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Antes de iniciar o estudo do paradigma divino, é importante dar uma noção acerca do ateísmo. Lacan explica que o verdadeiro ateísmo não diz que Deus não existe, ou que Deus está morto, mas sim que Deus é inconsciente. Explica-se curialmente que negar a Deus também é uma forma de afirmá-lo, caso contrário qual o porquê da enfatização?
É óbvio que a visão de um ente metafísico, habitando um Céu longínquo, deve ser descartada de imediato. A análise – principalmente junguiana – revela que tal ente não passa de uma projeção coletiva de um estado que o ser humano possui dentro de si. Deus, como imensa projeção do inconsciente coletivo, como máxima aspiração da humanidade, é extrojetada num imenso arquétipo/egrégora. Sempre foi necessário dar forma a um conceito abstrato, para que se pudesse trabalhar com ele. Em verdade, foi o medo da morte e do sobrenatural que criou todas as religiões do passado, as escrituras sagradas foram criadas exclusivamente pelos homens, daí as falhas de todas elas também.
Por outro lado, todo anseio traz em si uma possibilidade, só é possível a projeção de algo que o ser humano tem dentro de si, um estado inconsciente, algo que pode ser realmente revelado ou despertado. Portanto, é muito rara a existência de um ateu verdadeiro. Esta centelha divina, ao assumir várias máscaras neste mundo de maya, assume ainda o aspecto da própria existência, da qual todos participam. Como pode a pessoa ignorar aquilo do qual participa? Como você pode ignorar a si mesmo, se Deus é o próprio homem?
Entretanto, se você é totalmente indiferente em relação a qualquer conceito de Deus ou, usando as palavras de Lacan, você é inconsciente para com a referida idéia, então você realmente é ateu, porque sequer perderá o seu tempo estudando, pensando ou mesmo discutindo acerca deste conceito. ELE SEQUER PASSA PELA SUA CABEÇA.
Assim, é raríssima a ocorrência do ateísmo.
O guru indiano Rajneesh possui duas idéias importantes a respeito de deus:
- Deus não é o criador, mas a própria criatividade
- Você não pode conhecer deus, a menos que se torne o seu próprio deus
Hermes Trismegisto, ao enunciar o Princípio do Mentalismo, diz que O TODO é MENTE; o Universo é mental[1]. Neste caso, Deus seria a Mente Universal ou, se preferir, a Consciência ou Inteligência Cósmica. LaVey assere que todo homem é um deus se escolher se reconhecer como um, ao mesmo tempo que Crowley afirma que todo homem e toda mulher é uma estrela, ou seja, o homem é o seu próprio deus.
A própria Bíblia também dá esta pista. Nos Salmos 82:6, as seguintes palavras vão parar na boca do mito de Jesus: Eu disse: Vós sois deuses; vós sois todos filhos do Altíssimo. O mesmo ocorre em João 10:34. É evidente que a interpretação cristã é outra, daí o emprego de iniciais minúsculas antes do vocábulo deuses. Todavia, não é interpretação cristã também o fato de a Bíblia ser um livro revelado? Não é interpretação cristã também o fato de que cada passagem bíblica ser reveladora per si? A razão é que não interessa a nenhuma religião “divina” fazer a abordagem da divindade humana, porque tornaria o homem livre e, quem é realmente livre, não se deixa mais manipular por sistema algum. Madame Blavatsky diz que “A expressão ‘Sois deuses’, que, para os estudiosos bíblicos é uma mera abstração, tem para os cabalistas um significado vital. Todo espírito imortal que se irradia sobre o ser humano é um deus – o Microcosmo no Macroscosmo”.
