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PSICO Sitra Achra

A Sombra Coletiva

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CONNIE ZWEIG e JEREMIAH ABRAMS

Excerto do Livro: ao encontro da Sombra

Hoje em dia, defrontamo-nos com o lado escuro da natureza humana toda vez que abrimos um jornal ou ouvimos o noticiário. Os efeitos mais repulsivos da sombra tornam-se visíveis na esmagadora mensagem diária dos meios de comunicação, transmitida em massa para toda a nossa moderna aldeia global eletrônica. O mundo tornou-se um palco para a sombra coletiva.

A sombra coletiva — a maldade humana — nos encara de praticamente todas as partes: ela salta das manchetes dos jornais; vagueia pelas nossas ruas e, sem lar, dorme no vão das portas; entoca-se nas chamativas sex-shops das nossas cidades; desvia o dinheiro do sistema de financiamento habitacional; corrompe os políticos famintos de poder e perverte o sistema judiciário; conduz exércitos invasores através de densas florestas e áridos desertos; vende armamentos a líderes ensandecidos e repassa os lucros a insurgentes reacionários; por canos ocultos, despeja a poluição em nossos rios e oceanos; com invisíveis pesticidas, envenena o nosso alimento.

Essas observações não constituem algum novo fundamentalismo a martelar uma versão bíblica da realidade. Nossa época fez, de todos nós, testemunhas forçadas. O mundo todo observa. Não há como evitar o assustador espectro de sombras satânicas mostrado por políticos coniventes, os colarinhos-brancos criminosos e terroristas fanáticos. Nosso anseio interior por integração — agora tornado manifesto na máquina de comunicação global — força-nos a enfrentar a conflitante hipocrisia que hoje está em toda parte.

Enquanto a maioria das pessoas e grupos vive o lado socialmente aceitável da vida, outras parecem viver as porções socialmente rejeitadas pela vida. Quando essas últimas tomam-se objeto de projeções grupais negativas, a sombra coletiva toma a forma de racismo, de busca de “bode expiatório” ou de criação do “inimigo”. Para os americanos anticomunistas, a U.R.S.S. era o Império do Mal. Para os muçulmanos, os Estados Unidos são o Grande Satã. Para os nazistas, os judeus são vermes bolcheviques. Para o monge asceta cristão, as bruxas têm parte com o diabo. Para os sul-africanos defensores do apartheid e os americanos da Ku Klux Klan, os negros são subumanos e não merecem ter os direitos e privilégios dos brancos.

O poder hipnótico e a natureza contagiosa dessas fortes emoções ficam evidentes na extensão e universalidade das perseguições raciais, das guerras religiosas e das táticas de busca de bodes expiatórios. E é assim que seres humanos tentam desumanizar outros, num esforço para assegurar que eles são superiores — e que matar o inimigo não significa matar seres humanos iguais a eles.

Ao longo da história, a sombra tem surgido (através da imaginação humana) como um monstro, um dragão, um Frankenstein, uma baleia branca, um extraterrestre ou um homem tão vil que não podemos nos espelhar nele — ele está tão distante de nós quanto uma górgona. Revelar o lado escuro da natureza humana tem sido, então, um dos propósitos básicos da arte e da literatura. Como disse Nietzsche: “Temos arte para que a realidade não nos mate.”

Usando as artes e a mídia (aí incluída a propaganda política) para criar imagens tão más ou demoníacas quanto a sombra, tentamos ganhar poder sobre ela, quebrar seu feitiço. Isso pode ajudar a explicar por que ficamos tão excitados com as violentas arengas de arautos da guerra e de fanáticos religiosos. Simultaneamente repelidos e atraídos pela violência e pelo caos do nosso mundo, transformamos na nossa mente esses outros em receptáculos do mal, em inimigos da civilização.

A projeção também pode ajudar a explicar a imensa popularidade dos filmes e romances de terror. Através de uma representação simbólica do lado da sombra, nossos impulsos para o mal podem ser encorajados, ou talvez aliviados, na segurança do livro ou da tela.

As crianças, tipicamente, começam a aprender os assuntos da sombra ao ouvir contos de fada que mostram a guerra entre as forças do bem e do mal, fadas-madrinhas e terríveis demônios. As crianças, como os adultos, também sofrem simbolicamente as provações de seus heróis e heroínas e, assim, aprendem os padrões universais do destino humano.

