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PSICO

Como se domam os elefantes

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Na Antiga China, o Ego (ou seja, um Eu pessoal dividido em quatro partes competidoras que não conseguiu a unidade com o Eu superior) era chamado de Elefante Perfumado. Um paquiderme tão cheiroso poderia somente pertencer a governantes e monges iluminados. O restante possuía um elefante malcheiroso.

O elefante perfumado é progressivo, o malcheiroso é regressivo. Este último se deprecia, padece de toda classe de enfermidades, não consegue se concentrar, não deixa de se criticar, se odeia. E projeta este ódio sobre os outros. Às vezes, ocultando seu fedor, finge ser adulto, se torna cada vez mais poderoso, cada vez mais famoso, tem cada vez mais empregados, mais dinheiro, maior êxito social, envenena cada vez mais o mundo com suas indústrias, parece se sentir cada vez melhor… Mas, em seu interior, não suporta seu fedor.

O Eu essencial coletivo, seguindo uma tradição milenar, tem inventado piadas sobre elefantes. Seguem três:

1. É fácil acusar alguém de mentiroso, mas como estar certo? Por exemplo, se você me envia uma carta assegurando-me que ela está vazia e eu decido abri-la e dentro encontro um elefante, diga-me: quem está mentindo, você ou eu?

2. Um famoso explorador foi capturado por uma tribo de selvagens que o condena a ser esmagado por um elefante. É amarrado e preso a ao chão. Se aproxima um enorme elefante branco que ergue sua gigantesca pata sobre o pobre explorador. Neste exato momento, o olhar do paquiderme e o olhar do homem esse cruzam. O explorador segura uma exclamação de alegria.
Recorda: “Há dez anos, aos pés de Kilmanjaro, socorri um elefante branco ferido por uma flecha, a fera se aproximou agonizante. Extraí a flecha, limpei a ferida durante vários dias e finalmente salvei sua vida. Que maravilhosa coincidência encontrá-lo agora! Os elefantes tem uma memória prodigiosa: este bom animal, agradecido, vai salvar minha vida. Meu Deus! Que resgate inesperado!”. Então o elefante branco levanta a pata, a abaixa e esmaga a cabeça. Não era o mesmo elefante branco!

3. Um diretor de circo, durante uma apresentação numa pequena cidade, oferece um enorme prêmio ao espectador que faça seu elefante uivar. No entanto ninguém consegue fazê-lo, com exceção de um anão que desce ao picadeiro e diz muito confiante:

__ Eu sei como fazer isso!
O deixa sozinho com o elefante e após cinco minutos se ouve berros horrorosos. O anão cobra seu dinheiro e se vai sem olhar para trás. Tempos depois o circo volta a pequena cidade e desta vez o diretor propõem um prêmio dez vezes mais alto por uma proeza ainda mais difícil: fazer com que o elefante fale diante do público. Como era de se imaginar ninguém se atreve a aceitar o desafio. Então o anão desce mais uma vez ao picadeiro, olha desdenhoso a todos e pede que o elefante se abaixe. Logo se aproxima do animal e murmura algo em seu ouvido. O elefante grita com um imenso pavor:
__ Não, por favor! Nunca mais!
O público, entusiasmado, aplaude o anão, exceto o diretor de circo que se aproxima pasmo:
__ Como é possível? O que disse?
__ Bem, – responde tranquilamente o anão – somente perguntei “Quer que eu volte a fazer o que te fiz da última vez?”
De certa maneira, no primeiro chiste, quem afirma haver encontrado um elefante no envelope está dizendo a verdade. Uma grande porcentagem de gurus, sob uma disposição aparentemente santa e humilde para os assuntos espirituais ocultam egos monumentais. Muitos empresários, políticos e celebridades, apesar de se declararem publicamente defensores de causas que protegem os necessitados, abrigam um pestilento elefante em seu envelope.