Segundo Nietzsche, “O conceito cristão de um deus – o deus como protetor dos enfermos, o deus tecedor de sofismas, o deus como espírito – é um dos conceitos mais podres que jamais foram apresentados no mundo; provavelmente toca o nível mais baixo da água na evolução do tipo de deus. Deus degenerado até tornar-se contradição da vida. Em vez de ser a sua transfiguração e o eterno Sim! Nele, é declarada guerra à vida, à natureza, à vontade de viver! Deus torna-se a fórmula para todas as calúnias contra o ‘aqui e agora’, e todas as mentiras do ‘além’! Nele coisa alguma é deificada, e a vontade do nada se torna santa!…”
A análise junguiana revela que a crença num ente metafísico não passa de uma projeção coletiva de um estado que o ser humano possui dentro de si. Contudo, fica a questão: e o restante do cosmos? Em Trismegisto, se aceitarmos este estado como consciência cósmica, fica fácil de explicar, pelo menos, racionalmente, que a existência é processo de criatividade, conforme diz Rajneesh, e não simples criação. A diferença é descartar a idéia de morte, que é a grande ilusão deste campo dual, com antíteses como criação versus destruição, vida versus morte, bem versus mal. Mudando o paradigma, é possível encontrar uma chave mais adequada, pois o estado inerente ao ser humano estaria aquém das formas existentes no universo. O ser humano sente estados como amor, ódio, alegria, tristeza… mas também sente um fluxo transbordante de criatividade ou uma energia tremendamente inspirativa em alguns momentos, quando escreve uma poesia, pinta um quadro, executa uma dança. É a sublime expressão de si, como se fosse uma fonte jorrando água. O Self, o Eu Supremo, a Essência Pura ou qualquer que seja o nome para este estado crístico ou divino é uma possibilidade, pois só se projeta externamente aquilo que se tem dentro de si.
Segundo Mihaly Csizkszentmihalyi, um psicólogo americano de origem húngara, “nós desfrutamos a sensação de felicidade quando estamos imersos, completamente concentrados, em atividades nas quais encontramos desafios e possibilidade de crescimento pessoal”. A palavra com que Csizkszentmihalyi define este estado da mente é fluxo. Esta é a definição de fluxo: “Os melhores momentos geralmente ocorrem quando o corpo ou a mente estão no limite de sua capacidade, num esforço voluntário de realizar algo difícil e que valha a pena.” Seja no estudo, na vida profissional, social etc. há, realmente, momentos em que este fluxo acontece. Ele não é raro, é mais comum do que se pensa. O segredo é investir em atividades que tragam satisfação e, ainda, aprender a amar as atividades normais do cotidiano… ou mudá-las. Se você, leitor, não ama o seu emprego, pense nas duas alternativas: aprenda a amá-lo ou deixe-o. “Você só fica feliz”, diz Csizkszentmihalyi, “quando se volta completamente para uma tarefa que envolva desafio. Não é preciso escalar o Monte Everest. Uma dona de casa pode entrar no fluxo preparando um bolo”. Este fluxo que Mihaly fala nada mais é do que a livre expressão do Self, que é o estado divino inerente ao homem. Ele se alimenta através dos desafios e é o responsável pelos êxtases. A própria palavra Entusiasmo, do grego in theo, significa “deus interior”. É o entusiasmo que provoca este fluxo.
Um grande exemplo é o do sábio grego Arquimedes. Quando perguntado por Hierão, rei de Siracusa, se sua coroa era realmente de ouro puro, o sábio solucionou o problema enquanto se banhava e, em seguida, saiu nu pela rua correndo e gritando Eureka! Eureka!.[2]
Outro fator é que o ego nunca vai ser eliminado no processo de iluminação; na verdade, o ego é enriquecido pelo Self. O ego não é eliminado, porque dele depende a sua própria permanência no Plano Físico. Por conseguinte, a posição budista está altamente equivocada. Há um vazio sim, mas a natureza detesta o vácuo, este precisa ser preenchido, senão o iluminante iria cantar noutra freguesia, mas não poderia continuar vivendo neste plano. Ao contrário destas doutrinas orientais, que apontam o ego como o maior entrave à realização máxima do ser humano, o Satanista vê o Ego e a Sombra como grandes auxiliares. No primeiro caso, é o ego forte, centrado, realizado, que pode ser preenchido pelo Self. Edward F. Edinger, diz que a comunicação entre o Ego e o Self deve ser restabelecida, ou seja, o eixo Ego-Self deve ser restaurado.[3] No segundo, repito a citação de Erich Neuman: “O Self fica escondido na sombra; ela é a guardiã dos portais, a guardiã da entrada. O caminho para o Self é através dela; por trás do aspecto escuro que ela representa está o aspecto da totalidade, e é só fazendo amizade com a sombra que ganhamos a amizade do Self.” Outra questão: É possível parar de pensar? Não, enquanto você estiver vivo. “Se alguém ordenar ao cérebro para interromper o pensamento, ele se concentrará sobre essa idéia”, ironiza o neurofisiologista Gilberto Xavier, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Ou seja, estará pensando. “O pensamento”, segundo Xavier, “é um processo consciente que ocorre o tempo todo, do nascimento à morte”. Mesmo durante o sono, uma parte da consciência continua ligada. “Não se pode parar de pensar nem por meio de um processo de concentração intensa, como a meditação”, explica.
