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O Sertão Paranormal

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Herculano Pires

Assim como todo poeta é profeta, todo gênio verdadeiro é médium. A mediunidade de Euclides da Cunha (ou sua paranormalidade) transparece em sua vida e obra. Mas é particularmente em Os Sertões que a genialidade de Euclides, como a de Moisés na Bíblia, sangra em nossas mãos. Opondo-se à tese lombrosiana da anormalidade do gênio, Frederic Myers demonstrou, em The Human Personality, que genialidade e paranormalidade são apenas sinônimos. Myers foi, por sinal, o criador da palavra hoje adotada nas ciências: paranormal. A prova mais significativa da paranormalidade de Euclides é o sertão paranormal que ele nos oferece em Os Sertões. E isso não só pelos quadros e personagens mediúnicos que criou, mas também pelos sintomas de mediunidade de suas confissões, como a da visão retrocognitiva que teve do alto de Monte Santo.

O Gênese Euclidiano

A mediunidade de Euclides é geomântica — como a de Moisés —, mas enriquecida com os recursos do conhecimento geológico. Em Moisés, a percepção extrasensorial se traduzia em símbolos, forma típica da expressão paranormal. Em Euclides, a percepção se traduz em imagens vivas, moldadas pelos padrões de memória da cultura científica. Os padrões de memória, hoje investigados pela parapsicologia, substituem nos médiuns modernos os recursos alegóricos do passado. Moisés era um médium da era mitológica, irmão dos profetas e dos oráculos. Euclides, na era da razão, é consanguíneo de Shackleton e Ted Serios, capaz de captar o passado em suas dimensões reais e fotografá-lo pelo pensamento. Irmão de Dostoiévski, que em transe epiléptico via as ruas de São Petersburgo de seu tempo retornarem às formas antigas.

Vejamos como, em termos científicos, a retrocognição de Euclides recompõe em Os Sertões o gênese americano: “Não existiam os Andes; o Amazonas, largo canal entre as altiplanuras das Guianas e do continente, separava-as, ilhadas. Para as bandas do sul, o maciço de Goiás — o mais antigo do mundo, segundo a bela expressão de Gerber —, o de Minas e parte do planalto paulista, onde flutuava, em plena atividade, o vulcão de Caldas, constituíam o arco do continente futuro.

Porque se operava lentamente a sublevação geral: as massas graníticas elevavam-se ao norte, arrastando terras, numa rotação em torno de um eixo, imaginado por Lia entre os chapadões de Barbacena e a Bolívia. Simultaneamente, ao abrir-se a época Terciária, realiza-se o fato prodigioso do levantamento dos Andes; novas terras afloram nas águas, tranca-se num extremo o canal amazônico, transmutando-se no maior dos rios; ampliam-se os arquipélagos esparsos e ganglionam-se em istmos e fundem-se; arredondam-se, maiores, os contornos das costas; e integra-se lentamente a América”.

Estamos diante de uma típica emergência de correntes do pensamento subliminar na consciência supraliminar. Dos arquivos profundos da memória extrasensorial, evocados pelas sensações atuais, os traumatismos psíquicos do inconsciente rompem o limiar da consciência e nela afloram como visões sonâmbulas condicionadas pelos elementos culturais. É uma espécie de condicionamento à crença das vidências mediúnicas estudadas por Richet e enquadra-se na teoria dos arquétipos de Jung.

Nossas categorias racionais limitam a percepção da realidade ao momento presente, às medidas impostas pelo rigor científico, mas as reminiscências da alma — da teoria platônica — socorrem essa pobreza atual com a riqueza das emoções do passado. A inspiração do gênio não provém apenas das musas, surge das profundezas de sua estrutura anímica.

E Deus Faz o Homem

Criada a Terra, entre as águas e o céu, Euclides enfrenta o momento da gênese humana. E da mesma maneira que no Gênese bíblico Moisés confina o mundo e o homem à sua terra e à sua raça, Euclides agora reduz a América aos limites do continente brasileiro e conta como Deus nos criou. Não saímos do limo da terra, mas da massa das raças adâmicas. Somos amassados no processo da miscigenação e o sopro da vida vem da imensidade oceânica, enfunando as caravelas e empurrando as jangadas. A Terra está formada. E Deus faz o homem, modela-o lentamente em carne e espírito:

“A sua evolução psíquica, por mais demorada que esteja destinada a ser, tem agora a garantia de um tipo fisicamente constituído e forte. Aquela raça cruzada surge autônoma e, de algum modo, original, transfigurando, pela própria combinação, todos os atributos herdados; de sorte que, despida afinal da existência selvagem, pode alcançar a vida civilizada, que por isso mesmo não atingiu de repente”.