No segundo chiste, poderíamos argumentar que o elefante branco é na verdade o mesmo que o do passado, no entanto agora que não necessita de mais nada do explorador, mostra sua verdadeira personalidade. Assim é o ego malcheiroso: enquanto está pedindo é dependente, se mostra humilde e agradecido, mas, no fundo, odeia a quem lhe dá porque se sente humilhado. Quando chega seu momento de poder, abusa, outorga importância a si mesmo, se gaba de sua ingratidão chamando-a astúcia, considera a ajuda que lhe foi prestada como “esmola”, uma afronta que deve ser vingada. As pessoas que não desenvolveram seu Eu superior nem seu Eu essencial não são confiáveis. Em seu interior há inumeráveis mesclas de egos lutando para obter o controle. Assim que um deles consegue, logo é destronado por outro ego. Assim como o elefante branco de hoje, amanhã pode agir de forma completamente diferente. Não há continuidade em suas ações.

No terceiro chiste assistimos a uma doma misteriosa: o anão domina, por meio do terror, o elefante… O pequeno homem, se quiser dar uma interpretação profunda ao pequeno conto, representa a vontade do Eu superior, ao serviço do Eu essencial, atuando com autoridade sobre o Eu pessoal. Há alguns anos, quando filmava “Tusk” na Índia, sobre a vida de um elefante em cativeiro, assisti a uma cena penosa. Um paquiderme havia destroçado, por acidente ou raiva, um cenário. Seu cornaca (domador), um homem pequeno e muito magro, como uma autoridade cruel que me enjoou, utilizando seu gancho de aço começou a golpear o animal até este ficar ensanguentado. A besta, enorme, em vez de esmagá-lo, se encolhia, berrava, urinava e defecava como uma criança. Quis impedir que seguisse o castigo, mas o oficial encarregado da equipe me deteve. “Não se meta. Este homem sabe o que faz. Ele vai parar quando estiver seguro que o elefante o compreendeu. Se não fizer assim, na próxima vez o animal não destruirá um cenário, mas começará a matar pessoas”. Neste momento senti meu Eu pessoal como um elefante indisciplinado e me dei conta de quão indulgente havia sido: tolerava suas contradições, suas ambições desmedidas, seus múltiplos temores. Soube que dali em diante, para alcançar uma perfeita unidade em meus atos, devia comportar-me como este cornaca, rechaçando com severa vontade tudo aquilo que me distanciava de minha verdade essencial.

Passei vários meses trabalhando no reduto de uma manada de paquidermes. Vendo a maneira como os cornacas os domavam, aprendi muitas coisas úteis para educar meus egos agressivos.

Em primeiro lugar, para possuir um elefante é preciso capturá-lo. O mesmo se sucede com o Eu pessoal: para trabalhar sobre ele tem que se dedicar a caçá-lo, porque se comporta como um animal esquivo, se defende, mente, luta para não mudar, e se tratam de domá-lo, crê que perdeu sua identidade e escapa a todo intento de transformação… Para capturar um elefante os hindus cavam um grande buraco no solo, em seguida colocam folhas de árvores e fêmeas próximas à armadilha. Atraído pelo sexo e alimento, o elefante selvagem é capturado.

No Arcano XX (O Julgamento) do Tarô, vemos um personagem central emergindo de uma fossa. Para chegar a Consciência teve de submergir das profundidades da terra. Há de entrar em sua natureza essencial… Se queremos progredir, primeiro devemos convencer nosso ego intelectual: “Chega de ilusões mentais! Vem! Funde-se em teu corpo, sente sua matéria!”. Para isso, as enfermidades são uma excelente ajuda. Por exemplo, alguns diretores famosos de cinema eram caolhos. Quando tinham dois olhos funcionando, experimentavam certa dificuldade para se concentrar. Sem cessar, múltiplas coisas lhe chamavam a atenção. Ao perder um olho, puderam centrar-se em somente uma única coisa como jamais haviam feito, porque já não contavam mais com a facilidade de outrora… Um elefante selvagem possuí muitas fêmeas, devora uma árvore inteira por dia, mas quando cai no buraco se vê privado de alimentos e companhia.

Para começar a domar nossos egos devemos nos retirar para meditar, esvaziar a mente, o coração, o sexo e modificar nossos hábitos físicos. Quer dizer, abstinência sexual, variar as horas de sono (se antes dormíamos muito, agora durma pouco ou vice-versa), comer outro tipo de alimentos (se comíamos carne viramos vegetarianos, se éramos vegetarianos, começar a comer carne), desfazer-se de objetos inúteis no local em que vivemos, deixar de ler, de ver televisão ou de escutar música e programas de rádio, de falar por telefone, de consumir drogas. Como o elefante que caiu na armadilha, isolar-se entre paredes vazias. Não devemos dizer “Farei isso durante tantas horas ou por tantos dias”. O elefante há de permanecer no buraco o tempo que for necessário.

