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Sobre a guerra que destruiu Sodoma

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Shirlei Massapust

O capítulo 14 do Livro da Gênese narra resumidamente a História de uma guerra promovida pela coligação dos quatro reis ʿAmräfel (אמרפל), ʿAryoc (אריוך), Codorlaomor (כדרלעמר) e Tadal (תדעל), que lideravam respectivamente os exércitos de Šinar (שנער), ʿElʾasar (אלסר), ʿÊläm (עילם) e uma tribo estrangeira (goim, גןים).

Eles conquistaram diversas áreas por onde passavam e repartiram territórios ente si. Durante doze anos Codorlaomor controlou sozinho o vale de Sidīm (שִׂדִּים), onde existiam cinco cidadelas ou colônias de ʿÊläm denominadas Šidom (סדם) vulgo Sodoma, ʾÁmora (עמרה) vulgo Gomorra, ʿAdamah (אדמה)[1], Tseboim (צבוים) e Bela (בלע).

Essas cidadelas eram governadas respectivamente por Bera (ברע), Birša (ברשע), Šinʾav (שנאב), Šemʿever (שמאבר) e Tzoar (גער). Quando as colônias de ʿÊläm se rebelaram contra o conquistador, Codorlaomor tornou a pedir ajuda a ʿAmräfel, ʿAryoc e Tadal, que enviaram tropas à Sidīm. Eles mataram Bera e Birša. Os demais insurrectos, Šinʾav, Šemʿever e Tzoar, fugiram e se tornaram apátridas em ostracismo.

O vale de Sidīm estava cheio de poços de petróleo (חמר בארת) onde Bera e Birša foram possivelmente imersos (napal, פלו) para a mumificação (Gênese 14:10); posto que 1) a mumificação por imersão em betume existia no mundo antigo e 2) a menção à existência de repāim (רפאים) na localidade ʾAštæröt Karnayim (קרנים עשתרת), durante a referida guerra, sugere que os conquistadores permitiam que os sobreviventes vencidos sepultassem os mortos conforme seus costumes (Gênese 14:5).

Aí vem a parte interessante. Nesta primeira versão dos fatos narrados Ló não foi resgatado por anjos, mas sim saqueado e escravizado pelos aliados de Codorlaomor:

Os vencedores tomaram todos os bens de Sodoma e de Gomorra e todos os seus alimentos, e se foram. Eles tomaram também Ló (o sobrinho de Abraão) e seus bens, e se foram; ele morava em Sodoma. (Gênese 14:11-16)

Nesta narrativa Abraão só fica sabendo que Ló saiu de Sodoma depois que o fato aconteceu. Novamente não foi deus quem ajudou. Foi um sodomita sobrevivente (פליט) quem alertou Abraão sobre o cativeiro de Ló em Dan (דן). Rapidamente Abraão pediu auxílio ao exército amorreu (אמרי), liderado pelo patriarca madeireiro Mambré (ממרא), e reuniu sua família a eles, somando trezentos e dezoito combatentes ao todo.

Então partiram para o resgate de Ló, suas filhas, e de toda à tribo (עם) que se presume sodomita (Gênese 14:16). Curiosamente Bera, o Rei de Sodoma (סדם מלך), morreu na guerra (Gênese 14:10), mas isso não impediu Abraão de conversar com seu sucessor ou com o fantasma deste mesmo Rei de Sodoma (סדם מלך) por intermédio do sacerdote Melquisedec. O monarca pediu: “Dá-me as pessoas e toma os bens para ti”. Porém Abraão fez o contrário. Deixou as coisas e intermediou a repartição das pessoas entre os patriarcas amorreus (Gênese 14:21).

Mitificação e variação da narrativa da destruição de Sodoma: A ira de deus

Uma segunda versão da estória de como Ló saiu de Sodoma começa no capítulo 18 do Livro da Gênese. Abraão está em paz, habitando a casa na árvore que Mambré lhe emprestou, quando vê YHWH caminhando no meio do mato. Não é todo dia que se vê deus encarnado andando por aí. Então ele insistiu para que entrasse em sua tenda e batesse um papo durante a janta.