Note-se a preocupação com a autonomia do novo universo que está surgindo. Embora proceda de mundos já existentes, este novo mundo se define por si mesmo. Moisés também procedeu da mesma maneira. O Deus dos judeus assemelha-se ao Demiurgo de Platão, que cria o mundo com a matéria-prima já existente. Mas faltavam a Moisés os recursos de uma cultura avançada e ele não conseguiu escapar à incoerência. Caim, ao matar Abel, foge para o país de Nod e se casa, constituindo numerosa família. Com quem se casaria se não existisse na Terra nenhuma criatura humana além da sua própria e pequenina família? Em Euclides, o Demiurgo não se confunde com Deus. O país de Nod não precisa ser escamoteado. Bastariam as linhas desta cosmogonia científica para a definição da paranormalidade de Euclides. Mas Os Sertões, essa bíblia da nacionalidade, como justamente o chamam, à semelhança da Bíblia hebraica, é um repouso de fatos paranormais e de ocorrências trágicas. A maneira como Euclides enfrenta esses episódios e os encadeia numa sequência alucinatória denuncia a excitação subliminar. À visão cosmogênica de Moisés alia-se a visão apocalíptica de João, em Patmos, e ao mesmo tempo à revolta e aos anátemas dos profetas bíblicos.

O Sertão Paranormal

Euclides da Cunha

O sertão de Euclides é uma visão dantesca. Na imensidão das terras conflagradas, do solo revolto, dos rios sem nascentes como o Vazabarris, de ipueiras esverdeadas, de encostas abruptas, de clima inclemente, os homens vivem por milagre, trocando em metamorfoses estranhas as próprias funções dos órgãos essenciais. No tópico sobre higrômetros singulares, temos a visão fantástica de um cientista que se serve de instrumentos cadavéricos para medir a secura do ar, e esse cientista é o próprio Euclides. Os cadáveres se mumificam ao ar livre e um cavalo surrealista permanece em pé, depois de morto, entalado entre rochas, com suas crinas ondulando aos ventos do deserto. Claro que Euclides não inventou esses quadros. A região é realmente portentosa. Mas quando, do alto de Monte Santo, ele vê na distância oceanos inexistentes, com suas ondas e correntes agitadas, compreendemos quanto a sua percepção extrasensorial captou além do real e quanto a sua imaginação mediúnica e seu poder criador adicionaram às motivações do ambiente. Não temos apenas uma descrição de repórter, temos uma criação de poeta. Euclides é um demiurgo que trabalha a matéria-prima do normal para com ela produzir as miragens do paranormal. As correntes subliminares agitam sua imaginação como as correntes do mar invisível e o fazem penetrar no âmago do real. Euclides não vê apenas o fenômeno, vê também o número misterioso, a essência do fenômeno, a alma das coisas. Analisando a vida sertaneja, ninguém se lembraria de falar em mestiçagem de crenças. Euclides surpreende o fenômeno do sincretismo religioso e cria essa nova expressão. Seu animismo excitado é que o leva a encarar as crenças sertanejas como criaturas animadas, transferindo-lhes a função miscigenadora das raças. Presenciamos ao vivo o nascimento dos mitos e ao seu desenvolvimento, segundo as leis da fisiologia do mito, vistas por Huntersteiner. E logo mais, vemos o arrebatamento do profeta, o voo do espírito para as regiões do passado, na busca das raízes atávicas do misticismo sertanejo. Eis-nos o próprio Euclides como isso ocorreu: “Trouxeram-na as agentes inomináveis que afluíram para a nossa terra depois de desfeito no Oriente o sonho miraculoso da Índia. Vinham cheias daquele misticismo feroz em que o fervor religioso reverberava à cadência forte das fogueiras inquisitoriais, lavrando intensas na península. Eram parcelas do mesmo povo que em Lisboa, sob a obsessão dolorosa dos milagres e assaltado de súbitas alucinações, via, sobre o paço dos reis, ataúdes agoureiros, línguas de flamas misteriosas, catervas de mouros de albornozes brancos passando processionalmente; combates de paladinos nas alturas… E da mesma gente que após Alcácer-Quibir, em plena caquexia nacional, segundo o dizer vigoroso de Oliveira Martins, procurava, ante a ruína iminente, como salvação única, a fórmula superior das esperanças messiânicas. De fato, considerando as desordens sertanejas, hoje, e os messias insanos que provocam, irresistivelmente nos assaltam, empolgantes, as figuras proféticas peninsulares de outrora — o rei de Penamacor, o rei da Ericeira, errantes pelas faldas das serras, devotados ao martírio, arrebatando na mesma idealização, na mesma insanidade, no mesmo sonho doentio, as multidões crendeiras”. Ao analisar o caráter variável da religiosidade sertaneja, Euclides nos revela, logo mais, a antinomia em que se debate. A cultura acadêmica, embasada no materialismo científico do século 19, impede-lhe a percepção de um dado importante: a ligação de sua própria paranormalidade com a dos sertanejos. Encastelado em sua formação cultural, considera-se inteiramente distanciado dos pobres tabaréus por uma coordenada histórica — o tempo — como assinala na nota preliminar do livro. O sertão paranormal tem então uma explicação científica bem ao gosto da época. Ouçamo-la em suas próprias palavras: “O homem dos sertões — pelo que esboçamos — mais do que qualquer outro, está em função imediata da terra. É uma variável dependente no jogar dos elementos. Da consciência da fraqueza para os debelar resulta, mais forte, este apelar constante para o maravilhoso, esta condição inferior de pupilo estúpido da divindade. Em paragens mais benéficas, a necessidade de uma tutela sobrenatural não seria tão imperiosa”.