Quando o elefante está exausto o tiram da armadilha, o amarram com uma grossa corda a pata traseira esquerda a uma árvore robusta e fazem o mesmo com a pata dianteira direita: assim, amarrado em diagonal entre duas árvores, o elefante se encontra esticado. A caminhada, os passeios, as buscas foram suspensas. Já não pode escolher. Esta situação, ao lhe despertar uma raiva tremenda, lhe proporciona novas forças. Move a única coisa capaz de se mover, sua trompa, girando-a como uma hélice. Se colocarem um galho ao seu alcance, em lugar de devorá-la, arremessa longe com uma violência impressionante. Se o deixarem solto seria capaz de matar centenas de pessoas.

Certos indivíduos parecem muito gentis, mas, no fundo, levam dentro de si um mar de raiva não expressada. São cóleras que carregam desde sua infância, produto de abusos, proibições arbitrárias, ausências ou falta de atenção e de carinho. As vezes a fúria secreta é tão grande que o faz engordar, outros emagrecem, as vezes o faz torcer a coluna vertebral, se enchem de eczemas, ou chegam a perder seus dentes: são as mordidas, gritos, socos ou pontapés que não atreveram a dar… Para domar o Eu pessoal devemos nos permitir, assim como elefante atado pelas patas à duas árvores, expressar nossa raiva. Uma destas árvores é a família materna; a outra, a família paterna. A cólera que carregamos interiormente começa quando ainda somos um feto no ventre de uma mãe neurótica, e se acentua ao entrar em contato com as duas árvores genealógicas que se uniram quando nascemos. Esta cólera se estende até os nossos próprios irmãos, pais, tios, avós ou bisavós; até a sociedade ou a história; e continua mais além: alcança a totalidade do universo; até Deus, monstro cruel, vingador, assassino. Quando a criança sofre, acumula uma raiva cósmica… Tem que ficar de frente a um muro e gritar, chorar, golpear com violência, insultar a quem nos venha a mente, esvaziar-nos de tanta indignação. Isto nos fará perceber que prendíamos em nosso coração um elefante cheio de raiva. Alguns, que não trataram de domar seus egos, atropelam pedestres com seus automóveis com a desculpa de que haviam bebido, ou bem, ainda que sejam professores de filosofia, estrangulam sua mulher ou se suicidam se jogando pela janela. Muito creem estar bem porque se sentem satisfeitos. Mas apenas lhes acontece uma penúria e o elefante louco os domina. As raivas acumuladas, pouco a pouco, vão convertendo-se em ódio a vida e em autodestruição.

O elefante amarrado expressa sua cólera precisamente porque as cordas o impedem de atuar. Quando se empreende a doma do Eu pessoal, aprendemos a aceitar os sentimentos violentos ou negativos sem nenhuma vergonha, para logo poder expressá-la. O que é, é. Por exemplo, poderíamos cavar um buraco na terra e derramar sobre ele vociferando nossos insultos e queixas. Logo, voltar a encher o buraco deixando assim, metaforicamente, enterrada nossa raiva.

Uma vez que o elefante, sem comer nem dormir, tenha expressado sua raiva, se entristece. Parece decidido a morrer. Já nada o ata ao mundo, perdeu suas motivações anteriores. Antes podia, sem problemas, passear por toda a selva com liberdade. Agora é consciente de que essa mesma liberdade o conduziu para sua captura. Na verdade, o destino dos elefantes livres na Índia é serem liquidados por caçadores de marfim. Somente conseguem sobreviver em cativeiro… Nós, os humanos, tampouco somos livres. Não podemos ser selvagens. Devemos nos entregar ao cativeiro social e cultural. Não cessamos de dar a nós mesmos, como razão de viver, nosso próprio rancor… Sabendo que é impossível essa liberdade ideal, por ela nos sacrificamos, por ela suportamos a vida, por ela sofremos. Acreditamos que esse peso doloroso é nossa identidade. Levamos no envelope um elefante malcheiroso disfarçado sob todo tipo de perfumes. Mas quando expressamos nosso furor, quando dizemos a nós mesmos “Chega, este ódio não sou eu!”, Quando deixamos de beber, de fumar, de nos drogar ou de ir de aventura sexual em aventura sexual, nos agoniza uma tristeza completa. Caímos no que é chamado de “depressão”. Sentimos falta do rancor, do desprezo, da agressão contra nós mesmos. Queremos lutar contra algo, a jaula social se apresenta como liberdade e a liberdade interior se apresenta como uma armadilha.

