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Por Rachel Pollack, 1993, tradução por Ícaro Aron Soares[1]
O Hospital San Rafael em Trinidad, Colorado, tornou-se uma espécie de santuário para as pessoas trans na América. Mesmo para aquelas que não fizeram a cirurgia do Dr. Stanley Biber, sua clínica em San Rafael tornou-se sinônimo da “cirurgia de afirmação de gênero”, da mesma forma que toda a nação da Dinamarca passou a simbolizar as “afirmações de gênero” nas décadas de 1950 e 1960, depois que Christine Jorgensen saiu de Copenhague e veio para o mundo.
Atrás do hospital ergue-se uma pequena colina, e no cimo dela, rodeado de árvores e flores, ergue-se um verdadeiro santuário, uma pequena estrutura dedicada à Virgem Maria. Atrás de uma estátua convencional de Maria, com espaço para velas e outras oferendas, o prédio abriga uma escultura mais preciosa da Deusa cristã. De acordo com a placa na frente do santuário, um homem de Trinidad foi pego por uma nevasca e em perigo de ser levado pelo vento quando se deparou com a estátua de Maria e se agarrou a ela até que a fúria da natureza cessasse e ele pôde encontrar sua forma de ajuda e recuperação. O santuário que ele criou tem vista para a clínica do Dr. Biber, abençoando gentilmente todas as mulheres e homens trans-formados que passam por suas portas.
Ora, Maria ocupa um lugar interessante na história da mitologia. Muitas pessoas sabem que enquanto a Igreja Cristã tentou retratar Deus como inteiramente masculino, as pessoas comuns se apegaram à Mãe Maria como doadora de esperança, misericórdia e nutrição. Menos conhecido é o fato de que a Igreja primitiva adaptou conscientemente aspectos de várias deusas pagãs para criar a imagem de Maria e colocá-la no coração das pessoas. Duas deusas em particular contribuíram para Maria: Afrodite, que surgiu do mar, e Cibele, uma deusa da Ásia Menor que anteriormente havia feito uma entrada triunfal em Roma como a Grande Mãe dos Deuses.
Escrevi em outro lugar sobre Afrodite como uma Deusa trans. Sua história nos conta como o Deus do Céu, Urano, estava oprimindo Gaia, a Terra, até que Gaia deu uma foice (uma ferramenta feminina de colheita em forma de lua crescente) para seu filho Cronos. Cronos cortou os órgãos genitais de seu pai e os jogou no mar. Urano não morre na história, mas se retira para as sombras, da mesma forma que a persona masculina de muitas mulheres trans se retirará assim que a realidade feminina se permitir emergir. Os órgãos genitais decepados, porém, não desaparecem de vista. Em vez disso, eles agitam uma grande espuma nas águas. Desta espuma, Afrodite dourada, a personificação da feminilidade em toda a sua graça e poder, emerge no mundo.
E Cibele – quando a Grande Mãe veio a Roma, ela trouxe consigo suas Galas. As Galas eram homens em sua anatomia que, em meio ao frenesi extático do grupo, usavam foices de pedra para cortar seus próprios órgãos genitais, que então arremessavam através de portas abertas. As famílias que recebiam as relíquias sanguinárias as consideravam uma benção. Em troca da graça de Cibele, uma família cuidaria da Gala que estava sangrando e cuidaria de sua saúde, momento em que ela recebia cerimoniosamente roupas femininas e entrava no serviço de sua Deusa.
A presença de Maria com vista para a clínica de San Rafael, e em particular sua misteriosa saída de uma tempestade, faz parte de uma grande teia de imagens e história. A teia inclui todas as figuras mitológicas que afirmam o gênero ou cruzam os gêneros. Inclui as Galas e as Hijras da vida real e outras que alteram seus corpos, bem como as xamãs tribais que assumem os papéis do gênero “oposto”, geralmente não por uma questão de escolha consciente, mas porque os espíritos exigem delas. Inclui a evidência da Idade da Pedra de deusas andróginas e sacerdotes e sacerdotisas de gênero cruzado, juntamente com o número crescente de pessoas trans contemporâneas que começaram a entender que, como Davina Anne Gabriel coloca, não podemos compreender a transgeneridade sem alguma noção de “transcendência” ou, como diz Dallas Denny, de forma mais direta: “A transgeneridade é uma experiência religiosa”.
