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Stephen E. Flowers Ph, D
Set é a forma-deus egípcia que se tornou um modelo paradigmático do mal nos últimos dias daquela civilização. Mas nem sempre foi assim com Set. Apesar de as vezes ter sido sempre considerado “maligno” algumas de suas características permaneceram mais ou menos consistentes com o passar dos séculos. Esta cultura e seus valores mudaram com o tempo. Nós, é claro, temos especial interesse em entender este deus tanto quanto possível dada a importância histórica do Templo de Set no caminho da mão esquerda.
A cultura da civilização do Nilo já havia desenvolvido um nível único e independente de existência antes de qualquer contato significativo com a civilização suméria cerca de 3000 a.c – esta influência parece apenas ter provido mais ímpeto a uma cultura já ancestral. O Egito começou a desenvolver sua forma cultural aproximadamente em 5000 a.c e já era uma civilização desenvolvida na proto-história entre 3800 e 3200 a.c. (1). Desta base a civilização egípcia continuaria seu desenvolvimento singular e culturalmente independente até a morte de Cleópatra quando perdeu sua independência política para Roma em 42 a.c, mas o fato de que o conhecimento dos hieróglifos ter sido preservado pelos sacerdotes egípcios pelo menos até o século V d.c indica que estamos lidando com uma cultura intelectual que permaneceu viva por pelo menos mais quatro séculos. (2) Assim, a civilização egípcia é a mais antiga e contínua cultura já conhecida pela humanidade. A única possível rival seria a civilização chinesa que possui raízes mais novas (cerca de 1500 a.c), mas que continua presente nos dias de hoje.
É provável que os aspectos mais fundamentais da religião egípcia tenham atingido um articulado estado de refinamento no início do Período Dinástico em cerca de 3100-2750 a.c. (3) Apesar de nesta época o conteúdo cultural encontrado ao longo do Nilo, entre o Mediterrâneo e o atual Assuã fosse relativamente unificado, no campo político (e talvez no religioso – uma vez que a política de cada região era fortemente influenciada pelos cultos) o território estava dividido entre a região ao norte do delta (Baixo Egito) e o restante do vale do Nilo ao sul (Alto Egito). No período mais arcaico temos um deus falcão (Heru/Hórus, mais tarde fundido com Rá) dominando a região norte e um deus simbolizado por um animal não identificado (Suta/Set), reinando ao sul.
De acordo com a história egípcia tradicional, o norte efetivamente conquistou o sul e unificou o pais cerca de 3100 a.c sob o primeiro faraó Menes, com a capital em Mênfis no delta do Nilo. O símbolo do Egito Unificado e da união dos princípios cósmicos eram representados pelos deuses dominantes de cada região é um Horus/Set representado como uma única entidade. Embora alguns apontem desde a unificação uma tendência a inferiorizar Set em detrimento do deus solar, não podemos deixar de enfatizar que a essência e poder de Set foi altamente valorizada e honrada pelos egípcios até o final da XX dinastia (cerca de 1170 a.c).
A continuidade do sacerdócio de Set e seu simbolismo podem também ser claramente vistas na dupla coroa dos faraós, composto de uma coroa vermelha do norte e uma coroa branca do sul e no topo dos cetros faraônicos de was e tcham, que trazem a efígie do animal Set. Estes cetros eram sinais do poder divino legados pelos deuses aos seus agentes encarnados, os faraós.
A religião egípcia ortodoxa parece ter sido dominada por dois conceitos ou princípios – a regularidade do cosmos, presente nos ciclos da natureza e em particular no Sol e nas cheias anuais das águas do Nilo, garantindo a prosperidade, e a continuidade da vida do individuo em um reino transcendental além desde mundo. Não temos nenhuma evidência além das afirmações de Heródoto, de que os egípcios acreditavam em algum tipo de reencarnação ou metempsicose. (4)
Seria fácil levar a confusões se o caminho da mão direita/esquerda existia tão cedo ou tão profundamente quando tentamos entender o desenvolvimento histórico da religião egípcia. De muitas maneiras a religião egípcia era como a da Suméria ou a dos Indo-Europeus, onde a divisão moral rígida entre “bem” e “mal” não existia. Entretanto com o passar do tempo os egípcios foram pioneiros nessa dicotomia de um modo bastante similar aos Zoroastrianos da Pérsia.
