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Carl Gustav Jung
(Collected Works, trad. R.F.C. Hull, Bollingen Series XX, vol. 9, II (Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1980))
O mito cristão permaneceu vivo e inalterado durante um milênio — até que os primeiros indícios de uma transformação da consciência começaram a surgir no século XI. Daí em diante, aumentaram os sintomas de inquietação e dúvida até que, neste final do segundo milênio, torna-se evidente a imagem de uma catástrofe universal que se inicia sob a forma de uma ameaça à consciência. Essa ameaça consiste do gigantismo — em outras palavras, uma arrogância da consciência — expresso na afirmação: “Nada é maior que o homem e seus feitos.” Perdeu-se a idéia do além, a transcendência do mito cristão, e com ela a visão da totalidade a ser alcançada no outro mundo. A luz foi seguida pela sombra, o outro lado do Criador. Esse desenvolvimento alcançou seu auge no século XX.
O mundo cristão defronta-se agora com o princípio do mal, com a injustiça sem disfarces, com a tirania, a mentira, a escravidão e a opressão da consciência. Sua primeira irrupção violenta surgiu na Alemanha. Aquela explosão de mal revelou até que ponto o cristianismo havia sido minado no século XX. Diante disso, o mal não podia mais ser minimizado pelo eufemismo da privatio boni. O mal tornou-se uma realidade determinante. Deixou de ser possível desembaraçar-se dele por uma circunlocução. E agora precisamos aprender a conviver com ele, pois ele está aqui e aqui permanecerá. Ainda não conseguimos conceber como viver com o mal sem sofrer terríveis conseqüências.
De qualquer modo, precisamos de uma nova orientação, de uma melanóia. Tocar o mal acarreta o grave perigo de sucumbir a ele. Precisamos, portanto, deixar de sucumbir a qualquer coisa, inclusive ao bem, Um “bem” ao qual sucumbimos perde seu caráter ético. Não que ele contenha, em si, qualquer mal, mas porque sucumbir a ele pode trazer conseqüências nocivas. Qualquer forma de vício é nociva, quer se trate de narcóticos, de álcool, de morfina ou de idealismo. Precisamos evitar pensar o bem e o mal como opostos absolutos. O critério da ação ética não pode mais consistir numa simples visão de que o bem tem a força de um imperativo categórico, enquanto o chamado mal pode ser resolutamente evitado. O reconhecimento da realidade do mal necessariamente torna relativo o bem — e também o mal —, convertendo cada um deles na metade de um todo paradoxal.
Em termos práticos, isso quer dizer que o bem e o mal deixaram de ser absolutos. Precisamos perceber que bem e mal representam um julgamento. Em vista da falsidade de todos os julgamentos humanos, não podemos acreditar que sempre julgaremos de modo correto. Podemos, com muita facilidade, ser vítimas de um julgamento equivocado. O problema ético só é afetado por esse princípio na medida em que nos sentimos um tanto incertos quanto às avaliações morais. Contudo, precisamos tomar decisões éticas. A relatividade do “bem” e do “mal” não significa, de modo algum, que essas categorias sejam nulas ou que não existam. O julgamento moral está sempre presente e traz consigo conseqüências psicológicas características. Já afirmei diversas vezes que, assim como no passado, também no futuro o erro que cometemos, pensamos ou intencionamos, se vingará da nossa alma. Apenas os conteúdos do julgamento estão sujeitos às diferentes condições de tempo e espaço e, portanto, assumem formas diferentes. Pois a avaliação moral é sempre baseada sobre as aparentes certezas de um código moral que pretende conhecer com exatidão o que é bom e o que é mau. Mas, uma vez que saibamos como essa base é incerta, a decisão ética torna-se um ato de criação subjetiva.
Nada poderá poupar-nos do tormento da decisão ética. Contudo, por mais duro que isso possa parecer, em algumas circunstâncias precisamos ter a liberdade de evitar aquilo que é visto como bem moral e fazer aquilo que é considerado mal, se a nossa decisão ética assim o exigir. Em outras palavras: não podemos sucumbir a nenhum dos opostos. Um padrão útil é oferecido pelo neti neti [nem isto, nem aquilo] da filosofia hindu. Nesse contexto, e em certos casos, o código moral é inevitavelmente abolido e a escolha ética é deixada ao indivíduo. Em si, nada existe de novo nessa idéia; as escolhas difíceis já eram conhecidas nos tempos pré-psicológicos, quando eram chamadas “conflito de deveres”.
Mas em geral o indivíduo é de tal modo inconsciente que não percebe suas próprias possibilidades de decisão. Em vez disso, ele se envolve numa busca constante e ansiosa de regras e regulamentos externos que possam orientá-lo na sua perplexidade. Além da inadequação humana geral, grande parte da culpa por esse estado cabe à educação, que promulga as velhas generalizações e nada informa sobre os segredos da experiência pessoal. Assim, fazem-se todos os esforços para ensinar crenças ou condutas idealísticas que o indivíduo conhece no seu coração, mas às quais não consegue corresponder, E esses ideais são pregados por autoridades que sabem que elas próprias nunca corresponderam a esses altos padrões nem jamais o farão. E o que é mais, o valor desse tipo de ensinamento nunca é questionado.