Na batalha da censura que hoje se desenrola tio campo da mídia e da música, aqueles que pretendem estrangular a voz da sombra talvez não compreendam sua urgente necessidade de ser ouvida. Num esforço para proteger os jovens, os censores reescrevem Chapeuzinho Vermelho e fazem com que ela não seja mais devorada pelo lobo; mas, desse modo, acabam deixando os jovens despreparados para enfrentar o mal com que irão se defrontar.

A Sombra Familiar

Como a sociedade, cada família também constrói seus próprios tabus, suas áreas proibidas. A sombra familiar contém tudo o que é rejeitado pela percepção consciente de uma família, aqueles sentimentos e ações que são considerados demasiado ameaçadores à sua auto-imagem. Numa honrada e conservadora família cristã, a ameaça talvez seja embriagar-se ou desposar alguém de outra religião; numa família liberal e atéia, talvez seja a opção pelos relacionamentos homossexuais. Na nossa sociedade, espancamento da esposa e abuso dos filhos costumavam ficar ocultos na sombra familiar, mas hoje emergem, em proporções epidêmicas, à luz do dia.

O lado escuro não é nenhuma conquista evolucionária recente, resultado de civilização e educação. Ele tem suas raízes numa sombra biológica, que se baseia em nossas próprias células. Nossos ancestrais animalescos, afinal de contas, sobreviveram graças às presas e às garras. A besta em nós está viva, muito viva — só que a maior parte do tempo encarcerada.

Muitos antropólogos e sociobiólogos acreditam que a maldade humana seja resultado do controle da nossa agressividade animal, da nossa opção pela cultura em detrimento da natureza e da perda de contato com a nossa selvageria primitiva. O médico e antropólogo Melvin Konner conta, em The Tangled Wing, que foi a um zoológico, viu uma placa que dizia “O Animal Mais Perigoso da Terra” e se descobriu olhando para um espelho.

Conhece-te a ti mesmo

Em tempos remotos, o ser humano reconhecia as diversas dimensões da sombra: a pessoal, a coletiva, a familiar e a biológica. No dintel do templo de Apolo em Delfos — erigido na encosta do Monte Parnaso pelos gregos do período clássico e hoje destruído — os sacerdotes gravaram na pedra duas famosas inscrições, dois preceitos que ainda guardam imensa significação para nós nos dias de hoje. O primeiro deles, “Conhece-te a ti mesmo”, tem ampla aplicação neste livro. Conheça tudo sobre você mesmo, aconselhavam os sacerdotes do deus da luz. Poderíamos dizer: Conheça especialmente o lado escuro de você mesmo.

Somos descendentes diretos da mente grega, Nossa sombra continua a ser o grande fardo do autoconhecimento, o elemento destrutivo que não quer ser conhecido. Os gregos entenderam muito bem esse problema e sua religião os compensava pelo lado de baixo da vida. Era na mesma encosta da montanha acima de Delfos que os gregos celebravam, todos os anos, as suas famosas bacanais, as orgias que glorificavam a poderosa e criativa presença do deus da natureza, Dioniso, nos seres humanos.

Hoje, Dioniso foi aviltado e apenas subsiste nas nossas imagens de Satã, o Diabo de cascos fendidos, personificação do mal. Não mais um deus a ser reverenciado e digno de receber o nosso tributo, ele foi banido para o mundo dos anjos caídos.

Marie-Louíse von Franz reconhece a relação entre o diabo e a sombra pessoal quando diz, “Na verdade, o princípio da individuação está relacionado com o elemento diabólico na medida em que este último representa a separação do divino dentro da totalidade da natureza. Os aspectos diabólicos são os elementos destrutivos — os afetos, o impulso autônomo de poder e coisas semelhantes. Eles rompem a unidade da personalidade”.

Nada em excesso

A outra inscrição em Delfos talvez seja mais representativa da época em que vivemos. “Nada em excesso”, proclama o deus grego do alto de seu santuário terrestre hoje desmoronado. E, R, Dodds, estudioso dos clássicos, sugere uma interpretação para essa epígrafe. Só uma pessoa que conhece os excessos, diz ele, poderia viver segundo essa máxima. Só aqueles que conhecem a sua capacidade para a lascívia, a cobiça, a raiva, a glutonaria e todos os excessos — aqueles que compreenderam e aceitaram o seu próprio potencial para extremos inadequados — podem optar por controlar e humanizar suas ações.

Vivemos numa época de excessos críticos: gente demais, crime demais, exploração demais, poluição demais, armas nucleares demais. Esses são excessos que podemos reconhecer e condenar, mesmo que nos sintamos impotentes para fazer algo a respeito.

