Este texto foi lambido por 205 almas esse mês
Tudo começou no dia em que o sol se apagou no aquário. O sol na realidade não era um sol de verdade – era uma lâmpada elétrica – mas, até agora, Barbatanas Vermelhas, que, naquele preciso momento estava se alimentando da comida que havia justamente caído na superfície da água, sempre o havia chamado de “o sol” e sempre houvera pensado nele como parte permanente e imutável do seu mundo.
Levou algum tempo para que os seus olhos viessem a se acostumar às novas visões que surgiram depois que o aquário mergulhou na escuridão. Aquelas paredes de cristal espelhadas que cercavam o seu universo – que sempre o haviam mantido dentro dos seus domínios confortáveis e confinado as suas perspectivas dentro de um mundo parecido com uma caixa – se tornaram gradualmente mais e mais transparentes, finalmente revelando um mundo, impossivelmente imenso e incrivelmente novo que parecia estar povoado por pessoas – ele decidiu chamar aquelas criaturas de pessoas na falta de um termo melhor – criaturas espantosas que pareciam ser tão grandes quanto o seu universo inteiro! Aquelas imensas criaturas que se assemelhavam a balões se moviam impossivelmente lentas, flutuando vagarosamente frente ao seu olhar espantado, perseguindo alguma missão que lhe era completamente inimaginável.
Ele se sentiu como se estivesse flutuando no centro exato daquele mundo enorme que se havia aberto ao seu redor, e que ele poderia ser subitamente dominado para dentro daquela confusão brilhante e estonteante de novas formas e cores que invadiam o seu cérebro, colidindo com os símbolos limitados da sua perspectiva ordinária de mundo, e com isto, a sua mente explodiu com o impacto disso tudo.
A sua visão falhou completamente em se ajustar às novas perspectivas. Mesmo sabendo que as paredes de cristal o mantinham isolado da dimensão mais alta situada para fora do aquário, o seu corpo reagiu com a produção de novas e estranhas sensações à medida que tentava se adaptar ao novo ambiente, mesmo que não se encontrasse fisicamente dentro deste. Barbatanas Vermelhas – junto com todos os outros peixes do aquário – entrou num coma temporário, perdendo os sentidos e, quando recuperaram os sentidos, o sol estava novamente brilhando como sempre e todos, isto é, todos menos Barbatanas Vermelhas – continuou com os seus afazeres como se nada tivesse acontecido.
Talvez para eles nada tivesse acontecido, mas algo havia se modificado permanentemente em Barbatanas Vermelhas. Ele sabia que dali para a frente, ele nunca mais seria o mesmo peixe que antes.
“Deve haver mais na vida do que apenas a busca incessante por comida e boas conversas,” disse ele para ninguém em particular. Isto não era algo incomum. Ele raramente falava com outros peixes e quando o fazia, provavelmente seria com a sua amiga, Barbatanas de Prata.
Ele teria feito este comentário diretamente a ela, mas infelizmente ela se encontrava naquele preciso momento exatamente no outro lado do aquário e assim ele fez o melhor que podia: falou com um número de plânctons microscópicos que se encontravam por perto e que tentavam atrasar a sua inevitável ingestão ao tentar uma espantosa e dramática demonstração de intenso interesse naquelas palavras.
Se Barbatanas Vermelhas tivesse chegado a percebê-los, talvez não fosse tão rápido em engoli-los na próxima golfada de água que engoliu, mas como ele não os havia percebido, acabou engolindo-os de uma só vez.
“Deve haver mais nisto do que apenas isto” disse ele, continuando, mas eu não tenho a menor idéia do que possa ser”.
“O que?” perguntou de passagem uma barracuda miniatura.
“Nada”, respondeu Barbatanas Vermelhas algo grosseiramente. Ele estava pensando muito intensamente naquele momento.
“Nada?” , pressionou o outro peixe.
“O quê?” perguntou Barbatanas Vermelhas, confuso.
“Você disse nada”, replicou a barracuda, “mas eu ouvi distintamente você falar algo há alguns momentos atrás”.
“Eu disse,” respondeu Barbatanas Vermelhas, “que deveria haver mais nisto do que apenas isto, mas eu não tenho a menor idéia do que deva ser… ou algo parecido”.
“Mais do que nisto?”, perguntou a barracuda.
“Vida”, Barbatanas Vermelhas pensou que conseguira explicar.
“Oh”, disse a barracuda, rapidamente nadando para longe antes que a conversação se tornasse ainda mais perigosamente filosófica do que já estava se tornando.
Subitamente, num rasgo avassalador de intuição, Barbatanas Vermelhas percebeu a sua real situação: ele se viu como ele realmente era e estava.
