Categorias
Divinação e Oráculos Sagrado Feminino

Judite, a epítome da Rainha de Espadas

Leia em 7 minutos.

Este texto foi lambido por 440 almas esse mês

Bárbara Vesta N.O.X.

O naipe de espadas é realmente muito interessante. Ele retrata um fato da humanidade: para a maioria de nós, a nossa própria mente é nossa maior inimiga. Não à toa, aprender a lidar com a mente e suas sombras é não apenas o primeiro trabalho do iniciado, mas um desafio perene em sua jornada.

Partindo deste ponto de vista, é curioso observar como, apesar do caráter extremamente negativo da maioria das cartas do naipe, a corte ainda assim nos traz figuras admiráveis. Isto nos dá a pista de que a natureza do naipe em si é árdua e dura, porém há uma recompensa para aqueles que vencem este desafio. Há na corte de espadas o caráter heroico daquelas figuras que, numa situação extrema, encaram a saída possível, o pior desafio, o risco absurdo, até mesmo o “relaxamento” da moral judaico-cristã que o momento desesperado requer.

Isto é ainda mais evidente ao analisarmos a Rainha de Espadas, em sua motivação sempre emocional pois ela é a Água do Ar. Ela é fria como um oceano no inverno, gelidamente calculista, soturna como água do pântano, que lida diariamente com a podridão, a asfixia e a falta de clareza. Ainda assim, como líder de seu povo, é guiada pela nutrição, preservação e enriquecimento de seus súditos – custe o preço que custar. Ainda sobre os elementos, cito Zoe de Camaris:

A Água fala de sensibilidade, emotividade e expressão dos sentimentos ao passo que o Ar transporta a racionalidade e a lógica. A Água é substancial enquanto o Ar é abstrato. Sua compatibilidade encontra-se na Umidade. A Água pode tornar o Ar visível: nuvem, bruma, nevoeiro. Em harmonia na umidade, criam o símbolo máximo do sonho e do devaneio. É a soma da memória (Água) e da imaginação (Ar). Contudo, por criarem juntos a matéria dos sonhos, não podem permanecer.

Se o Ar estiver feliz, pode gaseificar a Água. Fazer espuma. Mas não raro se ressente ao ver-se privado de transparência. Distancia-se da matéria aquosa que tudo amalgama. Precisa respirar e mata a Água por expulsão. Não suporta a lamúria da sereia. (DE CAMARIS, 2006)

A Rainha de Espadas é a viúva, esta figura historicamente marginalizada. Muitas vezes, as mulheres, ao perderem seus maridos, perdiam também o pouco status que tinham e inclusive seus bens materiais e dinheiro, sendo excluídas, abandonadas ou trancafiadas em conventos e mal vistas, como amaldiçoadas por Deus ou pobres coitadas:

Em tese, a lei não reconhecia o direito de a mulher, mesmo em estado de abandono, viver com o novo companheiro. A mancebia era condenada, e a mulher amancebada, considerada como “sem moral”. Esse argumento foi repetidamente usado por homens que queriam retirar seus filhos de uma ex-companheira. Admira-se, hoje, como esses fofoqueiros do senso comum mantinham a ficção da normalidade, como conseguiam acreditar e convencer os outros de que cada nova transgressão à moral familiar apresentada na justiça era um desvio pontual, uma exceção à regra. Como podiam ignorar que toda uma classe de domésticas “vivia na rua” sem necessariamente ser “sem moral”, que muitas meninas saíam a dançar nos bailes populares sem cair na prostituição? Que era possível a mulher separar-se e “casar” de novo sem ser meretriz. Os pecados imputados à mulher pelos advogados de seu marido, em muitos casos, não eram mais do que a prática cotidiana da massa de trabalhadoras. Na realidade, temos a impressão de que se sabia dessas práticas e tolerava-as no dia a dia. Porém, a “moralidade oficial” agia como arma de reserva para certas categorias de indivíduos – burgueses e/ou homens – estigmatizar outra – pobres e/ou mulheres – na hora do conflito.  (FONSECA, Cláudia, 2017, p. 526)

Além de, em muitos casos, só restar à viúva (e muitas vezes às suas filhas) a prostituição:

Muitas viúvas parecem ter trilhado o caminho do meretrício e, assinalando uma embrutecedora realidade criada diante da morte do marido, arrastavam suas filhas consigo. Como nos informa uma denúncia que se reporta a Lagoinha, onde Antônia ou vulgarmente ‘Antonica’

[…] tem umas filhas das quais uma se chama Joana e outra Teodósia, a qual juntamente com as tais filhas e outras […] são mal procedidas e públicas meretrizes, admitindo homens em sua casa para fins torpes e desonestos.

(FIGUEIREDO, Luciano, 2017 p. 163)

No entanto, na cartomancia normalmente a Rainha de Espadas preserva seu poder e inclusive o reforça perante a comunidade, colocando-se dessa maneira como exceção da condição feminina de sua época. E mesmo hoje em dia, é notório como uma mulher fria, calculista e poderosa, sem medos ou escrúpulos na hora de usar seus poderes ainda chama a atenção e causa reações passivo-agressivas na sociedade, que a ama e odeia, se atrai e se repulsa por ela.