As raízes do protótipo do caminho da mão esquerda em todo ocidente podem ser encontradas no culto Egípcio cósmico-agrícola dos ciclos do Nilo, talvez unidas ao isolamento geográfico do território e xenofobia cultural. Esta religião e tradições místicas eventualmente ganharam a forma do culto de Osíris. Este culto promovia e desenvolveu a ideia de ciclos regulares da existência e da ressureição do corpo em um reino transcendente, que talvez sejam um paralelo dos ciclos naturais do vale do Nilo. Na época do desenvolvimento final do culto de Osíris durante o período Ptolomaico do Novo Império o osirianismo já era um facilmente identificável caminho da mão direita, predicando a harmonização da atividade humana com os ciclos da natureza. (Sem falar no Juramento Negativo do Livro dos Mortos já muito semelhante aos dez mandamentos). Estes ciclos eram simbolizados pela comunidade dos deuses e deuses egipcios.
A palavra egípcia para “deus” era “neter (plural neteru). Erik Hornung devotou todo um estudo a este e outros termos para as divindades egípcias. A etimologia da palavra é obscura, mas sua conclusão quanto a seu significado é que:
“Em suas naturezas e manifestações de constante mudança, os deuses Egípcios se assemelham aos templos do país, nunca finalizados ou completos, mas sempre “em construção”.
Os deuses do Egito eram mais fórmulas do que formas, e em seus mundos um deles pode as vezes deslocar-se como partículas elementares. Um deus é combinado com outro e torna-se um novo ser, com novas características, e então em um momento seguinte separar-se em um número de entidades. O que ele é permanece oculto, mas seu traço luminoso pode ser visto, sua reação aos outros é clara, e suas ações podem ser sentidas. É material e espiritual, uma força e uma figura, se manifesta em formas que mudam e deviam ser exclusivas, mas que sabemos que dentro de tudo isso algo existe e exerce poder.” (5)
Mas havia um que confrontava os outros neteru pela própria virtude de seu caráter – Set. Como vimos o culto de Set se estende até os primórdios da cultura egípcia, especialmente no Alto Egito. Logo no início e por toda história Set parece ter se levantado como:
1. A oposição a certos processos naturais
2. O exterior (deserto, as terras estrangeiras, etc.)
3. O poder ou força (física ou mágica)
4. A perturbação da ordem natural causada por estes fatores
Estas características foram primeiro vistas como um equilíbrio necessário dentro do cosmos, mas com o tempo estes fatores se tornariam o paradigma programático do mal do ponto de vista Osiriano.
Originalmente entretanto, Set não era visto como mal, nas sim como tremendamente poderoso. Hornung escreve sobre a visão Egípcia de bem e mal:
“Os deuses do Egito podem ser aterrorizantes, perigosos e imprevisíveis, mas não podem ser maus. Originalmente isso era verdadeiro até para o assassino de Osíris. Batalha, confronto constante, confusão, questionamento da ordem estabelecida, em tudo que Set se dedica como “trapaceiro” eram recursos necessários da existência do mundo e da desordem limitada que é essencial para a ordenação da vida.” (6)
O fator “politico” talvez tenha sido super-valorisado em muitas discussões de como e porque Set se tornou um modelo do mal no sistema Egípcio tardio. É verdade que ele foi o principal deus do subjugado Alto Egito, e que ele foi identificado como um deus das forças estrangeiras dos hicsos que invadiram e dominaram o Egito entre 1700 e 1500 a.c e que o conflito entre os sacerdotes de Osíris e os de Amon e Set foram pesadamente interpretados com o que chamamos hoje de “fatores políticos”.