Ele foi atingido pelo fato inescapável de que ele era um peixe… um peixe que vivia num aquário… cujas paredes podiam se tornar imprevisivelmente transparentes a qualquer momento, se o sol viesse a se apagar novamente, mesmo que por alguns instantes.
Ele sabia que logo por detrás do muro de cristal existia uma outra dimensão incompreensível, ordinariamente invisível e impensada, mas ainda assim ali presente, fosse ou não fosse vista por alguém. Essa constatação, embora não viesse a impressionar a maioria dos peixes, atingiu Barbatanas Vermelhas como se fosse um raio.
Ele sempre havia imaginado que as paredes do aquário fossem os limites mais longínquos de um universo confortavelmente finito; agora ele percebia que não se podia confiar nessas mesmas paredes para conterem e controlar essas perspectivas de quase infinito que estavam logo por detrás das suas superfícies reluzentes de zombeteira ilusão de segurança.
Uma vez que não havia ninguém a quem ele pudesse se voltar para pedir ajuda, não se podia esperar que Barbatanas Vermelhas soubesse o que procurar e onde, ou mesmo como partir em busca de algo do qual ele possuía apenas um desejo indistinto e mal definido de alcançar.
Ele estudou o ambiente à sua volta com aquele estado observacional peculiarmente abrangente, englobante e desidentificado que havia lhe sido conferido desde o Tempo da Escuridão e que parecia que permanecera com ele muito tempo depois de que o aquário havia retomado as suas atividades rotineiras.
Cada criatura viva dentro do aquário parecia ter o seu lugar e função definida, e tudo se parecia ligado com tudo o mais.
Aos poucos, ele começou a perceber o fato de que os peixes dentro daquele aquário constituíam muito mais do que um mero mundo fora de contexto com qualquer outra coisa. Este fazia parte de algo muito maior e muito mais espantoso do que ele sequer poderia imaginar.
Ele nunca havia pensado muito sobre aquilo antes, mas ele viu – e de alguma maneira sentia que sempre havia sabido daquilo – que tudo no aquário possuía o seu lugar definido.
Cada um dos peixes tinha o seu papel necessário e inescapável dentro da hierarquia social e ecológica do aquário.
“Talvez nós todos fomos colocados dentro do aquário por aquelas imensas criaturas da dimensão mais elevada”, ponderou ele no meio das algas próximas, de cujo interior a cabeça do seu amigo Nariz de Garrafa emergiu, “… selecionados de acordo com umacompatibilidade mútua”, acrescentou ele.
“Você chama a isto de compatibilidade? Ironizou Nariz de Garrafa. “Simplesmente dê uma olhada para aquele bando de imbecis na superfície, lutando pelo almoço. E o que é que nós acabamos recebendo? Os restos daquilo que sobra depois que eles acabaram com tudo, é isto o que acontece!” “Eu sempre me perguntei,” continuou Barbatanas Vermelhas ignorando as queixas de Nariz de Garrafa, “por que nós nunca encontramos todos aqueles predadores mortais inimigos que nos descreviam quando éramos filhotes”.
“Aquilo tudo era um monte de bobagens para nos assustar e fazer com que obedecêssemos aos adultos”, replicou Nariz de Garrafa. “Não existe aquilo de um imenso oceano cheio de tubarões do tamanho do nosso universo inteiro”.
“Eu não acredito que tudo tenha sido mera invenção,” disse Barbatanas Vermelhas, “mas uma coisa é certa, nenhum de nós conseguiria sobreviver no meio deles… não num pequeno e auto contido ambiente selado, do qual não há escapatória”.
“Não há escapatória? Escapar para onde?” perguntou Nariz de Garrafa.
“Não sei”, disse Barbatanas Vermelhas, “mas se eu vier a descobrir, terei prazer em lhe contar”.
“Não se dê ao trabalho”, disse Nariz de Garrafa. “Por que haveria alguém de querer escapar daqui? Existe comida abundante”, acrescentou ele, à medida que deslizava em direção a bocados de comida que estava descendo em direção ao fundo do aquário.
Barbatanas Vermelhas não se sentia particularmente faminto. Estava mais fascinado pelo espetáculo de todos aqueles peixes nadando envolta do aquário. “Todos os outros peixes,” lembrou-se a si mesmo.
Por alguma estranha razão, desde a sua experiência durante o Tempo da Escuridão – não, na realidade fora vários minutos depois desta, mas com certeza, algo desencadeado pela sua visão das dimensões mais elevadas – ele havia parado de pensar sobre si mesmo como um peixe; ele havia começado a pensar sobre si mesmo como pertencendo a um outro tipo diferente de espécie – ou até mesmo não mais pertencendo a nenhuma espécie.
