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por Carlos Gilly
A Paz Religiosa de Augsburgo havia proporcionado ao fragmentado território alemão uma relativa estabilidade até a eclosão da Guerra dos Trinta Anos[1] em 1618. Sem receio de anacronismos, pode-se denominar esses 63 anos como uma espécie de período de Guerra Fria. Tanto mais acirrada foi, por conseguinte, a guerra de palavras travada entre as diferentes facções religiosas. Enquanto o catolicismo romano, após o Concílio de Trento, conseguiu se consolidar como um bloco dogmaticamente coeso, a cisão entre os evangélicos luteranos e os reformados calvinistas se aprofundava.
A ruptura definitiva ocorreu em 1580, quando a Fórmula da Concórdia[2] declarou os reformados – junto com anabatistas, seguidores de Schwenckfeld, flacianos e antitrinitaristas – como hereges. Muitos príncipes evangélicos alemães, contrários à Fórmula da Concórdia, foram assim praticamente empurrados ao calvinismo – um efeito talvez não intencional, mas aceito em nome de uma suposta unidade doutrinária mais forte. O dito popular em voga por volta de 1600, “Melhor papista que calvinista“, não era apenas uma frase de efeito, mas sim doutrina oficial da ortodoxia luterana. Essa “briga de padres”, como foi frequentemente criticada, ajuda a explicar por que a Saxônia Luterana não hesitou, durante a Guerra dos Trinta Anos, em pegar em armas ao lado da Liga Católica contra a União Evangélica, liderada por calvinistas.
Desde a fundação da União dos Príncipes Evangélicos por Christian von Anhalt, em 1609, e da Liga Católica sob Maximilian da Baviera, em 1610, a produção publicística ligada ao conflito político e religioso cresceu vertiginosamente. A partir desse momento, o tom das disputas tornou-se cada vez mais rancoroso e a confrontação parecia inevitável. Se os panfletos da época de Lutero podem ser considerados o primeiro meio de comunicação de massa da era moderna, a Guerra dos Trinta Anos marcou, de fato, o nascimento da propaganda moderna. O conflito foi preparado de forma deliberada por meio de textos e, em cada fase, acompanhado por uma campanha publicitária orquestrada.
A literatura panfletária dessa época nos dá a impressão de que o comportamento da União Evangélica sob liderança calvinista, ou as intrigas da Liga Católica dominada pelos jesuítas, contribuíram menos para o início da guerra do que a avalanche de panfletos políticos, folhetos, “novas notícias”, folhas ilustradas, séries de imagens, enigmas gráficos (rebusses), canções satíricas, previsões astrológicas, interpretações de cometas e profecias do fim dos tempos.
Dentre os milhares de produtos publicísticos que só recentemente se tornaram objeto de estudo mais aprofundado, desejo destacar aqueles que abordam o tema do Leão da Meia-Noite, pois se referem diretamente a duas figuras-chave da Guerra dos Trinta Anos. Esse motivo quiliástico do Leão do Norte, proveniente da profecia do Leão da Meia-Noite, ganhou força especialmente na associação com Friedrich V do Palatinado e, mais tarde, com Gustavo Adolfo da Suécia.
A profecia do Leão da Meia-Noite e da destruição da Águia surgiu logo após 1600 como um texto pseudoepigráfico atribuído a Paracelso; vários manuscritos se conservaram. Sua primeira impressão ocorreu em 1622 sem menção de local ou impressor, e depois em 1625 com o local fictício “Philadelphia”, provavelmente Hamburgo. Para parecer mais autêntico, o texto foi parcialmente montado a partir de escritos genuínos de Paracelso. Na realidade, trata-se de uma ousada interpretação quiliástica[3] da visão da Águia dos capítulos 11 e 12 do 4º livro de Esdras.
Na profecia, o suposto Paracelso fala de três grandes tesouros enterrados em locais distintos. Um deles – diz o relato, aqui reproduzido em versão resumida – seria descoberto logo após a morte do último imperador austríaco, Rodolfo:
Nesse mesmo tempo virá “um Leão da Meia-Noite, que seguirá o Águia e acabará por superá-lo, dominando toda a Europa e parte da Ásia e da África. Ele terá muito trabalho até expulsar a Águia do império; antes disso, haverá confusão e desordem por toda parte, e os súditos se rebelarão contra seus próprios senhores. No entanto, a cabeça permanecerá e a maldade será punida. E não ficará por aí: um fogo irromperá, difícil de apagar, causando grande destruição.” O Leão da Meia-Noite “derrotará, destruirá e exterminará o inimigo cruel, e muitos crerão em seu nome. Quando o Leão obtiver o cetro da Águia, todos olharão para ele e o seguirão. Então haverá paz e unidade em toda parte, nenhum governo perverso ou rebelde – e o fim estará próximo.”