Reconhecer nosso lugar nessa teia significa, paradoxalmente, sair de uma armadilha. Essa é a armadilha em que vivenciamos a transgeneridade como uma doença, ou mesmo apenas como uma condição psicológica. Para as pessoas trans, tal ideologia (e é isso que é) tornou-se cada vez mais um beco sem saída – literalmente, com tantas pessoas perdendo suas vidas para a depressão, suicídio, drogas ruins, sexo inseguro e todas as outras misérias que permitem que os fornecedores de patologia digam “Aí? Está vendo? Se não fosse uma doença, elas não estariam todas felizes?”
Mesmo aqueles de nós que insistem que as pessoas trans não estão “doentes” ainda falarão sobre “cura”, se pensamos que precisamos nos curar da vergonha, da opressão da sociedade ou de uma infância infeliz. Mas, enquanto falamos de cura, permanecemos no mundo da doença. Nos Estados Unidos, consideramos a felicidade a condição humana básica e qualquer sofrimento como uma espécie de aberração. Eu diria que a transgeneridade surge de uma paixão tão poderosa que transcende questões de felicidade. A palavra paixão originalmente significava sofrimento, não prazer. O sofrimento da transgeneridade, no entanto, é como o do êxtase religioso, ou mesmo do orgasmo – avassalador, intenso e, em última análise, alegre quando nos rendemos a ele e deixamos que ele nos leve ao poder da experiência.
Pense onde o desejo trans nos leva. Desistimos de nossas posições na sociedade (não estou falando aqui sobre a queda de status das pessoas que fazem a transição de homem para mulher, mas muito mais basicamente de nossos próprios lugares no mundo, uma perda que se aplica tanto a homens trans quanto a mulheres, mesmo se os homens eventualmente subirem de status). Corremos o risco de perder nossa família e amigos. Enfrentamos o ridículo e, às vezes, violência extrema, até mesmo a morte. Tomamos drogas poderosas e perigosas para alterar a própria forma de nossos corpos. E, finalmente, passamos – procuramos, até exigimos – cirurgia em nossos órgãos genitais. Nenhuma decisão lógica, ou confusão, ou condicionamento social, ou mesmo doença mental, pode explicar uma necessidade tão avassaladora.
Recentemente, várias pessoas trans e travestis sugeriram que as pessoas procurassem a cirurgia por causa da pressão da profissão médica, que as convenceu de que a cirurgia permitiria que se tornassem membros normais da sociedade. Eu não posso acreditar nisso. Eu encontrei muitas pessoas trans que sabem muito claramente que a cirurgia é exatamente o que elas querem, e que os médicos não são seus mestres, mas seus instrumentos.
Descrever as pessoas trans como ingênuas da profissão médica, ou escravas do condicionamento social, ou presas em ideias rígidas sobre papéis de gênero, é justamente tirar o nosso poder, um poder tão intenso que apavora as pessoas. Às vezes, podemos ver a pergunta em seus rostos. “O que faria alguém fazer – ou querer fazer – tal coisa?” E porque os atos duplos de mudar de gênero e alterar o corpo as assustam, elas tentam pensar em uma explicação. “Ela deve se odiar tanto.” “Ela não pode aceitar o papel que a sociedade lhe deu.” “Seus pais devem ter abusado dela.” Cada uma dessas afirmações, e todas as outras, assumem que o homem ou mulher trans não sabe realmente o que está fazendo. E mais, elas mudam o foco da própria transgeneridade para algum conceito ou ideologia externa. Todas as explicações, mesmo as amigáveis, drenam a paixão da experiência.
É hora de perceber que afirmar o gênero e alterar o corpo não são a mesma coisa. Enquanto muitas pessoas não conseguem imaginar uma afirmação de gênero sem cirurgia, muitas outras consideram a cirurgia totalmente desnecessária. E muitas pessoas que fazem cirurgia dirão claramente que não é o bisturi que as torna homens ou mulheres, que a cirurgia apenas muda a forma externa para corresponder aos seus sentimentos internos. A confusão da cirurgia com a identidade de gênero leva muitas pessoas a pensar que as pessoas trans pós-operadas são superiores às pré-operadas ou às pessoas que afirmam o gênero sem se importar com a cirurgia. Essa hierarquia é lamentável, porque coloca as pessoas umas contra as outras quando não há necessidade disso. Ao mesmo tempo, também elimina o mistério da própria cirurgia. Mais uma vez, “explica” a cirurgia como uma forma apenas de provar alguma coisa, ou de entrar para uma elite. Mas a cirurgia genital é uma experiência forte demais para ser descartada dessa maneira.
