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Dolmoncé Explica Deus e Religião à Eugenie

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POR MARQUÊS DE SADE (A Filosofia na Alcova)
extrato da Lucifer Luciferax III

Só os imbecis podem crer nessas balelas. Deus é ora criado pelo medo, ora pela fraqueza. Fantasma abominável, inútil ao sistema terrestre. Só poderia ser nocivo à vida: se a sua vontade fosse justa, nunca se poderia estar de acordo com as injustiças essenciais às leis da natureza. Deus deveria desejar somente o bem e a natureza só o deseja apenas como compensação do mal que está ao serviço das suas leis. Deus deveria agir continuamente e a natureza, cuja ação constante é lei fundamental, não poderia concorrer com ele em perpétua oposição. Dirão talvez: Deus e a natureza são a mesmo coisa. Que absurdo! Como pode a coisa criada ser igual à criadora? Como pode um relógio ser igual ao relojoeiro? Dirão ainda: a natureza não é nada e Deus é tudo. Outro absurdo: como negar que há necessariamente duas coisas no universo, o agente criador e o indivíduo criado? Ora, qual o agente criador? Eis a única dificuldade a resolver, a única pergunta à qual é necessário responder.

Se a matéria age, move-se por combinações que desconhecemos, se o movimento é inerente à natureza, se só ela pode, enfim, em razão de sua energia, criar, produzir, conservar, manter, mover nas planícies imensas do espaço todos os planetas cuja órbita uniforme nos surpreende, nos enche de respeito e admiração. Qual a necessidade de procurar um agente estranho a tudo isso, se essa faculdade ativa somente se encontra na própria natureza que não é outra coisa senão a matéria que age? A quimera desta virá esclarecer o mistério? Desafio que alguém me possa provar. Supondo que eu me engane sobre as faculdades internas da matéria, pelo menos só terei uma dificuldade. Que farei eu com o Deus que me oferecem? É apenas uma dificuldade a mais.

Como querem que eu admita, para explicar o que não compreendo, uma coisa que compreendo ainda menos? Por meio dos dogmas da religião cristã, como posso examinar, como posso representar vosso horrível Deus? Vejamos como essa religião nô-lo descreve…

O Deus desse culto infame deve ser inconseqüente e bárbaro: cria hoje um mundo de cuja construção se arrepende amanhã. É tão fraco que jamais consegue imprimir no homem o cunho que deseja. O homem, dele emanado, domina-o, pode ofendê-lo e por isso merecer eternos suplícios. Que Deus fraco! Como pôde criar tudo quanto vemos, se não conseguiu criar o homem à sua imagem! Dirão talvez: se ele tivesse criado o homem perfeito, o homem não teria mérito. Que chatice! Que necessidade tem o homem de merecer alguma coisa de seu Deus? Se ele o tivesse criado perfeito, o homem nunca poderia praticar o mal e só então essa obra teria sido digna dum Deus. Deixar ao homem a escolha é tentá-lo. Deus, na sua infinita paciência, sabia o resultado disso; em conseqüência, foi de propósito que ele perdeu a criatura por ele mesmo formada. Que Deus horrível esse, que monstro! Que celerado, digno do nosso ódio, da nossa implacável vingança! E não contente com o que fez, ainda para convertê-lo, condena-o ao batismo, maldizendo-o, queimando-o no fogo eterno..

Mas nada disso modifica o homem. Um ser mais poderoso do que Deus, o Diabo, conservará sempre seu império, desafia o Criador, e consegue, por suas seduções, debochar o rebanho que o Eterno tinha reservado para si mesmo. Nada vencerá jamais o poder do demônio sobre o homem. Então o Deus horrível, louvado pelos idiotas, imagina coisa mais horrível ainda: tem um filho, um único filho que lhe nasceu não sabemos como, pois o homem fode e quis que Deus também fodesse ilegalmente e separasse do céu essa parte de si mesmo.

Imagina-se talvez que essa descida do céu se fizesse num raio celeste entre um cortejo de anjos, à vista do Universo inteiro… Nada disso: foi no seio duma puta judia, e numa pocilga, que o Deus redentor dos homens apareceu entre eles! Sua honrosa missão será melhor que o lugar em que nasceu?