Classicamente, a figura que temos como a Rainha de Espadas nos baralhos é Judite. Sim, a judia. Conhecemos sua narrativa no Livro de Judite, que é deuterocanônico do Antigo Testamento da Bíblia Católica. Diante de um cerco violento a sua cidade pelo exército Assírio, que já durava semanas e oprimia o povo, observa-se uma descrença alarmante e generalizada daquelas pessoas, que se sentem abandonadas por Deus. Parecia realmente não haver solução e ser impossível libertar a cidade. É então que surge a figura de Judite, uma belíssima viúva da comunidade. Ela sugere ir sozinha até o acampamento do inimigo e matar o general. E insiste que era preciso ter fé em Deus e acreditar que ele ajudaria se a população agisse com coragem e audácia. Todos concordam e ela procede.

“Rainha de Espadas” do Cartas de Jogar de Ze’ev Raban, circa 1920

Vestindo suas peças de roupa mais luxuosas e sedutoras, ela parte com sua dama de companhia. Ela consegue acesso à barraca do general Holoferne, que imediatamente se deixa seduzir pela beleza retumbante de Judite. Ela o embriaga e, na primeira oportunidade, pega a espada do general e arranca a cabeça dele. Ela precisou de apenas dois golpes para tal feito. As duas mulheres então fogem de madrugada e retornam à cidade sitiada. Judite tinha a cabeça em mãos embrulhada em um pano. Junto com a aurora, os soldados descobrem, em profundo estado de choque, o corpo sem cabeça do general. Há uma perda completa de moral do exército que, totalmente perdido, acaba derrotado pelo povo judeu que, diante do extraordinário feito de Judite, volta a acreditar nas bênçãos de Deus.

“Rainha de Espadas” do Tarot de Giovanni Vacchetta, 1893

Nesta passagem bíblica, fica evidente como a beleza, a sedução e a engenhosidade de Judite são colocados como elementos indiscutíveis de sua fé inabalável em Deus. Características historicamente reprimidas e consideradas fruto das artimanhas de satanás tornam-se aqui presentes divinos, a salvação do povo.

Trazendo para a cartomancia, a Rainha de Espadas é então essa figura que, sem ser maternal, amorosa ou sensível, mantém a habilidade de encenar o máximo de seu capital político, discursivo, erótico e quiçá bélico, desde que isto se prove o mais racional, prático e eficiente a ser feito. Desde que isso esteja alinhado a seus objetivos (e estes podem ou não serem nobres).

É dela a atitude mais maquiavélica. É dela a ação quando até o mais corajoso dos homens paralisa. É dela o desprendimento do valor da vida de seu inimigo ou até mesmo do risco – se as probabilidades apontam que vale a pena arriscar. No mesmo artigo citado anteriormente, Zoe de Camaris (2006) traz a brilhante citação de Margaret Thatcher, uma Rainha de Espadas nada nobre mas totalmente conectada a essa essência: “Os homens na política são responsáveis pelos pronunciamentos, as mulheres, ao contrário, pelas ações”.

“Judite com a cabeça de Holofernes” de Jan Matsys, 1543

“Rainha de Espadas” de Frieda Lady Harris, Thoth Tarot, circa 1943

A figura de Judite é extremamente perturbadora e sedutora. Ao longo da história foi fonte de inúmeras inspirações. A imagem arquetípica da Rainha de Espadas é esta que inspira medo, terror, admiração, atração, repulsa. O feminino, quando livre das amarras históricas de passividade, maternidade, medo e controle, torna-se extremamente poderoso e despudorado, sendo até hoje vilanizado na cultura popular. Mas, indo na contramão, eu acredito que esta é uma Rainha extremamente interessante. Como disse Crowley em seu Livro de Thoth:

A pessoa simbolizada por esta carta deve ser intensamente perceptiva, um arguto observador, um intérprete perspicaz, um individualista intenso, ágil e preciso para registrar ideias; na ação, confiante; no espírito, benevolente e justo.(…) Tais pessoas extraem amor e devoção intensos dos pontos mais inesperados. (CROWLEY, 2002, p. 123)

E na figura de Judite, ela traz o questionamento: será que não está na hora de as mulheres aprenderem a utilizar os seus poderes em prol de arrancar as cabeças dos inimigos? Lógico que não literalmente, afinal estamos falando de símbolos. Mas com a melhor espada que existe: uma mente sagaz. Acompanhada de uma língua afiada e movida por um intento nobre, a mente deixa de ser uma prisão, como um golpe de espada auto-infligido e passa a ser uma arma usada para trazer ao mundo os ideais de Luz, Vida, Amor e Liberdade.

REFERÊNCIAS

CROWLEY, Aleister: O Livro de Thoth. Minas Gerais: Novo Aeon Publicações, 2002.

DE CAMARIS, Zoe: A Rainha de Espadas. Zoe Tarot. Disponível em: <http://zoedecamaris.blogspot.com/2006/10/rainha-de-espadas.html> Acesso em: 27 de jun. de 2022

FIGUEIREDO, Luciano: Mulheres nas Minas Gerais. In: DEL PRIORI, Mary (Org): História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2017.

FONSECA, Cláudia: Ser Mulher, Mãe e Pobre. In: DEL PRIORI, Mary (Org): História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2017.


Bárbara Vesta N.O.X.  é professora formada em Letras, Taróloga, Astróloga e sacerdotisa thelemita da Ecclesia Babalon


Conheça as vantagens de se juntar à Morte Súbita inc.

Deixe um comentário


Apoie. Faça parte do Problema.