As eclosões de misticismo sertanejo no Rio Grande do Sul, no Paraná e em São Paulo — em paragens mais benéficas — e até mesmo nas grandes cidades, não só do Brasil, mas de países superdesenvolvidos, como os Estados Unidos, a Alemanha, a Inglaterra e a Rússia, demonstram que o meio físico não é condição essencial, embora possa contribuir para estimular o fenômeno. A teoria materialista de Tylor e Spencer sobre a origem das religiões e, portanto, da religiosidade — Bozzano opõe, com dados de pesquisas antropológicas de André Lang e Max Freedom Long, em seu livro Popoli Primitive e Manifestazzione Supernormale, a evidência da fenomenologia paranormal, sem qualquer dissemelhança fundamental, tanto entre as tribos australianas quanto nos grandes centros culturais do mundo. Chega mesmo, como discípulo de Spencer, a lamentar que o mestre genial não tivesse tomado conhecimento desses fenômenos, que lhe provariam a origem espiritual e não material das religiões.

Mas o próprio Euclides inconscientemente se corrige no trecho imediato ao que acabamos de reproduzir, quando observa: “É que mesmo em períodos normais a religião é indefinida e variável. Da mesma forma que os negros haúças, adaptando à liturgia todo o ritual iorubano, realizam o fato anômalo mas vulgar, mesmo à capital da Bahia, de seguirem para as solenidades da Igreja por ordem dos fetiches, os sertanejos, herdeiros infelizes de vícios seculares, saem das missas consagradas para os ágapes selvagens dos candomblés africanos ou das poracês tupis. Não espanta que patenteiem, na religiosidade indefinida, antinomias surpreendentes”.

Matança de Crianças

O sertão paranormal é, assim, a continuidade natural e, portanto, normal, da paranormalidade citadina. No caso dos sertões de Euclides, a colaboração do meio físico é tão intensa que justifica, ao lado do condicionamento cultural, a interpretação do autor. Mas o que se estranha é não haver Euclides realizado a mesma justaposição histórica que usou para explicar as raízes atávicas do misticismo sertanejo nos casos profundamente significativos que relata a seguir.

O impressionante episódio de Pedra Bonita, em Pajeú, Pernambuco, no ano de 1837, está ligado também historicamente a antecedentes bem conhecidos. Era preciso quebrar a rocha formidável, desencantá-la, para que dela saísse o rei D. Sebastião, envolto de sua guarda fulgurante, castigando inexorável a humanidade ingrata, mas cumulando de riquezas os que houvessem contribuído para o desencanto. A forma cruel de desencantar a pedra foi uma nova matança dos inocentes. As próprias mães levavam os filhos pequenos para serem mortos sobre a pedra, de maneira que o sangue puro das crianças produzisse o desencanto. Euclides descreve: “Em torno da ara monstruosa comprimiam-se as mães, erguendo filhos pequeninos e lutavam, procurando-lhe a primazia no sacrifício. O sangue espadanava sobre a rocha, jorrando, acumulando-se em torno; e, afirmam jornais do tempo, em tal cópia que, depois de desfeita aquela lúgubre farsa, era impossível a permanência no lugar infeccionado”.