Amarrado às árvores, o elefante insiste em não comer nem beber. Ninguém consegue o obrigar a se alimentar. É uma espera dramática. O animal deve escolher: ou morre ou decide a viver aceitando um amo. Se opta pelo segundo, se acalma e docilmente deixa que se aproxime um primeiro homem, aquele que durante toda sua vida será seu cornaca. Em seguida chegam mais outros dois: o cozinheiro que preparará sua comida e o ajudante que o banhará todos os dias. Um paquiderme, massa imponente, poderia ser comparado ao elemento Terra. Enquanto que os seus três amos-servos: um trabalha com o Fogo, dado que prepara bola de cereal cozido; o outro trabalha com a Água (o elefante necessita beber 300 litros diários, além disso se o impedem de se banhar, morre de tristeza); e o terceiro, o cornaca que educa sua mente, representa o Ar. São os quatro elementos da Alquimia. A esse corpo que aceitou a domesticação, se aproximam três aliados para propor-lhe um novo alimento, uma nova Consciência e uma nova forma de amar.

Do mesmo modo nós, para sair da armadilha pessoal, temos que nos entregar a uma espécie de agonia: “Vivo atado a relações inúteis que devoram meu tempo e minha energia, e que me envelhecem, diminuem, destroem. Trabalho no que não gosto, sepultei meus sonhos. Devo cortar os nós, enfrentar meu medo da solidão, perder tudo o que está soterrando meu Eu essencial, respirar livremente, sem obrigar-me a desejar aquilo que não desejo. Aceitar meu corpo como um aliado sábio, reaprender a sentir, comer alimentos saudáveis, me despojar dos pensamentos negativos, expulsar de minha mente o Juiz implacável, deixar de ser meu pior inimigo, converter meu coração em um canal que recebe e transmite o amor universal, lutar contra meus desejos de posse, sendo um e todos ao mesmo tempo, designarei como Mestre meu Deus Interior”.
Quando o elefante aceita seus três amos-servos e colabora com a manada de paquidermes trabalhadores, colocam em sua pata traseira direita uma corrente em forma de pulseira. Para ele, este anel se converte em um símbolo de que está prisioneiro. Enquanto o leva, jamais intentar escapar, Mas se por qualquer circunstância seja por ter sido tirado ou perdido, de imediato fugirá para o bosque. Tolerando a pulseira, o elefante faz um juramento de fidelidade. Aceita a disciplina.

Assim nós, começada a Grande Obra, ainda que passem os anos continuaremos sendo fiéis a nosso trabalho. A primeira fase da disciplina consiste no abandono da agressão, rejeitando as ideias influenciadas pelo orgulho ou ceticismo, não ferindo o corpo, os sentimentos, a criatividade nem o espírito dos demais. Com benevolência para com os outros e para nós mesmos, evitaremos as imposições cruéis, reconciliando o rigor com a doçura, consagrando-nos ao que é benéfico para o mundo. Com alegria, nos contentaremos com o que realmente é nosso e com o que realmente somos. Mais valiosa que mil grandes mentiras, nos fará uma ínfima verdade. Deixando de falar de fracasso, diremos: “Este intento falhou, seguiremos tentando. Não há problemas, somente dificuldades. Nada me acontecerá por debilidade, governarei minha vida”.

Quando o elefante aceita a pulseira em sua pata, troca seus berros selvagens por um novo idioma que consiste em somente duas palavras: Mot! (Avança!) e Hara! (Para!). O elefante se converte em excelente trabalhador. Quando lhe ordenam avançar ou retroceder assim o faz transportando todo o tipo de cargas. Transformou-se num ser útil para a comunidade.