Muita discussão tem sido gerada porque Abraão chama YHWH de Adonai (אדני) e, pouco depois, Ló chama o par restante de mensageiros pelo mesmo pronome de tratamento. O termo ‘ădōnăy (אדני) significa “Senhor” ou “Vossa Excelência”. É uma expressão do distanciamento e subordinação em que uma pessoa voluntariamente se põe em relação à outra, a fim de agradá-la e ensejar um relacionamento cortês. Por isso o próprio Abraão é chamado de ‘ădōnăy pelos filhos de Het (Gênese 23:6, 23:11, 23:15, 24:12, 24: 14, 24:18) e, quando o humano compete com o divino numa mesma frase, ambos são intitulados ‘ădōnăy (Gênese  24:27).

As cinco cidades na planície de Sidīm, às margens do Mar Morto, viviam da extração de betume: Uma substância aderente derivada do petróleo usada na produção de asfalto, cimento e revestimento para impermeabilização de barcos.

O geólogo britânico Graham Harris acredita que as cidades em Sidīm sucumbiram numa sucessão cumulativa de desastres naturais porque a área está situada sobre a junção de duas placas tectônicas que se movem em direções opostas sendo, portanto, propensa a terremotos.[2]

Era terra de gente azarada por mérito próprio, mas tudo indica que as cidadelas da planície venceram a guerrilha em seu ambiente natural. Houve muitas mortes. Diz a lenda que quando uma pessoa morre seu sangue grita e YHWH não pode dormir em paz. Se a morte foi provocada por assassinato esse sangue fica pedindo justiça contra seu agressor, igual aos respingos de sangue falante do Abel acusando Caim.

YHWH ouviu um grande grito contra Sodoma e Gomorra, mas decidir se uma população agiu mal ao se defender de estrangeiros hostis não é uma tarefa fácil. A divindade achou necessário encarnar e descer à floresta de carvalhos junto a dois mensageiros (מלאכים) para proceder à investigação. Abraão atrasou YHWH enquanto a milícia de avatares (אנשים, ‘ănāšîm) se dividia a caminho das cidades (Gênesis 14:12, 18:1-3, etc.). Ao anoitecer os mensageiros chegaram a Sodoma onde foram gentilmente hospedados por Ló.

Repare que ninguém os incomodou antes destes homens se misturarem com Ló. Sabemos que recentemente os sodomitas tinham sido surpreendidos por gente dessa laia que chegou invadindo a região com intenção de matar indiscriminadamente, para carregar espólio… Isso podia acontecer de novo e foi somente depois que os visitantes se hospedaram no lar de um possível espião que os sodomitas exigiram que as visitas de Ló se apresentassem formalmente perante a comunidade (um ato mais ou menos correspondente à formalidade de tirar passaporte com visto de turista).

Isto parecia necessário, sobretudo porque até hoje pessoas desconfiam de quem se hospeda na casa de “virgens” que vivem à disposição de quaisquer homens e transam com o próprio pai.

Noutra hipótese os mensageiros deviam ostentar vestuário deveras interessante ou possuir características físicas tão diferentes quanto brancos nunca vistos em terra de negros ou vice-versa, pois despertaram a curiosidade dum monte de gente que os estava encarando como aberrações de circo.

Ló e seu par de hóspedes não tinham dormido ainda quando a casa foi cercada por todos os homens da cidade, desde os jovens até os velhos. (Gên. 19:4-5). Jonathan Kirsch comenta a respeito:

Os anjos da Bíblia hebraica, tal como os vemos na história de Ló e suas filhas, em nada se assemelham aos gordos querubins da arte renascentista ou aos anjos mensageiros de que falam nossas canções de Natal… As misteriosas figuras que aparecem às portas da cidade de Sodoma são dois dos primeiros anjos que encontramos na Bíblia. De início, os autores bíblicos os descrevem como “mensageiros” (Gên. 19:1) e depois como “homens” (Gên. 19: 10), duas designações que não sugerem necessariamente que os dois possuam poderes divinos. Sabemos que eles comem e dormem, porque Ló — assim como seu tio Abraão faz em Mambre — lhes serve uma refeição antes que eles se recolham para dormir (Gên. 19:3). Somos levados a entender que eles vão a pé para Sodoma, “cerca de sessenta quilômetros de estrada difícil”. E sabemos que eles exercem certa atração sexual sobre seres humanos comuns, porque os homens lascivos que se reúnem à porta de Ló preferem os dois estranhos às duas filhas virgens de Ló como objetos sexuais.