“A transgeneridade chega até nós com todo o poder de uma força divina que não será negada. Se a reconhecermos e aceitarmos, é como uma verdadeira visão do eu desde o mais profundo da psique. . . então podemos descobrir que ela nos abre para uma vida de espiritualidade e alegria.”
A identidade de gênero é uma questão de autoconhecimento, mas também de funcionamento social. Habitamos nosso gênero e o exibimos ao mundo. A cirurgia genital não é realmente uma experiência social. Obviamente, torna-se importante nas relações sexuais íntimas. Também pode nos dar mais confiança, bem como status legal. Em última análise, no entanto, a cirurgia é privada. Forma um mistério do corpo. Pode ter mais em comum com a alteração religiosa do corpo, como cicatrizes rituais, do que com a afirmação de gênero. (É importante lembrar, no entanto, que as pessoas trans não apenas desejam a cirurgia, mas fazem de tudo para obtê-la. Isso torna a experiência radicalmente diferente de qualquer alteração corporal imposta involuntariamente às pessoas, como a clitoridectomia, a remoção do clitóris, realizada em meninas pré-adolescentes, ou mesmo a cirurgia feita em bebês intergêneros.)
Há um verso no Tao Te Ching, o antigo ensinamento chinês sobre “o Caminho”, que fala diretamente sobre algumas dessas questões. Na tradução de Gia-fu Feng por Jane English, lê-se o seguinte:
“Conhecer a ignorância é força.
Ignorar o conhecimento é doença.
Se alguém está doente da doença, então não está doente.
O sábio não está doente porque está doente da doença.
Portanto, ele não está doente”.
Sempre que tentamos encontrar a causa de nossa transgeneridade, nos tornamos fracas. Isso ocorre porque negamos sua realidade dentro de nós mesmas e tentamos encontrar alguma explicação fora de nós. Alguma doença ou condicionamento. Se soubermos e aceitarmos que ignoramos o que nos torna pessoas trans, e que não devemos desperdiçar nossa energia tentando identificar alguma causa externa, então “conhecer a ignorância” realmente se tornará uma fonte de força.
Mas se não podemos saber o que causa a transgeneridade, podemos saber muito sobre isso. Podemos reconhecer seu poder e sua realidade, podemos aprender sobre outras pessoas trans e suas experiências, e podemos descobrir sua antiga história mundial. Ignorar todo esse conhecimento certamente nos enfraquece e nos adoece.
Para superar a patologia que nossa cultura atribui à transgeneridade, precisamos, acima de tudo, querer superá-la. Para finalmente e totalmente rejeitá-la. Ficar doente da doença. No momento em que fazemos isso, que nos adoecemos da doença, começamos a fugir dela, e quanto mais fundo formos nessa direção, maior será a nossa libertação.
Carl Jung uma vez observou que os antigos tinham deuses, nós temos complexos. As Galas podem ter experimentado sentimentos e desejos semelhantes aos das mulheres trans modernas. Afinal, como ninguém as escolheu para serem Galas, elas devem ter sentido o mesmo impulso avassalador de se apresentar. Mas, em vez de se verem compelidas por uma doença, elas acreditaram que sua Deusa as havia chamado para Seu serviço. Ambos os pontos de vista requerem uma rendição, mas quando nos rendemos a uma Deusa nos unimos ao seu poder e à sua beleza. Quando nos rendemos a uma doença, não recebemos nada além de vergonha.
Aqui estão mais dois aspectos dessa teia de imagens. Na Grécia, o principal deus que governava as atividades das pessoas trans era Dionísio. Seus seguidores masculinos se vestiam como mulheres, suas seguidoras usavam grandes falos. Ele próprio era retratado como uma pedaço de pau decorado com um vestido e uma barba. Alguns dos escritores gregos mais patriarcais descreveram ele como “efeminado” ou “feminino”. De fato, seu mito nos diz que ele foi criado como uma menina e, mesmo quando chegou à divindade, muitas vezes usava roupas femininas e mantinha o cabelo comprido e solto, algo que só as mulheres deveriam fazer.
A psicóloga Ginette Paris nos conta uma história interessante sobre Dionísio. Criado como menina, ele enlouqueceu na adolescência. Paris nos diz que não sabemos a causa de sua loucura. Certamente alguns dos leitores desta revista podem dar um palpite. Insano, Dionísio vagueia pelo mundo até chegar à Frígia, lar não apenas de Cibele e das Galas, mas, segundo alguns relatos, de Afrodite. Cibele o inicia, nos diz Paris, e restaura sua sanidade. Paris diz que não sabemos como Cibele o cura. Ela o iniciou de volta em sua feminilidade? Ela levou o Deus a abraçar a duplicidade de gênero? Depois que ele voltou de suas andanças, Dionísio tornou-se o Deus do êxtase, levando os homens, mas especialmente as mulheres, para fora das armadilhas colocadas para eles por uma sociedade rígida e polarizada.