Surge, porém, uma questão: O que fazer para alcançar este estado de consciência cósmica? Não existe um roteiro definido. Nem a fé, nem a razão ajudam. É necessária a experiência direta. Há coisas que você faz naturalmente no seu dia a dia, como tomar banho, em que tanto a fé quanto a razão são dispensáveis. Você tem convicção que sempre tomará banho, porque já adquiriu a experiência direta de fazê-lo. Ocorre o mesmo em relação ao logos. Quando tiver a experiência direta, verá que a fé e a razão nunca foram necessários, e sim a sua busca.
De qualquer forma, o autor pode sugerir uma tentativa. Quem pratica Hatha Yoga sabe que o exercício com os olhos, chamado trataka, aumenta a percepção do campo visual. O praticante fixa o olhar num ponto, sem forçar demais, e, tão logo ardam as pupilas, simplesmente fecha os olhos para relaxá-los. Depois de praticar tal exercício por alguns dias, o praticante, mesmo olhando para a frente, possui visão também do que acontece ao seu lado, como uma pessoa levantar um braço ou abaixar a cabeça. Se tal aumento de percepção for possível na consciência, por intermédio da meditação, fixa também num ponto, que, neste caso, trata-se de um mantra (som) ou mandala (símbolo), começamos a pisar em terreno seguro. Minha sugestão seria utilizar alguma palavra ou imagem que surtisse um efeito tremendamente positivo em direção à meta desejada. Meu conselho é que seja mentalizado continua e tranqüilamente, de forma a evitar a maior dispersão possível, durante uns 20 minutos.
Um detalhe final: se o buscador comunga com a consciência cósmica, simplesmente não se manifestaria mais carnalmente? Viveria eternamente numa espécie de Shangrila, onde tudo passa a ser perfeito? Não, porque tudo seria monótono, enfadonho, estagnado. Uma das chaves da vida é ser cheia de surpresas. O conhecimento é sempre mutável, a consciência não. Por que o iluminante abandonaria o banquete de carne? Agora, mais do que nunca, é um rei. Agora, mais do que nunca, estaria apto a interagir com os fatos mais insólitos da vida e sair vencedor. Agora, mais do que nunca, descobriu que a verdadeira liberdade assenta-se na essência mais profunda do seu ser.
Por falar em “ser”, carece de sentido a discussão sobre o “não-ser”, pois seria o oposto de algo que já é completo em si (o Ser, o Self). Trata-se de uma armadilha intelectual para recair de novo na dicotomia e na ilusão. Se o Ser, o Self, em essência, é vazio ou não, pouco importa, pois isto não o tornará um “não-ser”, continuará sendo o “ser”, dentro de sua natureza real. De qualquer modo, tudo isso pode ser encarado como especulação, e não há razão para maiores preocupações.
Para concluir, um resumo:
- O homem é o seu próprio deus
- Este estado é contínua criatividade
- A unificação (Yoga) é uma possibilidade aberta à consecução deste estado, resume-se na fórmula 1 = ¥
A essência do universo é a consciência cósmica, estado divino inerente ao ser humano também, através de transformação qualitativa da sua própria natureza.
[1] Extraído da obra O Caibalion, deste autor.
[2] “Encontrei! Encontrei!”
[3] Extraído da obra O Encontro do Self, deste autor.
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