O primeiro de quem se sabe que possuía essa profecia e a citava extensamente foi o paracelsista tirolês Adam Haslmayr. Já em 1612, ele tentou convencer seu protetor, o Príncipe August von Anhalt, a assumir o papel de Leão, o que este recusou dizendo: “Se eu tiver de ser o Leão, a querida posteridade estará mal servida, pois sem sangue e morte não há como iniciar ou concluir uma reforma geral.”
Esse comentário referia-se aos então ainda em forme de panfletos manifestos Rosacruzes, cujos textos, Fama Fraternitatis e Confessio Fraternitatis, mencionavam:
“A Europa está grávida e dará à luz uma criança forte, que precisará de um bom padrinho.”
E na versão latina da Confessio lia-se:
“Deixaremos nossos tesouros intocados, até que se levante o LEÃO e os exija por seu direito, receba-os e os use para consolidar seu império.”
Nas traduções alemãs de 1615, o trecho foi assim vertido:
“[…] nossos tesouros permanecerão intocados até que se levante o Leão, que os reclamará por direito e os utilizará para estabelecer seu governo e reino.”
No calor das polêmicas suscitadas pelos manifestos, surgiram as mais diversas interpretações sobre o Leão. O autoproclamado profeta do “Santo Império Unido”, Wilhelm Eo Neuheuser, de Estrasburgo, declarou em 1616:
“Quanto ao reformador da política que vocês chamam de Leão da Meia-Noite, da reforma da religião anticristã e da ampliação de todas as artes […] saibam que estou de acordo com vocês nisso […] O Leão em Esdras, que se levanta e repreende a Águia, foi o próprio Lutero […]”
Já um ortodoxo luterano de Rostock, escrevendo sob o pseudônimo Crucigerus em 1618, via no Leão – ou na profetizada grande criança da Europa – talvez um Anticristo calvinista ou ariano, que traria sedição, rebelião e guerra civil ao Sacro Império Romano e aos reinos vizinhos.
Por sua vez, o panfletário católico Angelus de Graven identificou o “leão aquilonar” como o rei James I da Inglaterra, alegando que este não apenas incitava seus “filhotes” calvinistas – como a Holanda e a Boêmia – contra os católicos, mas também seria o fundador da Ordem Rosacruz:
“[…] pois a criança com que a Europa engravidou, segundo o novo reformador da Rosa-Cruz (cujo fundador é Don James da Inglaterra, conforme publicou o autor luterano da Sphynge Rosaceae), já nasceu, foi criada, circuncidada e ornamentada com indumentária turca […]”
E assim segue o longo texto, documentando como o símbolo do Leão da Meia-Noite se desenvolveu em meio à literatura de guerra, a profecias místicas, sátiras políticas e propaganda confessional. À medida que a guerra se arrastava, a figura do Leão foi assumindo rostos diferentes: Friedrich V como o Leão derrotado, Gustavo Adolfo como o salvador nórdico da Reforma, e tantos outros autoproclamados visionários tentando reivindicar o título.
O símbolo teve seu auge com Gustavo Adolfo, que ao desembarcar na Alemanha mandou cunhar uma medalha com um Leão coroado empunhando uma espada e uma Bíblia, com a inscrição: “Da Meia-Noite venho, / Lutar é meu desejo, / Sempre vigilante estarei, / Sob o olhar de Deus estarei.”
Com a vitória decisiva em Breitenfeld, em 1631, o mito ganhou novo fôlego. Mas com a morte precoce do rei sueco em Lützen, em 1632, toda a construção simbólica do Leão da Meia-Noite começou a ruir. Ainda surgiram profecias e panfletos, mas o ímpeto místico já havia se esgotado. E assim, aos poucos, o Leão da Meia-Noite desapareceu das folhas voadoras da guerra. A guerra, por sua vez, duraria ainda mais dezesseis longos anos, até ser finalmente encerrada em 1648 com a Paz de Vestfália.
NOTAS
- A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) foi um dos conflitos mais devastadores da Europa. Originalmente começou como uma guerra entre católicos e protestantes no Sacro Império Romano-Germânico, mas ao longo do tempo, envolveu diversas potências europeias, como a França, Suécia e Espanha causando destruição generalizada, especialmente na Alemanha e em milhões de mortes devido a batalhas, fome e doenças. Ele chegou ao fim com a Paz de Vestfália em 1648, que redefiniu as fronteiras europeias e estabeleceu o princípio da soberania dos Estados.
- A Fórmula da Concórdia foi um documento luterano que visava unificar as doutrinas da fé; sua exclusão dos calvinistas institucionalizou a divisão protestante.
- Quiliasmo é uma crença teológica que defende a ideia de um reinado de mil anos de paz e justiça na Terra, geralmente associado à segunda vinda de Cristo
Fonte: https://www.academia.edu/34660485/
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