Sigamos um instante esse personagem. Que diz que faz? Que missão sublime dele recebemos? Que mistério nos revela? Que dogma nos prescreve? Em que atos transparece sua grandeza? Infância ignorada, serviços certamente libertinos prestados pelo moleque aos padres do templo de Jerusalém. Em seguida, desaparece durante quinze anos, aproveitados para se envenenar com todas as demências da escola do Egito, que ele transporta para a Judéia. Assim que reaparece, a loucura começa a se manifestar: declara-se filho de Deus, igual a seu pai, associa a essa aliança um outro fantasma que chama de Espírito Santo, e essas três pessoas, assegura ele, formaram um só Deus verdadeiro. Quanto mais esse mistério assusta a razão, tanto mais ele assegura que há mérito em adotá-lo, perigo em repudiá-lo! Foi por todos nós, afirma o imbecil, que ele se encamou, embora sendo Deus, no seio duma mulher.

O universo se convencerá disso, à vista dos incríveis milagres que vai realizar. Num jantar de bêbados, dizem que o safado mudou a água em vinho; no deserto alimentou alguns celerados com provisões escondidas pelos seus secretários; um dos seus camaradas finge que morreu para que ele o ressuscite; transportou-se a uma montanha onde, diante de dois ou três apenas de seus partidários, faz umas mágicas das quais se envergonharia hoje um péssimo prestidigitador. Amaldiçoando com furor todos os que não acreditam nele, o safado promete o céu a todos os idiotas que lhe prestam ouvidos. Nada escreve, pois é ignorante; fala pouco, pois é burro; age ainda menos, pois é fraco. Cansa os magistrados que se impacientam ao ouvir seus discursos sediosos, embora espaçados. O charlatão acaba morrendo numa cruz depois de ter assegurado aos vilões que o seguem que, cada vez que for invocado, descerá de novo entre eles. Deixa-se suplicar sem que seu pai, o Deus sublime do qual afirma descender, lhe dê o menor socorro; é tratado como o último de todos os celerados do qual era realmente digno de ser o chefe. Seus satélites reúnem-se: “Estamos perdidos, dizem, e nossas esperanças malogradas, se não conseguirmos salvá-lo de maneira brilhante. Embriaguemos os guardas que lhe cercam o túmulo, roubemos-lhe o corpo, publiquemos que ressuscitou; é um meio seguro. Assim conseguiremos que acreditem nessa farsa, nossa religião ficará apoiada, será propagada no mundo inteiro… trabalhemos!…” A farsa se propala; a ousadia e a tenacidade tomam o lugar do verdadeiro mérito; o corpo é roubado, os bobos, as mulheres, as crianças gritam que é um milagre, mas na própria cidade onde tão grandes maravilhas se operam, na cidade regada pelo sangue dum Deus, ninguém crê nesse Deus, ninguém se converte. Mais ainda: o fato é tão pouco digno de nota que nenhum historiador a ele se refere. Tão somente os discípulos, os cúmplices desse impostor, pensam em tirar partido da fraude, mas não imediatamente.

Essa consideração é essencial. Deixam correr vários anos a fim de melhor usar o insigne disfarce; só então erigem sobre ele o edifício combalido de tão nojenta doutrina. Os homens gostam de qualquer mudança. Cansados do despotismo dos imperadores, estavam loucos por uma revolução. Ouvem os hipócritas e o progresso dos discípulos é rápido: eis a história dos maiores erros deste mundo. Os altares de Vênus e de Marte transformam-se nos de Jesus e Maria, publica-se a vida do impostor; esse romance absurdo encontra crédulos; inventam que o Cristo disse mil coisas que nem sequer pensou. Algumas dessas imbecilidades formam a base da sua moral. Como a maior parte dos adeptos fossem pobres, a caridade tomou-se a primeira das virtudes. Instituíram-se ritos bizarros sob o nome de “sacramentos”. O mais digno e criminoso de todos é o seguinte: um padre coberto de crimes, em virtude dumas palavras mágicas, tem o poder de criar um Deus dentro do pão! Não duvide: esse culto, desde o seu alvorecer, teria sido destruído inexoravelmente se o povo tivesse empregado contra ele o desprezo, única arma que merecia; mas uns imbecis o perseguiram, intensificando-o por esse meio infalível. Mesmo hoje, se o cobríssemos de ridículo ele cairia. Voltaire, o perspicaz, nunca empregou outro método; é de todos os escritores o que se pode gabar de ter obtido maior número de prosélitos. Em uma palavra, Eugenie, tal é a história de Deus e da sua religião. São fábulas que não merecem crédito: veja como pretende agir.


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