A conclusão de que a alma do matuto é inerte ante as influências que a agitam — de acordo com estas pode ir da extrema brutalidade ao máximo devotamento — torna-se injusta e inverídica ao lembrarmos as matanças de inocentes na Antiguidade, desde os sacrifícios de crianças aos deuses mitológicos até a matança de Herodes. E em nossos tempos, como em todos os tempos, fatos incontáveis provaram que criaturas altamente civilizadas estão sujeitas a essa mesma variação. As câmaras de gás do nazismo, os bombardeios atômicos de cidades abertas no Japão, os bombardeios arrasadores na Ásia, os massacres de inocentes na América e na Europa por bandos armados de criaturas liberam os tabaréus dessa pecha. Os resíduos atávicos não são privilégio das sociedades ditas primitivas. Estão na alma humana e podem a qualquer momento, diante de uma excitação política ou religiosa, ou até mesmo de excitações secundárias, de ordem puramente pessoal.

Os Caminhos de Antônio Conselheiro

Guerra de Canudos – Xilogravura

No caso da serra solitária, Piquaraçá, que o frade italiano Apolônio de Todi — estranho à região sertaneja, formado na cultura europeia — transformou em Monte Santo, ali estabelecendo um culto místico assombroso, o místico não surge da terra atormentada, mas vem de uma cultura superior. Esse caso serve a Euclides para algumas observações severas contra padres e frades que, no seu entender, em vez de excitarem as boas qualidades dos sertanejos, excitam as más em suas pregações das penas eternas. A descrição de Euclides, viva e quase cruel, serve mais uma vez para mostrar que os místicos civilizados equiparam-se às vezes aos expoentes broncos do misticismo sertanejo. Euclides da Cunha e Antônio Conselheiro são vidas cruzadas no mapa da tragédia nordestina. Euclides atravessa os sertões de Canudos cruzando a rota do Conselheiro. São dois médiuns, dois paranormais. A vida de cada um deles está marcada por vicissitudes semelhantes. Mas Euclides é o gênio, e o Conselheiro é o fanático. Por isso suas vidas não são paralelas. Cruzam-se no ponto exato da paranormalidade rejeitada, incompreendida ou mal interpretada.

O perfil do Conselheiro traçado por Euclides serviria para ele mesmo como um autoretrato grotesco. Desde jovem, Antônio Maciel aparece na sociedade sertaneja como um marginal. A princípio, sua marginalização é positiva, seus padrões morais são mais elevados, suas aspirações o afastam do convívio comum. Mantém-se escandalosamente à margem do conflito familiar dos Araújo e Maciel. Isso parecia timidez ou covardia. A lei da violência e da vingança em Quixeramobim não poderia perdoá-lo por essa violação.

Até os 20 anos, aquele adolescente tranquilo e tímido, que Euclides apresenta como iniciando uma vida bem auspiciada, não revela os atavismos que eclodirão mais tarde. Acomodado, avesso à troca, honesto e consciencioso, após a morte do pai velou com abnegação pelas três irmãs solteiras que dele passaram a depender. Essa marginalização é característica do paranormal, cujas visões interiores o colocam acima das circunstâncias. Na vida de Euclides, a inquietação aparece também aos 20 anos, quando se desliga da Escola Politécnica para entrar na Escola Militar.

A marginalização social de Antônio Maciel prenunciava o asceta, o místico sertanejo, o guia e conselheiro das criaturas novas que deveriam formar uma nova sociedade. As novas gerações reelaboram as experiências das anteriores, como afirma Dewey. Os jovens tocam a rebate em toda renovação, lembra Ingenieros. Assim, os atavismos daquele jovem tranquilo não estavam nele, mas no meio social que ele não conseguiu vencer. Seus impulsos interiores eram benéficos, orientados para o amor e a compreensão dos homens como filhos de Deus.