Nós podemos aprender a dizer Sim! E a dizer Não! Somos capazes de vencer a inércia e dar-nos ordem de avançar em direção a nossa realização ou também de rechaçar o que nos seja nocivo. “Vivo somente para seduzir: Hara! Devo deixar de ser superficial: Mot! Experimento uma grande tentação por algo que pode me destruir: Hara! Hara, isto não sou eu! Mot, isto sou eu!”

A comida que lhe oferece o cozinheiro foi preparada com grande dedicação, pensando nas necessidades energéticas do elefante. Nós, além de nos habituarmos com comidas saudáveis, devemos alimentar nossos sentidos, nossa criatividade, nosso mundo emocional. Assim, deixamos de ser pessoas que se engancham na primeira isca – seja na amizade, no amor ou no trabalho – que aparece. Devido ao medo de perder, sem confiança nelas mesmas, carentes de disciplina, estas pessoas não desenvolvem capacidade de escolha e aceitam, por exemplo, alimentos contaminados ou nocivos. São, no fundo, crianças cegas, incapazes de verem a si mesmos e, portanto, de ver os outros. Se formarem um casal, esta relação vai de crise em crise, tornando-se por fim uma guerra contínua… As elefantas domadas ajudam o novo macho a integrar-se na manada. Nós devemos nos relacionar intimamente somente com pessoas que alcançaram nosso nível de consciência. A quem ainda não se submeteu a autodisciplina, podemos oferecer ajuda, mas sem firmar contatos amistosos ou sexuais. Os terapeutas que se tornam amigos de seus pacientes ou que dormem com eles cometem um erro lamentável. As elefantas ajudam o novo companheiro, mas não se acasalam com ele. Impedem o paquiderme selvagem de atuar como macho antes de estar completamente domado. Somente poderá materializar seus desejos quando a doma estiver concluída. Então lhe é concedido uma fêmea. Satisfeito, com alegria infinita, o elefante, ao alvorecer, se dirige ao trabalho. Avança arrastando uma corrente de sete metros que foi acrescida a sua pulseira. Com o cornaca em sua nuca, se converteu em construtor.

Assim deve acontecer conosco: levantamo-nos alegres para continuar o trabalho. Trabalhar no que se gosta parece uma festa. Desenvolvemos a criatividade positiva com profundo prazer. Ao contrário, gastar nosso tempo em festas destrutivas nos angustia. Trabalhando com disciplina, saímos do cheiro ruim e entramos na fragrância.

Os três amos-servos do elefante nunca o deixam sozinho. Levantam-se com ele, trabalham com ele, o alimentam, o banham, dormem junto a ele… Nosso intelecto – vazio de conceitos inúteis-, nossa emoção – livre de todos os rancores – e nossa libido – purificada de desejos autênticos – nos inunda o corpo com energia, com a fluidez de um limpo e transparente.

O elefante suporta suas rudes tarefas, pois tem um tempo igual de horas de repouso em que o levam ao rio, o submergem na água, coçam seu corpo, que contrariamente ao que se pode pensar tem uma pele muito sensível. Seu maior prazer, além de possuir as fêmeas, é ser raspado por seus três amos-servos. Com prazer, chafurda na água, oferecendo todo o seu corpo. Logo, retorna ao trabalho carregado de alegria.
Quando entramos na via iniciática, devemos também nos dar tempo para satisfazer nosso Eu pessoal: comer o que gosta, ver filmes estúpidos, mas divertidos, assistir a uma partida de futebol, uma luta de boxe, um concerto, ir a uma boate, ver revistas eróticas, quadrinhos… enfim, brincar. Existem pessoas que exercem tal severidade sobre elas mesmas que ao longo do tempo arruínam seu trabalho espiritual. Sua neurose acaba superando as dos que chafurdam na mediocridade. Devemos tratar nosso Eu pessoal como se fosse uma criança, ou seja, não pode fazê-lo estudar o dia inteiro, tem de conceder recreios. Um carnaval é necessário de tempos em tempos. Depois dos momentos de liberdade caótica que nos oferecemos, podemos nos entregar a mais férrea das disciplinas…