Ele se percebeu observando com repugnância a maneira pela qual os outros peixes reagiam uns para com os outros. Ele nunca havia notado as relações de dominância e submissão entre as espécies antes, mas agora, nesse novo e estranho estado de desligamento da realidade à sua volta, ele podia ver que alguns dos peixes eram muito agressivos e gregários enquanto que outros pareciam desejar evitar qualquer tipo de envolvimento – mesmo que momentâneo – a qualquer custo Pela primeira vez na sua vida, ele se encontrou perguntando o porquê parecia que alguns peixes nunca se aventuravam para longe da superfície da água enquanto que outros permaneciam no fundo do aquário, nunca se afastando demais da areia por todas as suas vidas e alguns deles, como ele, pareciam preferir – ele usou aqui a palavra “preferir” para indicar aquela força estranha e poderosa das diretivas biológicas internas contra as quais ele havia sempre lutado contra desde quando podia se lembrar – o meio do aquário.
Numa espantosa nova perspectiva, ele viu os escavadores do fundo do aquário não como indivíduos, mas como funções matemáticas do ambiente, como coletores de lixo, consumindo os materiais semi-microscópicos não-consumidos em decomposição que lentamente se filtravam num fluxo contínuo a partir dos níveis mais altos e que, de outra maneira, inundariam as pedras com lodo e limo.
“Inferno”, borbulho ele, “ninguém mais estaria disposto a comer aquela porcaria”.
“Certamente que ninguém quereria”, borbulhou o seu amigo Nariz de Garrafa, por detrás. Barbatanas Vermelhas não ficou sobressaltado nem assustado; era evidente que Nariz de Garrafa estava tentando assustá-lo e ele não queria lhe dar essa satisfação.
“Não,” disse Barbatanas Vermelhas, “provavelmente não”.
“É um trabalho sujo”, disse Nariz de Garrafa, balançando a sua cabeça lentamente de lado a lado, “mas alguém tem de faze-lo”.
“Eu sabia que você ia dizer isto”, replicou Barbatanas Vermelhas. “Mas você está certo.
Se não fosse pelos escavadores – deixando de lado momentaneamente a questão de que eles estão engolindo aquela porcaria de vontade própria e sabendo o que estão fazendo, ou então estão realizando a tarefa de forma completamente automática, como resultado de ordens profundas oriundas do DNA, alojadas em alguma obscura cadeia protéica.” “DNA?” , perguntou Nariz de Garrafa. “Cadeia protéica? Que diabos você está falando?” “Se eu soubesse, estaria falando com você agora? Respondeu Barbatanas Vermelhas.
Ele riu.
“O que há de tão engraçado?”, perguntou Nariz de Garrafa.
“Olhe para todos aqueles peixes engolindo os bocados de comida que os habitantes da superfície deixaram escapar.
“E daí?”, respondeu Nariz de Garrafa, “você vê isto todos os dias”.
“Sim, mas isto nunca havia me parecido engraçado antes”, respondeu Barbatanas Vermelhas.
“Mas o que há de engraçado nisto?”, desafiou Nariz de Garrafa.
“Um monte de coisas”, defendeu Barbatanas Vermelhas.
“Como o quê?” “Olhe quanta comida existe; o aquário inteiro está cheio de pedaços flutuantes de comida, mas os nossos amigos parecem estar num frenesi completo para consumir mais e mais, como se o alimento fosse acabar de uma hora para outra”.
“Mas certamente que eles estão comendo tudo o que podem”, disse Nariz de Garrafa, “quem é que não comeria assim?” “Mas você não vê? disse Barbatanas Vermelhas: “Olhe para eles, esgotando rapidamente a sua força vital num festim incessante”.
“E daí, não estou compreendendo o que você quer dizer”, disse Nariz de Garrafa.
“O que eu quero dizer é que eles estão desperdiçando energia à procura de comida, não concorda comigo?” “Certo. Mas o que há mais para fazer, exceto talvez, fertilizar ovos?” concordou Nariz de Garrafa.
“Mas depois eles tem de sair em busca de mais comida para poderem repor a energia que gastaram em busca da comida!” exclamou Barbatanas Vermelhas triunfantemente.
“Não estou entendendo a piada” falou friamente Nariz de Garrafa, e saiu em busca de um pouco mais de comida ou para fertilizar alguns ovos, Barbatanas Vermelhas não conseguiu saber ao certo.
