboros, da tradição gnóstica – símbolo de completude e eternidade. Como verbo, Samekh significa apoiar, sustentar, escorar ou estabelecer. Como substantivo significa apoio. A forma primitiva desta letra era de uma estaca para sustentar uma tenda. O que sugere estabilidade e firmeza para sustentar nossa Vontade. Também o número 14 não pode ser ignorado: 14 é o valor numérico da palavra Zauhab que significa ouro. Este é o ouro da luminescência, o ouro filosofal que representa a verdade perfeita.
O estado mental que esse Arcano evoca é o da presença real de Deus ou o Conhecimento e Conversação com o Sagrado Anjo Guardião e a Verdadeira Vontade está intrinsecamente ligada a Ele (é personificada nele). A imagem do andrógeno representa a quintessência, a integração dos contrários.
A dicotomia, a dualidade, que é metaforizada na figura de Choronzon, é uma limitação própria do plano terreno que se dilui, se dissolve à medida que nos tornamos mais receptivos aos influxos de nosso Eu Interior. É esta aproximação, essa comunhão com as inteligências extraterrenas que é o foco da Magia; assim, qualquer outra atribuição dada a ela é equivocada. Magia é arte de se estabelecer contatos conscientes com inteligências superiores e o Yoga é o método de preparação do corpo para que este possa estabelecer tais contatos, bem como dar condições para que ele suporte os impactos próprios desses encontros.
Do ponto de vista iniciático, o Conhecimento e a Conversação com o Sagrado Anjo Guardião é um fenômeno universal e tem a ver com um despertar, uma iluminação, uma conscientização maior do Cósmico. A experiência é real independentemente da nomenclatura (Satori, Cruzar o Abismo, Consciência Cósmica, União com Deus, Iluminação…). E mais, de acordo com o as Visões do 17o Aethyr, uma vez estabelecido um contato efetivo com o Sagrado Anjo Guardião, o vínculo é permanente, não sendo, portanto, um fenômeno temporário ou que possa ser destruído pelo que quer que seja.
O Conhecimento e a Conversação não é um fim em si mesmo, mas é uma das fases mais gratificantes da senda. É um vislumbre do que está para além do nível terreno e para além do nível de Tiphereth, conforme a Visão & a Voz tangencia.
Os métodos para tal consecução são muitos: abstinências diversas, Magia sexual, Liber Samekh, as instruções do 8o Aethyr, Magia de Abramelin, dentre outras. Independentemente do método utilizado, o fator primordial em tais operações é a devoção em relação ao Anjo. Neste particular, um conhecimento sobre os fundamentos do Bhakti–Yoga (a união pela devoção) não pode ser desprezado.
A iluminação, o derramar o Sangue na Taça de Nossa Senhora Babalon, não é um processo gradual; antes é uma mudança súbita, intensa e letal para o ego: é a sua consumação nas chamas da transmutação, conforme ilustra o arcano XVI do Tarot. O tempo para cada um atingir essa consecução é individual. Uns levam mais, outros menos tempo. Portanto, não podemos dar espaço para a ansiedade quanto a isto, pois ela é um grande obstáculo. Como diz a Lei sem ânsia de resultado.
Por experiência, sabemos que três anos de intenso trabalho sobre si mesmo já nos permite vislumbrar aspectos da realidade transcendente. Dr. Spencer Lewis, da AMORC, dizia que para o Mundo Ocidental um despertar efetivo era mais lento, em função das condições em que vivemos, e apontava para uma média de 20 anos de profícuo trabalho iniciático. Independentemente de querelas temporais, citamos o dito anterior apenas como referência, o que não deve gerar expectativas. O mais importante é nos dedicarmos a cada dia com afinco na vivência da iniciação em todos os aspectos de nossa vida e meditarmos continuamente para que possamos, no devido momento, comungarmos com as hostes extraterrenas as sublimes bênçãos da existência universal, não-dual, una para sempre com toda a criação.
Amor é a lei, amor sob vontade.
SUPORTE TÉORICO:
CASE, Paul. The True and Invisible Rosicrucian Order.
CROWLEY, Aleister. Liber 418 e O livro de Thoth.
SOTO. Curso de Magia Enochiana.
STALEY, Michael. The Vision and the Voice.
Texto enviado por Ícaro Aron Soares.
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