E, afinal, existe algo que possamos fazer a respeito? Para muitas pessoas, as qualidades inaceitáveis do excesso vão diretamente para a sombra inconsciente ou se expressam em comportamentos indistintos. Para alguns, esses extremos tomam a forma de sintomas: sentimentos e ações intensamente negativos, sofrimento neurótico, doenças psicossomáticas, depressão e abuso das próprias forças.

Os cenários podem parecer-se a estes: quando sentimos um desejo excessivo, nós o lançamos na sombra e depois o passamos ao ato sem nenhuma preocupação pelos outros; quando sentimos fome excessiva, nós a lançamos na sombra e depois nos empanturramos, nos embebedamos e evacuamos, tratando o nosso corpo como lixo; quando sentimos um anseio excessivo pelo lado mais elevado da vida, nós o lançamos na sombra e depois o buscamos através de gratificações instantâneas ou de atividades hedonísticas, como abuso de drogas ou de álcool. A lista continua. Na nossa sociedade, vemos o crescimento dos excessos da sombra por todos os lados:

  • Num impulso descontrolado para conhecer e dominar a natureza (que se expressa na imoralidade da ciência e na união desregrada entre os negócios e a tecnologia).
  • Numa pretensiosa compulsão de   ajudar   e   curar   os   outros   (que   se   expressa na distorção e na co-dependência do papel dos profissionais da área de saúde e na cobiça de médicos e companhias farmacêuticas).
  • No ritmo acelerado e desumanizado do mercado de trabalho (que se expressa na apatia de uma força de trabalho alienada, na obsolescência não-planejada, causada pela automação, e na arrogância do sucesso).
  • Na maximização do crescimento e expansão dos negócios (que se expressa nas aquisições fraudulentas de controle acionário, no enriquecimento ilícito, no uso privilegiado de informações confidenciais e no colapso do sistema de financiamento habitacional).
  • Num hedonismo materialista (que se expressa no consumo exacerbado, na propaganda enganosa, no desperdício e na poluição devastadora).
  • No desejo de controlar a nossa vida íntima, que é incontrolável por sua própria natureza (que se expressa no narcisismo generalizado, na exploração pessoal, na manipulação dos outros e no abuso de mulheres e crianças).
  • E no nosso incessante medo da morte (que se expressa na obsessão com a saúde e a forma física, dietas, medicamentos e longevidade a qualquer preço).

Esses aspectos da sombra atingem toda a nossa sociedade. No entanto, algumas soluções que foram experimentadas para curar o nosso excesso coletivo podem ser ainda mais perigosas que o problema. Basta considerar, por exemplo, o fascismo e o autoritarismo — horrores que surgiram das tentativas reacionárias de deter a desordem social e a decadência e permissividade generalizadas na Europa. Em tempos mais recentes e como reação a idéias progressistas, o fervor do fundamentalismo religioso e político voltou a despertar nos Estados Unidos e na Europa, encorajando, nas palavras do poeta William B. Yeats, que a “anarquia seja lançada sobre o mundo”.

Jung atenuou a questão ao afirmar que: “Ingenuamente, esquecemos que por debaixo do nosso mundo racional jaz um outro enterrado. Não sei o que a humanidade ainda terá de sofrer até que ouse reconhecê-lo.”

Se não agora, quando?

A história registra, desde tempos imemoriais, os tormentos causados pela maldade humana. Nações inteiras deixaram-se levar a histerias de massa de proporções devastadoras. Hoje, com o término aparente da Guerra Fria, existem algumas esperançosas exceções. Pela primeira vez, nações inteiras pararam para refletir e tentaram a direção oposta. Consideremos este relato de jornal, que fala por si mesmo (conforme citado por Jerome S. Bernstein em seu livro Power and Politics [O Poder e a Política]): “O governo soviético anuncia a suspensão temporária de todas as provas de História no país.” O jornal Philadelphia Inquirer de 11 de junho de 1988 informava:

A União Soviética, declarando que os manuais de História ensinaram a gerações de crianças soviéticas mentiras que envenenaram suas “mentes e almas”, anunciou ontem o cancelamento dos exames finais de História para mais de 53 milhões de estudantes.

Ao anunciar o cancelamento, o jornal oficial Isvestia informou que a extraordinária decisão visava pôr um término à transmissão de mentiras de uma geração para outra, processo esse que consolidou o sistema político e econômico stalinista que a atual liderança pretende encerrar.

“A culpa daqueles que iludiram uma geração após outra… é imensurável”, declara o jornal num comentário de primeira página. “Hoje estamos colhendo os frutos amargos da nossa própria lassidão moral, Estamos pagando por termos sucumbido ao conformismo e, assim, dado nossa aprovação silenciosa a tudo aquilo que hoje nos enche de vergonha e que não sabemos explicar honestamente aos nossos filhos.”