“Devemos conceber os dois mensageiros celestiais como jovens na flor da vida”, explica Von Rad, o pomposo erudito da Bíblia, talvez denunciando certa lascívia própria, “cuja beleza incitava especialmente desejos malsãos”.

Como então sabemos que os dois destruidores são realmente anjos? (…) O primeiro indício de que eles são algo mais do que meros portadores de más notícias surge quando os habitantes da cidade tentam arrombar a porta da casa de Ló a fim de violentá-los — a turba é ferida de cegueira pelos estranhos (Gên. 19:11), e a palavra hebraica usada no texto bíblico original sugere que os estranhos literalmente cegam seus atacantes com uma explosão de luz sobrenatural, “um clarão ofuscante que emana dos anjos”.[3]

Há quem tenha sugerido a hipótese de tentativa de estupro homossexual coletivo, pois os sodomitas não fizeram nenhum mal às duas mulheres que lhes foram hediondamente oferecidas. Só insistiram em conhecer os turistas.  Matadores de gays consideraram “tão péssimo e horrendo o crime de Sodomia e tão contra a ordem da natureza e indigno de ser nomeado, provocando tanto a ira de Deus que por ele vem tempestades, terremotos, pestes e fomes” (Extrato das Constituições primeiras do arcebispado da Bahia, 1707, § 958).[4]

Uma vez incomodados, os mensageiros acham necessário produzir luz para cegar gente em plena madrugada escura e saem dali removendo a única família hospitaleira do local. O retardatário YHWH finalmente chega ao seu destino e envia uma chuva de fogo e enxofre sobre a planície onde estavam erigidas quatro cidadelas: Sodoma, Gomorra, Adama e Seboim (Gên. 19:23-27; Deuteronômio 29:22).

Dizem que um apócrifo afirma que YHWH não esqueceu que eram cinco cidades ao invés de quatro: Bela ardeu por último porque Ló estava fugindo por este caminho.

Na Bíblia, tanto Abraão quanto a esposa de Ló pararam para observar o fenômeno, mas ela ainda não estava suficientemente distante do foco do problema. Então acabou transformada numa estátua de sal (Gên. 19:23-27).

Futuramente outros lugares acabariam fulminados do mesmo modo, como na seguinte passagem: “Enxofre e sal, toda a sua terra está queimada; ela não será mais semeada, nada mais fará germinar e nenhuma erva nela crescerá! Foi como a destruição de Sodoma e Gomorra, Adama e Seboim, que Iahweh destruiu em sua ira e furor!” (Deuteronômio 29:22)

Quem conta um conto aumenta um ponto

A tradição oral teria acrescentado que parte da região atingida foi engolida pelas águas, estando atualmente coberta pela zona meridional do Mar Morto, o Sodomorum Lacus de Ptolomeu… Estrabão teria feito o seguinte registro no ano 20 d.C:

São dignas de crédito as tradições chegadas até nós através dos habitantes, as quais asseguram ter havido outrora treze prósperas cidades nesta região. Afirma-se até que as muralhas de Sodoma, a cidade principal, ainda existem e que medem sessenta estádios de perímetro. O lago saiu do leito em virtude dum grande tremor de terra, tendo vomitado betume em ebulição misturado com água sulfurosa, ao mesmo tempo em que as rochas eram calcinadas pelas chamas que brotaram do solo. As cidades afundaram-se parcialmente nas entranhas da Terra ou foram abandonadas pelos habitantes em pânico.[5]

Esta versão apareceria no Alcorão: “Revolveu as cidades destruídas e o que elas recobriam recobriu-as por sua vez”.[6] Entre os romanos, Tácito retomou a estória:

Não longe do mar Morto estendiam-se planícies que foram outrora muito férteis e onde se erguiam grandes cidades. Contudo, diz-se que estas foram destruídas pelo raio… Quanto a mim, admito perfeitamente que algumas cidades célebres tenham sido devoradas pelo fogo do céu (Histórias).[7]

O número das cinco cidades atingidas varia de duas a treze, de acordo com a fonte consultada. Bacharach descreve tais lugares como um conjunto de sítios arqueológicos “abaixo de nós”, soterrado ou alagado, onde jaz uma ativa comunidade de almas penadas (lilin): “Os habitantes de Adama, a segunda mais baixa das sete terras, são sempre doentes, cheios de dor e suspiros”, mas podem voar dali para o nosso mundo e oferecem orações a YHWH ao voltar para cá. (Bacharach, ’Emeq haMelekh, 179d-180a).