Ordinariamente, Barbatanas Vermelhas estaria junto com os demais peixes, participando do festim… mas no momento, a sua aguda indiferença havia conquistado o seu apetite.
Ele sentiu uma vaga sensação nas suas vísceras que ele sabia que não era causada pela fome; era uma sensação estranha, um sentimento de agitação insaciável que ele se recordava ter experimentado nos seus agitados anos de adolescência. Mas ele já não era mais um adolescente. Por que estão estava se sentindo daquela maneira? A sua vida havia sido destroçada pela escuridão e a visão das dimensões mais elevadas.
Ele tinha de saber o que é que tudo aquilo significava. Será que os seus sentidos estavam lhe pregando peças? Tivera ele realmente visto aquilo que pensava ter visto? Com nada melhor em mente, ele continuou a sua observação imparcial das atividades no aquário, que agora lhe pareciam quase que coreografadas e orquestradas.
O seu olhar vagou ao redor dos confins do seu mundo e acabou recaindo naquele fantástico castelo cujas torres se erguiam para o alto, em direção à luz brilhante que penetrava as distantes camadas superficiais de uma água cristalina a não se saber quantas centenas, ou talvez milhares de milímetros sobre a sua cabeça. Ele se flagrou observando os outros habitantes das camadas intermediárias do aquário – os turbarõezinhos, os barrigas-vermelhas e os lebistes – com um tipo de indiferença transcendente, à medida que eles nadavam preguiçosamente ao longo de caminhos que ele sempre imaginara que fossem devidos ao acaso mas que ele agora percebia que eram padrões totalmente fixos, congelados.
Ele sabia que mesmo que eles viessem a ser motivados a se desviarem dos seus caminhos, o que não aconteceria acidentalmente mesmo num futuro imprevisível, eles nunca seriam capazes de se desviarem sequer uma pequena fração daqueles corredores invisíveis daquele labirinto rígido, auto-criado e mantido psicologicamente.
Ele observou as outras criaturas, à medida que elas nadavam, se arrastavam ou ondulavam abrindo o seu caminho pelo aquário, numa intensa busca de quaisquer que fossem os seus objetivos fúteis e sem direção, que as impeliam numa atividade incessante.
Ele observou a tartaruga à medida que ela quietamente seguia os seus obscuros, enigmáticos, inescrutáveis… não, talvez fosse melhor descrevê-los como indiscerníveis interesses, ignorando industriosamente os outros habitantes do aquário.
Apesar de toda aquela aparente atividade, ficava óbvio num relance, que a multidão dos habitantes das camadas superficiais, intermediárias e do fundo tinham um contato extremamente limitado uns com os outros e que essa atividade era em si mesma inútil, dispersa, um espasmo nervoso acontecendo à medida em que eles cuidadosamente procuravam evitar qualquer contato entre si no desenrolar da sua busca incessante por comida.
Os outros peixes pareciam ter esquecido completamente tudo sobre o Tempo da Escuridão. Eles haviam retornado às suas rotinas mais uma vez, como se nada houvesse acontecido.
“Por mim eles podem continuar ignorantes, se é isto o que eles desejam”, entonou ele de forma mordaz, “mas não para mim. Não terei um único momento de sossego até que eu venha a conseguir toda a informação que eu necessito para conseguir compor esse quebra-cabeças antes que eu perca a minha sanidade ou termine como uma porção de gefilte fish colocada sobre a torrada de alguém”.
“O que é gefilte fish?”, berrou Lados Amarelos, quando ele entrou na conversa, vindo do outro lado da torre do castelo mais próxima.
“Não se preocupe com o gefilte fish”, acrescentou Arco-Íris, que havia acabado de sair de uma arca de tesouro enterrada na areia, onde estava aborrecendo uma coisa magra e comprida que lembrava uma minhoca, mas que não era, “o que é uma torrada?” “Eu não sei”, admitiu Barbatanas Vermelhas. “Eu estava apenas falando comigo mesmo”.
“Como sempre…” disse Arco-Íris.
“O quê?”, perguntou Barbatanas Vermelhas, pego de surpresa.
“Como sempre”, repetiu Arco-Íris, sem muita paciência. “Você estava falando com você mesmo novamente. Você faz isto o tempo todo!” “Não faço”, teimou Barbatanas Vermelhas para o espaço que eles estavam ocupando momentos atrás. Arco-Íris e Lados Amarelos haviam saído rapidamente à procura de comida, deixando um rastro de bolhas no seu caminho.
Barbatanas Vermelhas olhou para o longo sol tubular que brilhava num tom laranja no céu, quase que esperando que a Escuridão descesse novamente… nem que fosse por alguns instantes.