Essa surpreendente confissão de toda uma nação poderia marcar o fim de uma era. De acordo com Sam Keen, autor de Faces of the Enemy [As Faces do Inimigo], “As únicas nações a salvo são aquelas que se vacinam sistematicamente, através de uma imprensa livre e da voz de uma minoria profética, contra a intoxicação de destinos divinos e purificações paranóicas”.

Hoje o mundo move-se em duas direções aparentemente opostas: alguns fogem dos regimes fanáticos e totalitários; outros enterram-se neles até o pescoço. Talvez nos sintamos impotentes diante de forças tão poderosas. Ou, se chegamos a pensar no assunto, o que sentimos é certamente a consciência culpada diante da nossa cumplicidade involuntária nas dificuldades coletivas. Esse perturbador estado de coisas foi acuradamente expresso por Jung na metade do século: “A voz interior traz à consciência tudo aquilo de que padece o todo — seja a nação à qual pertencemos ou a humanidade da qual fazemos parte. Mas ela apresenta esse mal em uma forma individual, de modo que, no início, poderíamos supor que todo esse mal é apenas um traço do caráter individual,”

Para proteger-nos da maldade humana que essas forças inconscientes de massa podem representar, dispomos de uma única arma: maior conscientização individual, Se deixamos de aprender ou se deixamos de agir com base naquilo que aprendemos com o drama do comportamento humano, perdemos nosso poder, enquanto indivíduos, de alterar a nós mesmos e, assim, salvar o nosso mundo. Sim, o mal estará sempre conosco. Mas as conseqüências do mal irrefreado não precisam ser toleradas.

“Uma grande mudança na nossa atitude psicológica está iminente”, disse Jung em 1959. “O único perigo verdadeiro que existe é o próprio homem. Ele é o grande perigo c estamos, infelizmente, inconscientes dele. Nós somos a origem de todo o mal vindouro.”

O personagem Pogo, do cartunista Walt Kelly, apresentou a questão de maneira bastante simples: “Encontramos o inimigo, e ele somos nós.” Hoje podemos dar um renovado significado psicológico à idéia de poder individual. Os limites para a ação de confrontar a sombra estão — como sempre estiveram — no indivíduo.

A aceitação da sombra

O objetivo de encontrar a sombra é desenvolver um relacionamento progressivo com ela e expandir o nosso senso do eu alcançando o equilíbrio entre a unilateralidade das nossas atitudes conscientes e as nossas profundezas inconscientes.

O romancista Tom Robbins diz: “O propósito de encontrar a sombra é estar no lugar certo da maneira certa.” Quando mantemos um relacionamento adequado com ele, o inconsciente não é um monstro demoníaco; diz-nos Jung: “Ele só se torna perigoso quando a atenção consciente que lhe dedicamos é desesperadoramente errada.”

Um relacionamento correto com a sombra nos oferece um presente valioso: leva-nos ao reencontro de nossas potencialidades enterradas. Através do trabalho com a sombra (expressão que cunhamos para nos referir ao esforço continuado no sentido de desenvolver um relacionamento criativo com a sombra), podemos:

  • chegar a uma auto-aceitação mais genuína, baseada num conhecimento mais completo de quem realmente somos;
  • desativar as emoções negativas que irrompem inesperadamente na nossa vida cotidiana;
  • nos sentir mais livres da culpa e da vergonha associadas aos nossos sentimentos e atos negativos;
  • reconhecer as projeções que matizam as opiniões que formamos sobre os outros;
  • curar nossos relacionamentos através de um auto-exame mais honesto e de uma comunicação direta;
  • e usar a nossa imaginação criativa (através de sonhos, desenhos, escrita e rituais) para aceitar o nosso eu reprimido.

Talvez…, talvez também possamos, desse modo, evitar acrescentar nossa sombra pessoa] à densidade da sombra coletiva.

A analista junguiana e astróloga britânica Liz Greene mostra a natureza paradoxal da sombra enquanto receptáculo de escuridão e facho de luz. “O lado sofredor e aleijado da nossa personalidade é aquela sombra escura e imutável, mas também é o redentor que poderá transformar nossa vida e alterar nossos valores. O redentor tem condições de encontrar o tesouro oculto, conquistar a princesa e derrotar o dragão… pois ele está, de algum modo, marcado — ele é anormal, A sombra é, ao mesmo tempo, aquela coisa horrível que precisa de redenção e o sofrido salvador que pode redimi-la.”


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