Portanto, a pessoa que deseja ter uma resposta para o problema do mal, conforme ele se apresenta hoje, necessita, em primeiro lugar, de autoconhecimento, ou seja, do conhecimento mais absoluto possível da sua própria totalidade. Precisa saber a fundo quanto bem pode fazer e de quantos crimes é capaz, e deve evitar encarar um como real e o outro como ilusório. Ambos são elementos da sua natureza e ambos estão destinados a vir à luz nele, se ele desejar — como deveria — viver sem enganar ou iludir a si mesmo.
Mas, em geral, a maioria das pessoas está por demais distanciada desse nível de consciência; se bem que muitas pessoas hoje em dia possuem em si mesmas a capacidade para uma percepção mais profunda. Esse autoconhecimento é da maior importância, pois através dele nos aproximamos daquele estrato fundamental, ou âmago, da natureza humana onde se situam os instintos. Nessa camada profunda, estão aqueles fatores dinâmicos que existem a priori e que, em última análise, governam as decisões éticas da nossa consciência. Eles compõem o inconsciente e seus conteúdos, a respeito do qual não conseguimos emitir nenhum julgamento definitivo. Nossas idéias sobre o inconsciente estão fadadas a ser inadequadas, pois somos incapazes de compreender cognitivamente sua essência e estabelecer limites racionais para ele. Só podemos alcançar o conhecimento da natureza através de uma ciência que amplie a consciência; logo, o autoconhecimento aprofundado também exige ciência, isto é, psicologia. Ninguém constrói um telescópio ou microscópio com um estalar de dedos e boa vontade, sem conhecimento da óptica.
Atualmente precisamos da psicologia por razões que envolvem a nossa própria existência. Ficamos perplexos e aturdidos ante o fenômeno do nazismo ou do bolchevismo porque nada sabemos sobre o homem ou porque dele fazemos apenas uma imagem distorcida e desfocada. Se tivéssemos um certo conhecimento de nós mesmos, o caso seria diferente. Estamos face a face com a terrível questão do mal e nem sequer sabemos o que está diante de nós, muito menos que resposta lançar contra ele. E, mesmo se soubéssemos, ainda assim não compreenderíamos “como as coisas chegaram a esse ponto”. Demonstrando gloriosa ingenuidade, um estadista recentemente vangloriou-se de não possuir “imaginação para o mal”. Muito certo: nós não possuímos imaginação para o mal, mas o mal nos tem em suas mãos. Alguns não querem saber sobre o mal e outros estão identificados com ele. Essa é a situação psicológica do mundo nos nossos dias: alguns se denominam cristãos e imaginam poder, por um simples ato de vontade, calcar o suposto mal sob seus pés; outros sucumbiram ao mal e não vêem mais o bem. O mal, hoje, tornou-se uma Grande Potência. Metade da humanidade alimenta-se e se fortalece com uma doutrina fabricada por elucubrações humanas; a outra metade sofre a falta de um mito apropriado à situação. As nações cristãs chegaram a um triste impasse; seu cristianismo está adormecido e não cuidou de desenvolver seu mito no decorrer dos séculos.
Nosso mito emudeceu e não dá mais respostas. A culpa não cabe a ele, tal como está contido nas Escrituras, mas apenas a nós mesmos, que não continuamos a desenvolvê-lo; a nós mesmos que, pelo contrário, reprimimos quaisquer tentativas nesse sentido. A versão original do mito oferece amplos pontos de partida e possibilidades de desenvolvimento. Por exemplo, as palavras colocadas na boca de Jesus: “Sede, portanto, astutos como a serpente e cândidos como pombas.” Para que propósito precisariam os homens da astúcia da serpente? E qual a ligação entre essa astúcia e a candura da pomba?
A questão outrora colocada pelos gnósticos, “De onde vem o mal?”, não recebeu nenhuma resposta do mundo cristão; e a cautelosa sugestão de Orígenes sobre uma possível redenção do demônio foi acusada de heresia. Hoje, somos compelidos a enfrentar essa questão; mas estamos de mãos vazias, espantados e perplexos, e nem sequer percebemos que nenhum mito virá em nosso auxílio, embora tenhamos tão urgente necessidade dele. Como resultado da situação política e dos assustadores, para não dizer diabólicos, triunfos da ciência, somos agitados por tremores secretos e escuros pressentimentos; mas não sabemos o que fazer e poucos são os que perceberam que desta vez trata-se da alma humana, há muito esquecida.
Assim como o Criador é uma totalidade, também a sua Criatura, Seu filho, deveria ser uma totalidade. Nada pode suprimir o conceito da totalidade divina. Mas, sem que ninguém o percebesse, ocorreu uma cisão nessa totalidade; dela emergiu um reino de luz e um reino de trevas. Esse resultado já se prefigurava claramente mesmo antes do aparecimento de Cristo, como podemos observar, inter alia, na experiência de Jó ou no Livro de Enoch, bastante difundido e que pertence aos tempos imediatamente pré-cristãos. Também no cristianismo essa cisão metafísica foi claramente perpetuada; Satã, que no Antigo Testamento ainda pertencia ao séquito íntimo de Jeová, formava agora o oposto diametral e eterno ao mundo divino. A partir daí, tornou-se impossível extirpá-lo. Portanto, não é de surpreender que logo no início do século XI tenha surgido a crença de que o diabo, e não Deus, havia criado o mundo. Deu-se, assim, a tônica para a segunda metade da era cristã, depois que o mito da queda dos anjos já explicara que esses anjos caídos haviam ensinado aos homens um perigoso conhecimento da ciência e das artes. O que esses antigos narradores teriam a dizer sobre Hiroshima?
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