O segundo mito não invoca questões trans ou travestis tão diretamente. No entanto, envolve alguém agarrado a uma estátua para se livrar de uma tempestade emocional e, assim, nos leva de volta à presença de Maria olhando e abençoando a clínica do Dr. Biber. O grego Orestes enlouqueceu – novamente a loucura – depois que Apolo ordenou que ele matasse sua mãe como punição pelo crime dela de ter assassinado o marido. Embora a Deusa Atena o tenha absolvido, ele ainda teve que pagar uma penitência à Deusa Ártemis (a mãe de Orestes matou seu marido porque ele sacrificou sua filha a Ártemis na esperança de ganhar o favor da Deusa – a história de Orestes envolve gerações de assassinato e abuso). Assim Orestes vagou pelo mundo carregando uma estátua de Ártemis. Finalmente, ele sentiu a insanidade deixá-lo e ousou abandoná-la. Ele a colocou no leito de um rio e foi embora. Dois espartanos passavam. Quando eles viram a estátua olhando para eles, horrivelmente, da água, eles enlouqueceram.
Ora, os espartanos eram conhecidos por serem ultramasculinos, enquanto Orestes, apesar de defender seu pai, era considerado – como Dionísio – efeminado. Assim, os espartanos rigidamente masculinos não podem acreditar no súbito surgimento do feminino obscuro. Mas há conexões mais diretas com nossas próprias histórias. Ártemis era frequentemente ligada à Cibele. A estátua mais famosa de Ártemis não ficava na Grécia, mas em Éfeso, uma cidade da Ásia Menor, o território natal de Cibele. Os próprios frígios descreveram Ártemis como outro nome para Cibele.
A estátua de Éfeso mostrava o torso da Deusa coberto por pequenos globos. A maioria dos escritores modernos assume que são seios extras, mostrando seu poder como a Grande Mãe. No entanto, recentemente, um arqueólogo britânico apontou que os globos não têm mamilos. O arqueólogo sugeriu que eles poderiam ter representado os testículos sacrificados pelos adoradores de Ártemis/Cibele.
A Ártemis grega clássica não era uma deusa mãe, mas uma virgem. Podemos descrevê-la como formando um elo entre mulheres trans e lésbicas (ou entre os dois lados de uma lésbica trans). Deusa da Lua, Ártemis vivia nas montanhas longe da civilização dominada pelos homens. Ela recusava todo contato com homens, passando seu tempo com seu bando de ninfas. Amante e caçadora de animais, ela também cuidava das mulheres no parto. Em suma, ela é quase o modelo de uma lésbica radical de volta à terra. E, no entanto, como Cibele, ela também é a Deusa que aceita as Galas a seu serviço.
E um elo final – o primeiro conselho cristão que estabeleceu Maria como oficialmente a Mãe de Deus ocorreu em Éfeso, o local daquela famosa estátua, outrora considerada uma das sete maravilhas do mundo. E assim fechamos o círculo, para Maria, e para Cibele/Ártemis, e para as estátuas.
Escrevendo sobre a história de Orestes, a estátua de Ártemis e os dois espartanos, Roberto Calasso afirma: “Tal é o poder da imagem; ela cura apenas quem sabe o que ela é. Para todos os outros, ela é uma doença.” A transgeneridade chega até nós com todo o poder de uma força divina que não será negada. Se nos sentirmos fortes o suficiente para definir seu eu da parte mais profunda da psique, se carregarmos a Deusa conosco até nos encontrarmos fortes o suficiente para colocá-la no chão, então podemos descobrir que ela nos abre para uma vida de espiritualidade e alegria. Se tentarmos negá-la, ou menosprezá-la, ou explicá-la, ela pode nos destruir. Conhecer a ignorância é força. Ignorar o conhecimento é doença.
Se alguém está doente da doença, então não está doente.
FONTE: POLLACK, Rachel. Archetypal Transsexuality. TansSisters: The Journal of Transsexual Feminism. Issue #9, Summer 1993.
Icaro Aron Soares, é colaborador fixo do projeto Morte Súbita, bem como do site PanDaemonAeon e da Conhecimentos Proibidos. Siga ele no Instagram em @icaroaronsoares e @conhecimentosproibidos.
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