Mas permanece o fato que em sua essência Set representa algo que é quase sempre tratado com suspeita: a psique humana em oposição ao veiculo do corpo, expresso como uma força “de fora” que dá a humanidade o poder de perturbar o cosmos natural ao seu redor. Set foi o deus do forasteiro e do estrangeiro e representa essa qualidade na sociedade e no panteão Egípcio. Entre os deuses apenas Set era possivelmente verdadeiramente imortal.(Bonnett, p 714 e Hornung pp 157-158.) Set tem o poder e a vontade de “agir contra a lei natural e a ordem” do universo (Cf. Bonnet p 714). Esta é a essência do porque o culto de Set foi cisto como um protótipo do caminho da mão esquerda na tradição ocidental.
Infelizmente a tradição egípcia, apesar do grande número de documentos antigos disponíveis permanece de difícil entendimento quanto a sua base filosófica. Isso é devido em parte ao modo de expressão concreto da própria filosofia egípcia (pré-helênica), e em parte porque nos últimos dias dessa cultura as funções de Set foram vilanizadas e obscurecidas – mas também amplamente pelo habito egípcio do henoteismo. Em oposição aos modelos Sumérios e Indo-Europeus que identificavam com clareza certos princípios e funções com certas formas divinas, os egípcios podiam identificar virtualmente qualquer principio ou função com qualquer deus considerado deus supremo. Isso tornou muito fácil para eles manter todas as funções e símbolos importantes de Set, transferindo as para deuses como Amon-Ra, Thoth ou Anúbis. Nos momentos finais parece ter se tornado de grande importância evitar até mesmo mencionar o nome de Set ou a caracterização do Animal Set.
Já na XIX dinastia o epiteto “seguidor de Set” era usado de forma pejorativa. Um escriva de nome Kenhirkhopeshef (que morreu em 1191 a.c) escreveu em um papiro em que descrevia as “Marcas dos Seguidores de Set”. O papiro está hoje em má condição, devido as lacunas no texto, mas a descrição é clara:
“O deus nele é Set… ele é um homem do povo.. ele morre pela morte dos tendões… Ele é um coração dissoluto no dia do julgamento.. descontente em seu coração. Se ele bebe cerveja é para engendrar contenda e turbulência. A vermelhidão do branco dos seus olhos é seu deus. Ele é aquele que bebe o que detesta. Ele é amado pelas mulheres por sua grandeza – a grandeza dele em amar elas. Apesar dele ser parente real ele tem a personalidade de um homem do povo… Ele não descerá para o oeste, mas está localizado no deserto como a presa de pássaros vorazes. Ele bebe cerveja para criar turbulência e disputas… Ele pegara em armas para guerrear – Ele não fara diferença entre mulher casada e… Assim como qualquer homem que se opor ele punirá.. Massacre vem dele e ele está no Mundo Inferior.” (7)
Desta descrição podemos inferir algumas pistas da natureza antinomiana das práticas setianas antigas. Quando um ser humano é chamado de “seguidor de Set” na literatura antiga, era geralmente por seu comportamento disruptivo a ordem ao seu redor a principal característica que se tentava demonstrar. (8)
No ocaso da cultura egípcia da XXII dinastia até os períodos Ptolemaicos e Romanos, o culto de Osíris se empenhou em uma “inquisição” contra o culto Setiano, erradicando imagens e templos do deus e celebrando festivais onde crocodilos eram torturados – uma vez que eram vistos como uma das encarnações de Set. O único refúgio dos princípios setianos foram as seitas do gnosticismo egípcio helenizadas.