A Metamorfose do Jovem Conselheiro

A partir de 1858, o jovem Antônio Maciel começa a se transformar. Para Euclides, essa metamorfose desencadeou-se com o casamento inadequado em que o jovem tranquilo teria de enfrentar a dura prova da incompatibilidade de gênios. Essa prova, escreve Euclides, marcou no jovem Maciel o momento em que seu caráter modelar começaria a perverter-se. A mulher — assinala o escritor — foi a sobrecarga adicionada à tremenda tara hereditária que desequilibraria uma vida iniciada sob os melhores auspícios. A verdade é que o momento de eclosão das faculdades paranormais nem sempre é pacífico, caracterizando-se não raro por violentas crises. À luz dos conhecimentos atuais, a mulher incriminada pode ter sido até mesmo uma vítima. E aquilo que para Euclides era tremenda tara hereditária nada mais seria do que o desencadear de pesadas influências psíquicas na mediunidade desabrochante do jovem sertanejo. A própria inquietação de Antônio Maciel nesse período, mudando incessantemente de empregos e de cidades, também no próprio Euclides essa eclosão não foi pacífica e deu-se na mesma fase etária, em 1886, quando, aos 20 anos, abandonou a Escola Politécnica, atingindo o auge em 1888, com o incidente verificado com o ministro da Guerra, que lhe valeu a exclusão do Exército.

Dez anos após a fuga da mulher em Ipu, com um sargento de polícia, Antônio Maciel reaparece transformado em anacoreta. Esse período misterioso em que a profunda inquietação do jovem Maciel o levara por andanças incertas, afastado do meio em que nascera e vivera, Euclides o atribui à vergonha do homem traído. Mas a própria mudança de personalidade que se verificara de maneira acentuada não parece justificar essa suposição. Nessas fases críticas, o paranormal quase sempre se retira do meio familiar, afasta-se para lugares distantes, mergulha solitário em seus conflitos íntimos. Podemos lembrar alguns exemplos históricos: a fuga de Buda do palácio real, abandonando a mulher inocente; os delírios ambulatórios de João Batista pelos desertos da Judeia; o isolamento de Paulo de Tarso num oásis após a visão da estrada de Damasco, momento crítico da sua eclosão mediúnica que transformou sua personalidade e mudou por completo sua vida.

A Israel Cabocla

Começaram depois as peregrinações e os martírios. Euclides diagnostica esse estado delirante como a fusão do obscurantismo de três raças. Posição cultural típica do século passado, quando Binet-Sanglé, em Paris, num exaustivo estudo em três volumes, denunciava a Loucura de Jesus. Não obstante, essa obra herética, La Folie de Jesus, traria excelente contribuição para a prova histórica da existência real do Messias.

A comparação dessas incompreensões, perfeitamente justificáveis pelas condições culturais do tempo, nos leva a outro paralelo. Conselheiro foi, para a sua gente, um messias sertanejo, encarnando ao mesmo tempo um pouco de Moisés e um pouco de Jesus. Peregrinando pelo sertão, à frente do seu povo, ele aparece como um Moisés de terracota. É o guia, o mestre, o libertador, o legislador e o juiz da nação cabocla. Nem mesmo a arca sagrada faltava na sua peregrinação. Um dos adeptos — conta Euclides — carregava o templo único da religião minúscula e nascente, um oratório tosco, de cedro, encerrando a imagem do Cristo.

Não havia intenção criminosa. Pelo contrário, o objetivo do Conselheiro era a salvação do seu povo. Ladeando as encostas abruptas de Monte Santo, em demanda da Canaã de Canudos, prega as ordenações bíblicas, anuncia o Reino dos Céus, condena e reforma a religião tradicional, determina penitências purificadoras. Sobe depois às alturas de Monte Santo, a que Euclides também subiria mais tarde, e lá em cima a sua mediunidade eclode, como a de Moisés, na produção dos chamados efeitos físicos, prodígios ou milagres tangíveis que assombrarão o seu povo e permanecerão no folclore da região.

Euclides o compara a Montano, o cismático frígio do segundo século, por seu horror à mulher como fonte de tentações e suas rijas penitências. Entregue a cilícios e jejuns espantosos, que o levaram às portas da morte, o Conselheiro enrijeceu na luta e seu prestígio cresceu por todo o sertão. Prega o afastamento de todos os prazeres sensuais e a preparação de todos para o Juízo Final. Esse ascetismo explica a indiferença com que os seus homens, derrotados em Canudos, entregavam o pescoço ao cutelo do adversário sem a menor reação. Eles, que haviam vencido tantas lutas, aceitavam a destruição de Jerusalém cabocla como um desígnio piedoso de lavagem.

Os Milagres de Conselheiro

Euclides relata alguns milagres de Conselheiro, hoje perfeitamente aceitáveis como realidade, diante das provas da pesquisa parapsicológica. Na construção da igreja do arraial do Bom Jesus, era preciso levantar pesado baldrame que dez homens não conseguiam mover. Conselheiro sobe no madeiro e apenas dois homens o erguem com facilidade. Fenômeno de levitação verificado em experimentações metapsíquicas e parapsicológicas, produzido, segundo Richet, pela impulsão do ectoplasma, e segundo William Crookes, pela força psíquica emanada do médium.

