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Sagrado Feminino

Mulher, mais do que um útero

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Shirlei Massapust

Stonehenge é coisa nova. Começou a ser construída em 3100 a.C. Göbekli Tepe tem mais cara de pré-história, construído há onze mil e quinhentos anos. Mas houve um tempo em que nem isso se via e que a elite cultural pintava bichos em cavernas (alguns mais realistas do que os desenhos de certos artistas profissionais da modernidade). Os escultores – fossem eles homens ou mulheres – tinham duas preferências universais, que eram a anatomia animal e as mulheres nuas.

E por que estavam nuas? Ponha-se no lugar delas. Não existem lojas de roupas. Ao seu redor só tem mato. Para vestir-se, por exemplo, com uma túnica de seda, você teria de capinar o terreno, cultivar amoreiras para dar de comer às lagartas do bicho da seda, coletar casulos em grande quantidade, fiar (sem roca), produzir o pano (sem tear) e costurar a sua própria vestimenta. Era mais fácil andar com a bundinha ao vento. Onde todo mundo é nudista não existe malícia, não existe pecado. Os índios são puros.

Mas sempre aparece um ocidental endemoninhado para julgar o nu como algo eroticamente atraente, independentemente do contexto. Bem educados, eles chamam de “deusas da fertilidade” às estatuetas escavadas em La Gravette, na França (sítio arqueológico povoado de 29.000 a 22.000 B.C.E.). Tipo, se não estiver coberta é porque a coelha está querendo chamegar. Logo, estátua é Playboy de uga-buga das cavernas. “Deusas da beleza”, eles dizem, diante das velhas senhoras.

Eu acho isso repugnante, sobretudo porque as modelos retratadas dificilmente seriam fisicamente capazes de realizar a bênção medieval “tenha oito filhos”. Eles dizem: “Rebeca não pariu Esaú e Jacó aos sessenta anos? Ora que melhora”. Imagino que as clínicas de fertilidade estejam entupidas de ateus, mas deixe isso para lá.

Um exemplo recorrente é o da dita “Vênus” de Lespugue, esculpida em marfim de mamute numa técnica de notória excelência profissional e conhecimento anatômico. Ela é linda sim, mas no mesmo sentido em que uma estátua de Gandalf pode ser bela pelo realismo da técnica. Tem que vender a alma à hipocrisia, pelo politicamente correto, para defender que – devido a fatores culturais – uma flor murcha pode ser mais desejada pela abelha do que o botão desabrochado, do que a vida verdejante.

Como esse tipo de gente tarada, certinha, pode dizer que respeita uma mãe, uma avó, se não reconhece no esforço dum artista como este o reflexo do amor inocente a um ente querido? E se ele(a/e) preferia imortalizar as formas de alguém que foi, na sua vida, muito mais importante do que a moça dos prazeres, a sapeca do matagal?

Poderia Mademoiselle Lespugue não ter posado para a produção duma figura destinada a representar um ideal de sexualidade ou feminilidade? Não desejo saber se você gosta de “mulher que enche uma cama”, como dizia o Tio Áli sobre sua amada, na novela O Clone, mas sim se a humanidade existiria hoje se a grande maioria dos primeiros machos da nossa espécie preferissem, universalmente, coabitar com este tipo físico. Observe que os seios da robusta senhora cobrem a barriga até a altura das nádegas. Para chegar a este nível de flacidez da pele é preciso atingir certa idade ou desenvolver ginecomastia bilateral e esteatopigia ao mesmo tempo. Contudo ela muito provavelmente não tinha o gene da esteatopigia, que é uma característica de alguns biótipos africanos. Logo, é mais provável que tenha demorado mais de quatro décadas até desenvolver nádegas tão fartas e seios tão compridos em decorrência da obesidade mórbida.

Supondo que existisse uma mulher posando para um retratista competente, tal como se apresenta, ela certamente era uma idosa tornada infértil pela menopausa. Isto não era uma arte chula, sexualizada ao extremo. E nada indica que fosse uma matriarca, sacerdotisa ou deusa da fertilidade. Ainda que a modelo haja sido mãe de rebentos paridos em tempo passado, dificilmente reproduziria muitos filhos em tempo futuro.

Repetindo, não estou dizendo que a escultura representa uma personagem desprezível, mas sim que a beleza e a fertilidade não são seus melhores predicados. Essa mulher era mais do que um animal reprodutivo. A escultura transparece a imagem dum exemplo de sabedoria porque obviamente a modelo sobrevivia “gorda como a felicidade” durante o período histórico da pior escassez de recursos num planeta do sistema solar antes que alguém planejasse a futura conquista de Marte.

Ela não foi somente um organismo capaz e adaptado à vida na era do gelo. Ela soube o que fazer para não sucumbir a doenças infeciosas e outras dificuldades durante muitas décadas. Feliz daquele que teve essa mulher como sua professora. Ela foi um tremendo exemplo de vida.


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