O elefante já parece completamente domesticado. Trabalha como antes, mas, de repente, num orifício em sua testa começa a escorrer uma substância grossa, untuosa e de intenso aroma. É o almíscar. Isto indica que o animal está no cio. Seus servos o deixam tranquilo sem forçá-lo o trabalhar, porque se o fizerem ele não os obedeceria e se insistirem pode chegar a matá-los. O cio, desejo sagrado a serviço da reprodução, não admite amos.
Há momentos criativos ou terapêuticos em que devemos deixar que a natureza se expresse através de nós. Sua ação é mais rápida que o mental ou o emocional, é como o estalar de um raio. Em transe, nos entregamos a aquilo que nos reclama, sem duvidar. O mais leve titubeio romperia o encanto e a autenticidade. Teremos conseguido alcançar a certeza.
Perguntam a Ramakrishna:
– Crê em Deus?
O Mestre responde:
– Não.
Surpreendidos, exclamam:
– Como é possível que um grande místico como você diga que não crê em Deus?
– Não creio em Deus, o conheço.
Quando um elefante está em repouso, não apoia sua trompa sobre a terra, mas sim a introduz em sua boca. Também, antes de comer qualquer coisa, sopra com força sobre o alimento. Se protege assim de que algum inseto, por exemplo uma formiga, possa penetrar em sua trompa, chegar ao cérebro e enlouquecê-lo. Com sabedoria natural, elimina qualquer perigo possível antes que se produza. Sabe prevenir.
Os possíveis perigos que percebemos em um contrato que devemos firmar acabará um dia ou outro por nos afetar. Onde há um ponto débil, aquilo que nos rodeia por muito forte que seja, termina por desmoronar-se junto com ele. Um grupo social nunca se define pelo mais sábio, mas sim pelo mais torpe. Roland Topor disse uma vez: “Um grama de caviar em um quilo de excremento não muda nada. Um grama de excremento em um quilo de caviar o arruína completamente.”
Quando agimos ou nos relacionamos, deveríamos proceder como o elefante. Antes de nos comprometer, devemos eliminar as formigas, quer dizer, estabelecer contratos claros, nunca para sempre, mas sim por um prazo limitado que permita renová-los discutindo seus termos a luz das mudanças que trazem o tempo. Devemos estar alertas: uma linguagem pode ser interpretada por distintos pontos de vista.
Um homem envia a seguinte mensagem a um hotel mexicano: “Reserve para o dia tal uma suíte, com vistas para o mar, duas almofadas de plumas, uma grande cama, um bom frigobar, etc, etc, etc.”
Dias mais tarde chega ao México. Em sua suíte, com vistas para o mar, encontra um agradável frigobar, duas almofadas de plumas e dentro da grande cama, três prostitutas nuas.
Chama a recepção por telefone.
– Que significa isso? Nunca pedi tal coisa!
– Mas senhor, são os seus “etc, etc etc”.
Se os termos não são claros, o dia em que nos encontrarmos com um “advogado defensor” sofreremos as consequências. Estes seres se ajeitam para sempre terem razão. Mal cometem um erro, fazem o quanto podem para demonstrar que fomos nós quem cometeu a falha e não eles. Nunca reconhecem o dano que causam.
Um jovem pai entra na habitação da parturiente. Abraça sua mulher com emoção. Em seguida se inclina sobre o berço e se dá conta de que o bebê é totalmente negro.