Foi talvez neste contexto magico da cultura egípcia helenizada que Set atingiu seu maior estado de desenvolvimento filosófico. Em um dos papiros mágicos (Paris = PGM IV) Set é chamado de “Soberano dos Deuses” e até mesmo “Criador dos Deuses”. Isso pode ser explicado até certo ponto pela antiga tradição mágica das formulas henoteístas, mas parece haver algo mais. Parece que durante os primeiros séculos desta era (entre 100 e 400 d.c) uma seita gnóstica conhecida como “Setianos” realizaram uma grande síntese da Filosofia Grega, Religião e Magia Egípcia, mitologia e teologia judaica e outros elementos da tradição mágico-religiosa persa no leste do Mediterrâneo.(9)
O antigo deus egípcio Set (em grego Σήθ) tornou-se identificado com, ou passou para a mitologia hebraica como Seth (hebraico Sth) – em especial pelas seitas gnósticas. Mas não é preciso entrar na tradição hebraica aqui. É claro que a interpretação gnóstica do mito “clássico” do conflito entre Osirir e Set foram interpretadas como uma analogia da dicotomia entre o demiurgo mal Ildabaoth (Yahwej Elohim do Genesis) = Osíris e o bom deus serpentino, o deus da luz = Seth-Typhon. Assim o Gnosticismo Setiano pode ser entendido como uma espécie de renascimento filosófico do antigo culto egípcio de Set. De fato os remanescentes da religião egípcia ortodoxa se referiam aos Gnosticos como um todo como “filos de Typhon (= Set). Neste epilogo gnóstico da história do culto de Set, pode ser visto claramente que o significado antigo de Set como deus da oposição aos ciclos estáticos e naturais da existência que entra na natureza vindo de fora para exercer seu poder transformador de perturbar a ordem natural, foi tanto continuado como revivido pelos gnósticos egípcios helenizados nos primeiros séculos desta era.
Foi teorizado que o culto e figura de Set tiveram alguma influência na formação do nome e personagem hebraico, e eventualmente cristão, Satan. Isso pode ser possível principalmente graças a influências importadas pela cultura hebraica durante o período em que estiveram no Egito e também pelo fato de terem sido liderados em sua saída provalmente em cerca de 1250 a.c, por um sacerdote egípcio chamado Msy (Moisés). O egípcio Msy, filho é também citado com o nome Re-Msy ou Ramses “filho de Re”. (10)
O nome Set provavelmente não tem conexão etimológica com o semítico Stn (hebraico para Satan). Mas os nomes foram sem duvida associados logo nos primeiros anos entre os hebreus. No mundo sincrético do helenismo, refletido nos papiros mágicos greco-egipcios, parece que Seth-Typhon possam não apenas ter sido lindados com aspectos satânicos, mas com o próprio Deus Unico dos Hebreus Yahweh. Isso porque os escritores dos papiros estavam interessados em Yahweh (YHVH/IAO) como uma expressão do poder cósmico puro em um nível físico, não em qualquer papel teológico do ortodoxismo hebreu. Iao era “o criador deste mundo” – e assim seu nome poderia causar mudanças posteriores e transformações mágicas nele. Uma tendência humana de “diabolizar” os deuses dos seus vizinhos parece ser um tema constante e uma causa de contínuas dificuldades dos historiadores da religião.
Dificilmente poderíamos fizer muito sobre as formas com as quais os antigos Setianos abordavam as questões essenciais da pratica e da filosofia. Mas dada as características gerais deste deus, parece que os Setianos da antiguidade praticavam algo muito próximo do que hoje é chamado caminho-da mão esquerda. Talvez uma das razões do porque esta seita tenha sido tão perseguida é que ela oferecia um caminho para a deificação que não era exclusivo dos faraós.
Bibliografia
1 – Kingship and the Gods, Henri Frankfort, 1948
2 – E.A. Wallis Budge, Egyptian Language, 1958, p 15
3 – Paul Jordan, Egypt: The Black Land (Oxford: Phaidon, 1976) p 78-79
4 – Lexikon der Aegyptologie, vol V, p 13
5 – Erik Hornung, Conceptions of God in Acient Egypt: The one and the many, p 256-257
6 – Hornung, Conceptions of God p 213
7 – John Romer, Ancient Lives, Daily Life in Egypt of the Pgaraos p. 67
8 – Romer, Acient Lives pp 90;92
9 – Jean Doresse, The Secret Books of te Egyptian gnostixs, 1986, p 249-309
10 – Eliad, Historu, vol I p 178
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