“Isto ensinaria aqueles bundas-moles”, disse ele e imediatamente notou que estava falando consigo mesmo, novamente, então cerrou firmemente a sua boca e ficou ali num silêncio teimoso.
Mas o sol continuou ali a brilhar com a sua luz laranja, e de certa forma, ele ficou contente. Na realidade ele não estava pronto para algo assim tão drástico, mas de outro lado podia perceber que o choque da sua nova percepção estava se diluindo rapidamente.
Talvez ele estivesse precisando de um novo choque para faze-lo seguir adiante ou então – e logo -, ele poderia vir a esquecer de tudo o que ocorrera e então talvez viesse a mergulhar de volta ao seu estado de esquecimento anterior e voltar a ser como todos os outros peixes.
Ele enviou os tentáculos do seu pensamento para a frente, procurando gerar uma imagem que abraçasse todo o aquário.
Ele imaginou o seu próprio e confortavelmente limitado universo como fazendo parte de uma diminuta porção de uma dimensão maior que o ele agora sabia que estava à sua volta.
Ele imaginou parentes vastamente maiores do seu próprio aquário, à medida que a sua mente corria livremente por sobre oceanos, mares, lagos, vibrando com a imensidade de tudo.
Os seus pensamentos se tornaram mais e mais poderosos, rompendo barreira após barreira, imaginando panoramas cada vez maiores, a sua visão voando em todas as direções, se expandindo para além e além e além.
Ele viu o turbilhão giratório e brilhante das luzes alaranjadas de trilhões de sóis tubulares enxameando em padrões fixos no interior de grandes agrupamentos galácticos retangulares, girando através de um oceano ilimitado e cristalino, tudo suspenso num equilíbrio delicadamente mantido, precisamente mantido, em relações de reciprocidade matemática.
A sua mente pulou, correu e deslizou por experiências situadas para aquém da capacidade de descrição das palavras, pensamentos e imagens até que finalmente, ele viu a si próprio flutuando numa imensa escuridão, que se estendia infinitamente para todas as direções, ainda assim, com tudo preenchido até às bordas com a sua própria presença.
Ali ele se manteve, num perfeito equilíbrio naquilo que parecia uma eternidade que parecia que nunca mais iria acabar, suspenso momentaneamente no próprio centro daquele vácuo vazio e então, subitamente, ele caiu… numa espiral giratória e estonteante, percorrendo o caminho de volta para um corpo e mente de um peixe.
Num misto de surpresa e desgosto, ele olhou à sua volta, para se descobrir mais uma vez dentro do aquário. Ele procurou pela respiração que ele tivera mantido em suspenso até então, as suas nadadeiras rapidamente batendo contra a água para mantê-lo em equilíbrio contra a corrente suave que atravessava a água naquele momento.
Nariz de Garrafa havia voltado e estava olhando para Barbatanas Vermelhas com um olhar misto de curiosidade e de suspeitas.
“O que é que está acontecendo com você?”, perguntou ele, quando Barbatanas Vermelhas retornou do seu estado visionário.
“Não tem solução”, disse Barbatanas Vermelhas. “O que posso fazer? Estou aprisionado num corpo de peixe, com uma mente de peixe, condenado a uma vida relativamente curta dentro de um aquário selado”. “Ora, faça o que quiser fazer”, replicou Nariz de Garrafa.
“Não, não”, disse Barbatanas Vermelhas, “eu não estou falando das coisas ordinárias; eu estou falando de algo significativo… algo de real conseqüência não somente para mim…
algo que fique para muito além das ridículas satisfações desse pequeno mundo”.
“Pequeno?”, riu Nariz de Garrafa, “você chama esse mundo de pequeno? Você seria capaz de imaginar um mundo maior do que este?” “Imaginar, uma ova”, respondeu Barbatanas Vermelhas. “Eu vi esse mundo maior com os meus próprios olhos. Existe um mundo maior do que o nosso; muito maior”.
“Não deixe que isto o aborreça”, disse Nariz de Garrafa. “Certa vez eu vi algo parecido”.
“Você viu?”, perguntou Barbatanas Vermelhas sofregamente. “Você precisa me contar tudo!” “Não posso”, respondeu Nariz de Garrafa.
“Mas por que não?” exigiu Barbatanas Vermelhas.
“Porque eu não me lembro dos detalhes, este é o porquê. Eu desmaiei.” “Ah! Tem de ser a mesma coisa que eu vi”, disse Barbatanas Vermelhas animado, “por que eu também desmaiei”.
“Nós dois desmaiamos”, disse Nariz de Garrafa. “Então nós dois vimos a mesma coisa…
raciocínio estranho, Barbatanas Vermelhas”.
