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Sons quentinhos e perfumes azuis: os fantásticos passageiros da sinestesia

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Cilene Pereira

Nesse exato momento, 15 centros de pesquisa em todo o mundo – mas nenhum ainda no Brasil – estão empenhados em descobrir uma das mais misteriosas capacidades do cérebro. Para alguns poucos, pouquíssimos privilegiados, é possível experimentar um sabor ao ouvir uma nota musical, associar cores inimagináveis às palavras ou, ao tocar um objeto, sentir diferentes sensações térmicas. Por incrível que pareça, esse universo quase lisérgico é uma espécie de dom natural, que os cientistas chamam de sinestesia. E muitos sinestetas, como são classificados os indivíduos com essa característica, só descobrem que os outros é que são diferentes quando viram adolescentes ou adultos.

Foi o que aconteceu com o americano Sean Day, 46 anos. “Minhas experiências sinestésicas acontecem desde criança”, contou à ISTOÉ. “Tinha seis ou sete anos quando ouvia discos e enxergava cores. Mas só vi que nem todos observavam cor em notas musicais por volta dos 20 anos”, lembrou o professor e presidente da Associação Americana de Sinestesia (leia mais no depoimento ao lado). E foi também somente com essa idade que o analista de sistemas cearense Hugo Ramos, 24 anos, notou que ver cores nas palavras não era algo assim tão natural. Integrante do restrito grupo de sinestetas brasileiros, ele relatou à ISTOÉ como descobriu sua condição. “Estava sentado com meus amigos na sala de aula da Universidade Estadual do Ceará, onde estudava quatro anos atrás. Não entendi nada quando eles caíram na risada quando lhes perguntei a cor dos seus nomes. Eles olhavam para mim e eu para eles.

E falei: o meu é preto, com um pouco de marrom. Primeiro, eles acharam que eu era maluco. Depois, expliquei. Mas acho que eles continuaram não entendendo. Mas só aí percebi que nem todo mundo era como eu”, disse.

” O som produzia nuvens cor-de-rosa”

Sean Day, 46 anos, professor e presidente da Associação Americana de Sinestesia. Ele enxerga cores em timbres musicais, em sabores e nos aromas.

“Venho de uma família em que muitos tocam instrumentos, inclusive eu. O que mais gosto é de fazer parte de uma banda ou de uma orquestra, com a música e a sinestesia visual acontecendo em todas as direções. Quando toco guitarra, vejo esferas vermelho-carmim. Oito anos atrás, fui convidado para uma conferência na Rússia. Como parte do evento, os organizadores realizaram uma sessão muito especial com Lydia Kavina, uma virtuose do theramin (instrumento eletrônico cujo som é gerado por duas ondas de radiofreqüência controladas por meio das mãos). Ela começou a tocar e, na terceira ou quarta nota, eu caí da cadeira. De verdade. Foi extremamente constrangedor. Mas a experiência sinestésica que estava tendo era única e surpreendente: o som produzia nuvens cor-de-rosa, como se fossem flocos de algodão coloridos. Há uns dez anos, passei outra vergonha. Estava em Taiwan e fui convidado para comer sushi e sashimi. Experimentei lula com um pouco de gengibre. Dei um grito bem alto: “Oh! WOW! Todos no restaurante olharam para mim. Me desculpei e expliquei que estava vendo a mesa rodeada por uma nuvem laranja brilhante. Na verdade, este tipo de sinestesia pauta um pouco minhas escolhas gastronômicas. Tenho alguns pratos favoritos não pelo sabor, mas pelas cores que produzem. Um dos meus prediletos é comer pimenta jalapena enquanto tomo café expresso. A combinação não é muito boa, principalmente para o estômago. Mas a cor é um verde-escuro muito interessante, vindo do café, com manchas vermelhas como o rubi e azuis como a safira, fabricadas pela pimenta.

É realmente lindo. Também gosto de comer frango com sorvete de baunilha e tomar suco de laranja. Estes sabores produzem um tom de azul sensacional.”