Sodomia, palavra de baixo calão

Hoje em dia sodomita já não é mais um natural de Sodoma, mas todo e qualquer homossexual na gíria fundamentalista. Segundo Luiz Mott:

Os Regimentos da Inquisição condenavam as sodomitas à fogueira… Segundo recentes e abalizadas pesquisas historiográficas, é sobretudo a partir do Século XIV que a Cristandade passa a reprimir mais cruelmente a sodomia, também chamada – e com razão – “vicio dos clérigos”.

Salvo erro, é o franciscano frei Sabino Bononiense, autor da Luz moral (tradução portuguesa de 1737), quem melhor sintetiza a gravidade moral do “nefando pecado”. Três seriam as causas da gravidade desta “horrenda maldade”: a apostasia da natureza, pois a sodomia é pecado contra naturam; por sua causa Deus castiga ainda os inocentes, pois em Sodoma são queimados também as criancinhas para que não se fizessem imitadoras dos maus pelo mau exemplo; os sodomitas são piores que os animais brutos, os que nunca se ajuntam inaturalmente, são piores que os diabos, porque nunca se leu que demônio algum fosse súcubo-sodomita; ela é mais grave do que ter coito com a própria mãe, e por causa deste vício apressará Deus o dia do Juízo e o fim do mundo, e mais ainda, “foi a Sodomia a causa de Deus ter dilatado tanto tempo tomar carne humana, tanto que na noite de seu santíssimo nascimento, matou todos os homens sodomitas com morte repentina, e finalmente, Deus costuma mandar pestes, saraivas e grandes terremotos para aquelas partes onde reina este vício, e desta sorte destrói as cidades, lugares e muita parte da gente destes nefandos” (Tratado XXIV, § 14-16).[8]

A partir do séc. XIV a cristandade passou a reprimir a tal sodomia. Entre 1569-1670, os Regimentos da Inquisição prenderam e processaram mais de 400 portugueses e brasileiros, sendo 30 condenados à morte na fogueira. Em Portugal e seus domínios o lesbianismo deixou de receber pena de morte em 1646, enquanto a homossexualidade masculina só deixou de ser crime com a extinção do Tribunal do Santo Ofício, em 1821.

Uma tradição de homofobia baseada em conceitos isolados, de pessoas que partem de um pressuposto não encontrado nos textos sagrados em si. Ou seja, tentam relaciona à tentativa de estupro ao invés de analisar o real contexto existente… E não há nenhum indício de natureza sexual salvo a exceção, é claro, de inventar historinhas cuja justificativa faz-se isolando todo um contexto.

NOTAS

[1] Em hebraico o substantivo ădāmâ (אדמה) descreve o solo donde se extrai o material usado pelos oleiros na confecção de artesanato, máscaras mortuárias, etc. Daí vem o verbo ʾedĕmeh (אדמה) que significa modelar ou imitar. Portanto podemos supor que a localidade chamada ʿAdamah (אדמה) era um centro comercial de artesanato.

[2] CRAIG, Andrew. Scientists uncover Sodom’s fiery end. Em: BBC News, publicado em 18/08/2001, 04:38 GMT 05:38 UK. <http://news.bbc.co.uk/2/hi/middle_east/1497476.stm>.

[3] KIRSCH, Jonathan. As Prostitutas na Bíblia: Algumas histórias censuradas. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1998, p 66-67.

[4] MOTT, Luiz. AIDS: reflexões sobre a sodomia. Em: Comunicações do ISER, nº 17. Rio de Janeiro, Instituto de Estudos da Religião, dezembro de 1985, p 32.

[5] HENNING, Richard. Os Grandes Enigmas do Universo. Trad. Augusto Pastor Fernandes. Lisboa, Livraria Bertrand, 1974, p 55-56.

[6] HENNING, Richard. Obra citada, p 56.

[7] HENNING, Richard. Obra citada, p 56.

[8] MOTT, Luiz. AIDS: reflexões sobre a sodomia. Em: Comunicações do ISER, nº 17. Rio de Janeiro, Instituto de Estudos da Religião, dezembro de 1985, p 32.


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