“Está bem! Está bem! Concordo com você que esta não é a lógica mais impecável do mundo”, disse Barbatanas Vermelhas, “mas existem boas chances de que nós dois vimos a mesma coisa. Portanto não foi um sonho ou uma alucinação. E isto quer dizer que existe algo maior do que o nosso próprio mundo.
“Está certo, Barbatanas Vermelhas”, disse Nariz de Garrafa, “suponhamos que exista mesmo. Para que isto nos serve?” “Você não consegue ver? Isto significa que existe a possibilidade da realização de algo com a minha vida, algo mais do que meramente comer, dormir e dormir e comer, contando o tempo até que a morte venha e leve tudo para o nada”.
“Nada?”, perguntou Nariz de Garrafa.
“Nada. Um grande, imenso e gordo zero”.
“Bem, suponha que, por exemplo, você construa um castelo de areia”, sugeriu Nariz de Garrafa. “Isto seria uma grande realização, algo que qualquer peixe do aquário teria orgulho de realizar.” “Sim”, concordou Barbatanas Vermelhas, “mas será que ainda assim eu teria realizado algo de significado objetiva, algo possuindo um significado além da simples satisfação subjetiva de ter tomado uma porção do aquário e atuado sobre ela, empilhando ou acrescentando coisas nela – por mais estético que pareça o resultado final, numa outra parte do aquário?” “Será que essa pequena proeza modificaria algo para mim? Será que o meu destino seria realmente diferente então do que é agora? Que diferença poderia me acarretar algo como isto numa perspectiva maior?” “Eu não quero gastar o resto da minha vida substituindo velhas formas por novas”.
“Mas então o que você deseja, se não são as satisfações mais simples?”.
“Eu não sei”, disse Barbatanas Vermelhas admitiu pensativamente. “Gostaria de saber, mas o problema é que eu não sei o que é que estou procurando”.
“Comparativamente falando, esse é um problema menor”, disse Nariz de Garrafa, “quando comparado com o grande problema”.
“Que é?”, inquiriu Barbatanas Vermelhas.
“Que é: você seria capaz de reconhecê-lo quando viesse a encontrá-lo?” “Você quer dizer, se eu vier a encontrá-lo”, disse Barbatanas Vermelhas.
“Se você vier a encontrá-lo”, concordou Nariz de Garrafa.
“Eu não consigo compreender nada daquilo que eu vi do “Lado de Fora”, continuou Barbatanas Vermelhas, “nada do que eu vi daquele mundo me faz qualquer sentido; ele não se relaciona com nada que se pareça com a nossa vida dentro do aquário”.
“Mas mesmo que eu não tenha tido a capacidade de aprender sobre a dimensão mais elevada, eu fui capaz de usar aquilo que eu aprendi para fazer algumas especulações educadas sobre a natureza real do nosso próprio mundo….” “Como por exemplo?”, perguntou Nariz de Garrafa, embora ele não estivesse muito certo que desejasse por uma resposta. Ele se deu um auto-pontapé mental por se permitir continuar a encorajar os delírios de Barbatanas Vermelhas.
“Bem, eu não sei bem se tenho informações suficientes”, contemporizou Barbatanas Vermelhas, “mas se eu estou interpretando a experiência corretamente, imagino que posso concluir com segurança que o nosso mundo é inteiramente artificial – exceto é lógico, por nós mesmos e os outros animais como os caracóis, tartarugas e enguias… e as plantas… e mais, que esse nosso mundo possui limites claros, precisos e definidos”.
“Eu posso concordar com isto”, disse Nariz de Garrafa.
“E que este nosso mundo parece estar rodeado por um aquário vastamente maior, do qual o nosso é apenas uma pequena parte”, continuou Barbatanas Vermelhas.
“Penso que você está absolutamente correto”, concordou Nariz de Garrafa, meneando pensativamente a sua cabeça o melhor que podia já que sendo um peixe ele não possuía um pescoço.
“…E que o propósito da existência do nosso aquário… assim como de nós todos… é provavelmente puramente decorativo… O que está acontecendo com você?”, perguntou Barbatanas Vermelhas, quando viu que o outro peixe se afastava dele, chocado.
“Não sei”, respondeu Nariz de Garrafa. “Devo ter desmaiado por uns instantes. O que é mesmo que estávamos discutindo?” “Eu estava dizendo”, repetiu Barbatanas Vermelhas, “que eu cheguei à conclusão que o nosso aquário -e todos nós dentro dele faz parte da decoração interna de um mundo maior que fica Lá Fora”.