Na igreja de Monte Santo, após uma árdua peregrinação, exausto por haver subido gigantesca escadaria de pedra, Conselheiro vai orar diante do altar da capela, e a multidão estarrecida vê que duas lágrimas sangrentas rolam, vagarosamente, pelo rosto imaculado da Virgem Santíssima. Fenômeno telecinético de produção ectoplásmica verificável em experiências mediúnicas. Schrenck-Notzing os explica em seu livro Les Phenomeênes Physiques de la Mediunité.

Euclides refere-se a pragas e bênçãos de Conselheiro que produziram efeitos assustadores, como a praga lançada sobre a igreja de Natuba e as curas produzidas por suas bênçãos, ou mesmo à revelia dele, como as obtidas com as folhas de pequena árvore do povoado de Chorochó, nos sertões de Curaçá. As multidões que seguiam Conselheiro constituem testemunhos naturais dessas ocorrências, pois é evidente que são eles atrativos muito mais poderosos do que as prédicas do asceta. A fundação do arraial do Bom Jesus provocou o despovoamento das vilas das cercanias. Temos hoje, no planalto central de Goiás, a cidade espírita de Palmelo, que nasceu das curas mediúnicas de Candinho, médium curador que foi discípulo de Eurípides Barsanulfo, em Sacramento, Minas Gerais, e que não precisou agir como Conselheiro para atrair multidões àquelas distâncias.

Helena da Tróia Cabocla

A Tróia cabocla de Canudos teve também a sua Helena. Na terrível luta entre as famílias Araújo, poderosa e rica, e Maciel, pobre mas de coragem e bravura, que se tornaram lendárias nos sertões do Ceará, Helena Maciel aparece como figura central. Não chegou a conhecer o arraial do Bom Jesus, mas na crônica de Canudos sua presença é marcante. Manuel Ximenes, em suas Memórias, chama-a de Nêmesis da família, comparando-a à deusa grega da vingança. É uma figura impressionante de mulher sertaneja, inflexível na luta contra os inimigos da família.

Miguel Carlos Maciel, tio-avô de Conselheiro, foi um homem dotado de coragem extrema e de habilidades incríveis. Preso pelos Araújo, manietado e com as pernas amarradas por baixo da barriga do animal, escoltado pelos inimigos poderosamente armados, consegue escapar e fugir. Perseguido sem tréguas, é atacado num rancho a que se abrigara. Os inimigos, desesperados com a sua resistência, ateiam fogo ao casebre e matam-lhe a irmã. Miguel Carlos escapa do fogo, investe contra os inimigos, rompe as suas linhas e foge de novo.

Mais tarde é apanhado de surpresa quando se banhava no riacho da Palha com amigos e parentes. Todos fogem sob o fogo dos Araújo atocaiados nas margens. Miguel Carlos consegue chegar às portas da casa em que se abrigara, mas tomba atingido por uma bala, com a faca na mão. Manuel Araújo, chefe do bando, salta sobre ele e desfere-lhe ainda uma facada. O moribundo encontra forças para responder à agressão, cortando a carótida do adversário, que tomba sobre ele, morrendo os dois no mesmo instante.

É nesse momento que entra em cena no relato de Euclides a deusa vingadora, para um ato de extrema crueldade. Sai da casa para pisar o rosto de Manuel Araújo, sapateando sobre ele. E se declara satisfeita com a morte do irmão, Miguel Carlos Maciel, porque este lhe dera o consolo de levar para as sombras da morte o diabo inimigo. Helena defendia o irmão de tal maneira que chegara a mandar espancar ferozmente um parente dos Maciel que, segundo ela, era o espião que denunciava as visitas de Miguel Carlos à família.

Episódios como este mostram o terrível ambiente social em que nasceu e cresceu Conselheiro, mantendo-se, entretanto, alheio aos ódios tradicionais que envolviam as duas famílias em guerras sem tréguas. A vida de Euclides também não esteve livre de implicações dessa espécie e o que ele escreveu sobre o papel da mulher na vida de Conselheiro serve para a sua própria vida. Estranhos desígnios que fizeram assim encontrarem-se o escritor e o personagem, enleados por fios semelhantes na trama do destino!


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