Retrocede horrorizado e sua esposa se declara, antes que tenha tempo de dizer algo:
– Vê o que acontece por cauda de sua mania de fazer amor no escuro?
Colocar a culpa em outro é uma atitude a que recorrem com frequência aqueles que não trabalham para domar seus egos. Diariamente buscam saber quem é o responsável pelo que lhes acontece, sem se darem conta de que são o cúmplice principal, para não dizer o único artificie do problema.
– Como furou este pneu?
– Oh, de um jeito bem tonto! Ao passar por uma garrafa de whisky.
– Não me diga que não viu a garrafa!
– Sim eu digo, o homem a levava no bolso.
Mentem a si mesmos. Causam danos as pessoas que a rodeiam e se negam a reconhecer. Não assumem as responsabilidades de seus próprios atos e o justificam com complacência. Provocam estragos e logo dão mil desculpas. Abandonam no mundo uma criatura que buscará saber por toda sua vida quem é seu pai, e se permitem argumentar “Sou inocente! Fiz esse filho, mas o larguei quando era pequeno. É impossível que se recorde. Que dano posso ter feito a ele, se não me conhece?”.
Quando deixamos de colocar a culpa nos outros, nos encontramos com nós mesmos. Um grande passo adiante é reconhecer que somos responsáveis pelo que nos acontece. No entanto, os “advogados defensores” são incapazes de aceitar seus erros tão imediatamente como o faz este monge zen:
Chega ao monastério, sem ser esperado, um personagem muito importante. É hora da refeição. É pedido ao cozinheiro que improvise algo. Este vai a horta, arranca algumas alfaces, uns rabanetes, umas cenouras e, com o que tem ao seu alcance na cozinha, prepara rapidamente uma deliciosa salada. O visitante começa a comer e logo encontra em seu prato uma cabeça de cobra. Chama o cozinheiro e mostrando com asco, diz:
– O que é isso?
O cozinheiro, com um gesto rápido, pega a cabeça de cobra, a mete em sua boca, a engole, faz uma reverência e se vai.
Um verdadeiro iniciado, quando comete um erro sabe aceitá-lo. Aprendeu a engolir a cobra.
O elefante, com suas patas macias como almofadas, caminha sem fazer ruído. Ainda que o caminho seja acidentado, avança com equilíbrio, nunca se inclina de um lado para o outro. Como sua pele e suas patas são tão sensíveis e seu peso é tão grande, o animal se vê obrigado a vigiar seus passos. Nunca apoia a planta de suas patas em uma pedra que pode rolar, nem sobre um espinho. Tem plena consciência de seus movimentos.
Algumas pessoas são de uma lentidão doente… Tropeçam com muita frequência, pegam uma torrada para passar manteiga e deixam cair muitos pedaços, se deixam cair sobre a cadeira como se fossem pesos mortos. Também, ao nos cumprimentar nos torturam a mão ou falam no celular em lugares públicos gritando como se estivessem sozinhas. Se vão ao metrô não se privam de nos dar cotoveladas ou se levam uma mochila nas costas golpeiam sem se dar conta do resto dos viajantes. Ou manipulam objetos com uma violência mal contida. Sen no Rykyu, o grande mestre de chá da história do Japão, resume em uns poucos poemas o essencial de sua sagrada cerimônia (servir uma xícara de chá), onde dá uma importância capital a maneira de receber e comunicar com sensibilidade e consciência:

Sente que manipula o leve
como se fosse pesado e o pesado
como se fosse leve.
Quando depositar um objeto
faça com a mesma delicadeza
com qual despe sua amada.

Não olhe o carvão da fogueira
com os olhos, mas sim com o coração.

Respeita o carvão
e logo
respeita suas cinzas.

Quando, graças ao trabalho, se desenvolve e chega a ser o mais forte de todos, nosso elefante merece chefiar a manada. Se converte em cabeça do grupo. Quando avança, vai na frente de todos. Por lei, os outros machos devem ir atrás. Se um deles, num intento de rebelião, se adiantar, ele, como sua autoridade de chefe, enfiará sua presa em sua coluna vertebral e o mataria… Se outro macho o desafiasse abertamente colocando-se frente a ele, o eliminaria sem nenhuma piedade. Não permite que faltem com respeito o tratando de igual para igual. Mas se por qualquer motivo uma fêmea se põe a sua frente a empurra com amabilidade em direção a manada que o segue: entre dois sexos não existe a competição…
Muitas vezes é gerado entre irmãos um espírito de contenda. Se um deles é o preferido pelos pais, o ignorado, ao não ser o centro, deseja ocupar o espaço do outro e viver sua vida. O que tem nunca o satisfaz. Não sabe quem é. Necessita de constante companhia. Tem medo de se encontrar consigo mesmo porque se sente vazio.
Um pedestre se enfurece ao ser sujo de barro por um carro. Corre pela calçada e, no primeiro semáforo vermelho, alcança o motorista e diz:
-Senhor, você é um grosso! Se fosse uma pessoa como Deus manda, teria parado para se desculpar, haveria comprovado o prejuízo que me causou, logo me levaria de carro até sua casa e me convidaria para tomar um vinho do Porto para me recuperar. Por último não me deixaria ir sem me dar ao menos duzentos euros por causa dos danos e prejuízos.
-Você está sonhando? Por acaso já viu alguma vez um motorista se comportar desse jeito com você?
– Não, comigo não. Mas ontem, com minha irmã, sim!
Deveríamos saber se, apesar de não haver recebido de nossos pais o que deveríamos ter recebido, temos alcançado um alto nível de consciência devido algumas destas três razões: porque lemos, estudamos e meditamos e de volta a ler uma e mil vezes mais… Porque misteriosamente nos iluminamos de repente, sem esforço, como se tivesse recebido um presente divino… Ou porque uma pessoa compassiva decidiu nos ajudar… No primeiro caso o do estudo, devemos nosso progresso ás gerações precedentes que tiveram como missão deixar por escrito suas técnicas ou teorias… No segundo, devemos entender que não somos os únicos     que tiveram a sorte de receber o dom, existem outros que quiçá tenham desperto em nível até mais profundo… No terceiro, aquele que nos indica como chegar a ser como somos é nosso Mestre para toda a vida… Se não somos capazes de agradecer a quem nos ajudou a encontrar, nosso tesouro nada vale, e existe demasiado “escritores espirituais” que descrevem conhecimentos experiências de outros sem jamais nomeá-los. Os elefantes perfumados nos perguntam “Porque trata de ocupar com o que ainda não merece, se o seu prazer atual é o de seguir um guia superior? Quando alcançar a meta, então seguirão a ti. Mas se quer que te sigam como seguem a mim, não quer ser você mesmo, quer ser eu, o que é lamentável: viverá fingindo conhecer o que somente leu ou que lhe tenham dito, sem tê-lo experimentado jamais”.
Quando passa o tempo, o grande elefante, se dando conta de que a velhice o debilitou, permite que o jovem mais forte da manada se coloque diante dele. Em total paz, se produz uma simples troca de poder, sem luta, sem competição prévia. As fêmeas e os elefantes mais fracos seguem de forma natural o novo guia. O ancião, atrás do grupo, vai retrocedendo pouco a pouco até que morre com dignidade, sem que ninguém o veja.
É provável que vimos de famílias na qual os pais, de maneira talvez inconsciente, sentem ciúmes de suas filhas ou filhos. De forma conflitiva tiveram gravado em sua psique infantil “Para que nós te amemos, tem que triunfar. Mas se conseguir o que nunca conseguimos, nos perderá: deixaremos de te amar ou morreremos”.
Um célebre pinto chileno, assistindo a uma exposição de pinturas de seu filho, cuspiu em seus quadros. O rapaz teve êxito, mas tempos depois se suicidou. Ao entrar na puberdade, uma moça começou a se vestir com roupas que a tornavam mais atraente. Sua mãe a imitou. Quando sua filha a apresentou ao seu noivo, a senhora fez tudo o que pode para seduzi-lo, até conseguir transformá-lo em seu amante…
Temos de ser conscientes de que nascemos em uma sociedade que é consumidora e competidora, que nos impulsiona a viver nos comparando. O iniciado aceita o Mestre sem se comparar com ele, sem competir com ele. Em lugar de querer assassiná-lo, abre seu coração e o absorve. O que representa este Mestre? Ramakrishna disse: “Se jogamos um pedaço de chumbo em um recipiente que contém mercúrio, se dissolve com rapidez. Da mesma maneira a alma superior perde sua existência limitada quando submerge no oceano de Brahma”. Brahma não é somente o Deus exterior, é também o Deus interior.
Era uma vez uma boneca de sal que queria medir a profundidade do oceano.Chegou as orlas de imensa extensão de água e a contemplou. Até este momento continuava sendo a mesma boneca de sal, conservando sua própria superioridade. Mas apenas colocou um pé no oceano, começou a desaparecer. Estava perdida. Rapidamente foi impossível distingui-la. Todas as partículas de sal que a compunham haviam se dissolvido na água do mar. O sal de que era feita provinha do mesmo oceano: agora havia retornado para unir-se de novo a ele.

Alejandro Jodorowsky Tradução: Jimmy Jacques


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