“Oh!, disse Nariz de Garrafa, agora refeito do seu primeiro choque, “isto é muito interessante”.
“Eu também acho”, respondeu Barbatanas Vermelhas sem perceber a ironia implícita.
“Como você acha que os outros peixes receberiam essa idéia?” “Eu não sei”, respondeu Nariz de Garrafa, “você está pensando em lhes contar?” “A possibilidade disto me ocorreu”, admitiu Barbatanas Vermelhas.
“Foi um prazer tê-lo conhecido”, disse rapidamente Nariz de Garrafa, se afastando o mais depressa que podia, desaparecendo das vistas.
“A dimensão mais elevada poderia nos ser visível agora mesmo, neste preciso momento…”, gritou ele na direção de Nariz de Garrafa, à medida que este se afastava rapidamente, “se apenas pudermos reajustar a nossa visão de tal modo que ela possa penetrar para além das barreiras que as nossas mentes foram condicionadas a aceitar cegamente como os limites do universo!” “Não é uma barreira física”, continuou ele num grito agudo que Nariz de Garrafa fez o melhor que pôde para ignorar, já que ainda estava ao alcance da voz de Barbatanas Vermelhas; “ela é uma barreira psicológica!” “Não consigo ouvir uma única palavra que você está falando,” murmurou Nariz de Garrafa à medida que fazia de tudo para aumentar a distância que separava a ele daquele maluco do Barbatanas Vermelhas. Pensou com os seus botões: “Não há nada de mais patético do que um peixe que está totalmente podre…”.
“Isto não é apenas uma mera situação de se ajustar pura e simplesmente o modo de visão; o nosso próprio cérebro foi completamente condicionado”, remoeu Barbatanas Vermelhas.
“Isto quer dizer que se eu desejo quebrar os condicionamentos psicológicos profundos, terei de cavar profundamente e diretamente dentro do meu subconsciente e destruir sozinho, uma por uma, as barreiras criadas por uma porção inacessível da minha própria mente que, até agora eu sequer suspeitava que existisse dentro de mim”.
“Não vai ser fácil descondicionar o cérebro dos hábitos costumeiros que foram reforçados ao longo da minha vida inteira”, concluiu ele, enquanto Arco-Íris nadou para perto dele.
“Você ainda está aí?”, perguntou Arco-Íris. “O que há de novo?” “Bem, cá estou eu mais ou menos resignado a uma provavelmente longa e intensa…
talvez nobre… luta contra os níveis mais profundos do meu cérebro primitivo”, respondeu Barbatanas Vermelhas.
“Por que?” “Por que o quê?” respondeu Barbatanas Vermelhas. “Para que lutar ou por que lutar contra um cérebro primitivo?” “Não… por que nobre? “, disse Arco-Íris.
“Desde o meu primeiro vislumbre da dimensão mais elevada”, explicou Barbatanas Vermelhas, “fui capaz de deduzir a existência de uma série de dimensões cada vez mais altas, conduzindo à Dimensão Maior, cuja natureza exata não consigo precisar, mas, de acordo com os meus cálculos, mesmo essa Dimensão Última deveria nos estar visível neste preciso momento, se soubéssemos como olhar”.
“E assim eu espero obter uma visão permanente das dimensões mais elevadas”.
“E no que isto viria a ajudar?”, perguntou Arco-Íris.
“Não tenho a menor idéia de como isto irá me ser útil, exatamente, mas eu sei que irá ajudar de alguma forma; talvez a visão da dimensão mais elevada venha de alguma forma a estimular mudanças; apenas um mero relance dela, durante o Tempo da Escuridão causou uma série de sensações estranhas e pouco familiares no meu corpo. Se ela pôde fazer isto”, acrescentou ele, “poderia finalmente produzir algum tipo de reação reflexa desconhecida e ordinariamente dormente no corpo, o que poderia ter algum efeito evolutivo”.
“Certamente valeria a pena tentar”, replicou Arco-Íris.
“Certamente que sim”, concordou Barbatanas Vermelhas, “alem disso, mesmo que o processo não tenha nenhum outro efeito, ainda assim seria interessante tentar seguir em frente com os assuntos ordinários da sobrevivência dentro do aquário e ao mesmo tempo, continuar a manter a perspectiva da dimensão mais elevada presente o tempo todo dentro da nossa consciência”, ressaltou Barbatanas Vermelhas.
“Sim, mas você não pode depender do sol desaparecendo em todos os momentos que você desejar ver a dimensão mais elevada”, acrescentou Arco-Íris.