A sinestesia é uma condição cerebral caracterizada pela superposição de sentidos. No caso de Ramos, por exemplo, há a combinação da audição com a visão. Não se sabe ao certo quantos desfrutam do prazer de experimentar sensações tão distintas. Cálculos mais rigorosos indicam que apenas um a cada mil indivíduos é portador de sinestesia. Contas mais otimistas sugerem que 4% da população manifestem a condição. Nesse campo, só uma certeza: metade dos sinestetas possui mais de um tipo de sinestesia. Há pelo menos 50 gêneros descritos pela ciência. Existe quem associa cheiros a cores, sabores a sons, texturas a sensações térmicas, aromas a sons e toques a cores, entre outros. Isso quer dizer que há indivíduos no mundo, por exemplo, para quem determinada música pode ter gosto de morango ou um cheiro apresentar o som de um sino.

A palavra sinestesia deriva do grego syn, cuja tradução é “junto”, e aisthesis, que quer dizer “sensação”. Ou seja, significa “união de sensações”. Sua primeira descrição na literatura científica data de 1880, quando o pesquisador Francis Galton, primo de Charles Darwin e também o criador do termo “eugenia”, publicou um artigo a respeito do fenômeno na revista científica Nature. Nas décadas seguintes, no entanto, o tema foi esquecido e só voltou a atrair o interesse da ciência a partir dos anos 1980. Foi nessa época que o neurologista americano Richard Cytowic iniciou seus estudos sobre o assunto que depois resultaram, em 1993, na publicação do livro The man who tasted shapes (O homem que saboreava as formas).

De lá para cá, o interesse só cresceu. Hoje, os 15 grupos de cientistas que estudam a condição querem decifrá-la e usar as informações obtidas para enriquecer nosso conhecimento sobre o cérebro. “A pesquisa dos mecanismos que existem por trás da sinestesia pode oferecer respostas sobre os processos que levam às percepções e aos sentidos”, explicou à ISTOÉ Julia Simner, professora da Universidade de Edimburgo, na Escócia, e interessada pelo assunto há dez anos. Desse esforço estão surgindo algumas evidências. Uma delas é a de que a sinestesia é um fenômeno biológico e involuntário.

Porém, pairam indagações sobre suas causas, embora exista uma teoria preponderante. Ela seria resultado de uma superestimulada rede de conexões neuronais. Normalmente, os circuitos formados pelos neurônios para o processamento de uma informação percorrem um determinado caminho, em uma determinada área do cérebro. Na sinestesia ocorreria uma interconexão desses trajetos, fazendo com que as informações trafegassem em áreas distintas, originando a sobreposição de sensações. Haveria uma outra arquitetura cerebral.

A confirmar essa hipótese existem estudos mostrando que, de fato, o cérebro dos sinestetas funciona de maneira distinta. Um deles foi realizado na Universidade de Waterloo, no Canadá, e comparou a reação cerebral de portadores de sinestesia com nãoportadores. Quando os pesquisadores colocavam números na frente dos dois grupos, os sinestetas acionavam também a parte do cérebro responsável pelo reconhecimento de cores. Nos indivíduos sem a característica, apenas a da visão era ativada.

Recentemente, no entanto, um trabalho colocou dúvida na questão. O pesquisador Roi Cohen Kadosh, do Instituto de Neurociência Cognitiva da Universidade College London, em Londres, na Inglaterra, descobriu que a sinestesia – pelo menos a que leva o indivíduo a enxergar cores nas palavras – pode ser induzida por meio da hipnose. “Sob esse estado mental, os voluntários reportaram experiências similares às descritas pelos sinestetas”, contou o cientista à ISTOÉ. Em outras palavras, o trabalho do pesquisador inglês mostrou que, mesmo pessoas sem as tais superconexões neuronais seriam capazes de ter experiências sinestésicas.

Há alguns testes que indicam um sinesteta com razoável eficiência. Um dos mais respeitados foi formulado por David Eagleman, do Departamento de Neurociência da Escola de Medicina Baylor, nos Estados Unidos. “O exame detecta vários tipos”, informou o pesquisador à ISTOÉ. Os testes se baseiam na premissa de que o sinesteta de verdade não erra nunca as associações que faz. Isso quer dizer que, quando o gosto de uma nota musical é de chocolate, será sempre assim. Ele pode responder a isso uma vez e, cinco anos depois, repetirá a resposta.

Fonte: Revista ISTOÉ 31/12/2008 nº 2043


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