“Isto é verdade”, admitiu ele, “eu terei de ajuntar tudo o que se conhece sobre o aquário, para que eu seja capaz de definir os limites exatos além dos quais eu desejo expandir a minha visão”. “Mas não é tão fácil descobrir coisas sobre o aquário”, disse Arco-Íris.
“É verdade”, admitiu Barbatanas Vermelhas e suspirou, “sou forçado a admitir para eu mesmo que sou um peixe de uma espécie definida, que possui limites territoriais embutidos e definidos e que, devido a isso, posso expandir as minhas próprias explorações pessoais e questionamentos até tais limites e não além”.
“Para minha informação, estou completamente dependente de fontes de pouca confiança, provavelmente”.
“E por quê? “, perguntou Arco-Íris.
“Porque”, respondeu Barbatanas Vermelhas, “o meu próprio conhecimento sobre o aquário, obtido de forma pessoal dentro dos meus imperativos territoriais, invisíveis, mas nem por isso menos imperativos, é limitado demais para que eu possa fazer deduções confiáveis”.
“Ainda assim, apesar do total e completo isolamento que existe entre as espécies – algo que eu esperava – e mesmo entre membros de uma mesma espécie – algo que eu não esperava – eu sei que a informação, de alguma maneira ou outra deve fazer o seu caminho lentamente de um domínio a outro do aquário, se filtrando de forma sutil e desapercebida por entre as solicitações mais urgentes da vida”.
“Ela deve ocorrer de forma tão espalhada e distorcida que raramente – se nunca – foi compreendida no seu todo por qualquer peixe, para formar uma imagem coerente”, comentou Arco-Íris.
“Sim, provavelmente você está certa”, concordou ele. “Subitamente me sinto desejoso de informações, mas de informações de tipo especial – principalmente sobre o tipo de vida lá do topo do aquário – que me parece completamente impossível de ser adquirida para um habitante das águas intermediárias e profundas como eu”.
“Mas mesmo que a informação de segunda-mão, que acontece de vir até nós a partir de outras fontes seja distorcida em alguns aspectos, eu poderia – se apenas soubesse o que é que estou procurando -, acumular informações suficientes que me habilitassem a obter uma visão geral do aquário e assim eu seria capaz de expandir a minha visão para além dos seus limites”.
“Não pode ser assim tão fácil” disse Arco-Íris.
“Sim, pode ser” disse Barbatanas Vermelhas. “Não é nada mais complicado ou espantoso do que as convenções psicológicas que nos torna impossível ver para além do muro de cristal nesse preciso momento”.
“Você quer dizer que se pudéssemos quebrar essas convenções psicológicas, a nossa visão não estaria confinada aos limites do nosso mundo?”, perguntou Arco-Íris com algum espanto. “Certamente, mas apenas pelo fato de conhecer uma barreira psicológica – mesmo o quão efêmera ela realmente é- não faz com que ela desapareça”.
“Maravilhoso!”, replicou entusiasticamente Arco-Íris, “eu gostaria de ver esse novo mundo aqui e agora, neste preciso momento!”.
“É mais fácil falar do que fazer”, suspirou Barbatanas Vermelhas; “a barreira psicológica sinistra – que é o nome que dou para a rejeição automática que o nosso cérebro faz das percepções da dimensão mais alta que se situa logo por fora do muro de cristal – se instalou como um abismo ainda mais intransponível do que a própria barreira de cristal, se colocando entre nós e nossas percepções da dimensão mais alta”.
“Mas deve haver algum modo de quebrar esses condicionamentos”, disse Arco-Íris pensativamente.
“Acredite em mim, Arco-Íris”, disse Barbatanas Vermelhas, “eu já tentei de tudo: meditação, auto-negação, treinamento mental, hipnose, jejuns, ataques epilépticos autoinduzidos, choros amargos e inclinações contra o muro de cristal – e mesmo oração – mas nada parece funcionar”.
Eles ali permaneceram suspensos na água, ambos num estado de sombria depressão, ocasionalmente realizando um esforço desanimado para engolirem alguns bocados de comida à medida que esta deslizava por eles a caminho do fundo do aquário.
E os dias se seguiram monótona e desoladamente, mas a barreira sinistra continuava tão poderosa quanto antes. A memória de Barbatanas Vermelhas se tornou vaga, desinteressante e apagada, e neste ponto ele não mais pensava que viria a ver novamente a dimensão mais elevada, e Arco-Íris estava inclinada a concordar com ele…
Tradução: INSTITUTO NOKHOOJA Carlos Godo – 1991
Autor desconhecido. Trad. Carlos Godo, NoKhooja
Alimente sua alma com mais:
Conheça as vantagens de se juntar à Morte Súbita inc.