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PSICO

A sua música toca na cabeça dos outros?

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Shirlei Massapust

Ao longo da vida já me aconteceu repetidas vezes de estar apenas pensando em uma música e alguém começar a cantar junto, como se escutasse meu pensamento. Isso não ocorre apenas com hits tocados nas rádios em tempo presente, mas principalmente com músicas tão antigas que a probabilidade de alguém estar pensando nelas por mero acaso, exatamente no mesmo momento, é presumivelmente bastante reduzida.

Estando habituada aos mais impressionantes fenômenos alucinatórios, eu não anotava as pequenas coincidências pois as considerava fenômenos de pouca monta. Porém um caso pareceu-me digno de nota. Em 16/04/1995, durante a celebração de minha festa de dezesseis anos, um grupo de convidados tomou a liberdade de reservar a brinquedoteca só para eles, arrumaram símbolos alfanuméricos ao redor de uma mesa e começaram uma sessão de “brincadeira do copo”. Eu observava incrédula enquanto eles tentavam evocar espíritos. Nenhuma resposta foi dada aos participantes, porém eu comecei a pensar numa música aleatória e um homem adulto passou a cantá-la na porta, do lado de fora, embora o som tocasse outra coisa. Passei vergonha naquele dia, perguntando se estaria possesso.

Após aquilo que representou para mim um fracasso épico, deixei de dar qualquer atenção a ocorrências análogas até o ano de 2023, quando imaginei ser importante manter registros a fim de averiguar com que frequência isto realmente aconteceria.

Aqui em casa temos um CD de samba contendo o hit de Beth Carvalho – Vou Festejar, reproduzindo o original gravado em 1977. Fazia pelo menos quatro anos que não o ouvíamos, sobretudo porque o aparelho de som portátil escangalhou e demoramos a substituí-lo.  Contudo, em 22/02/2023, meus pais e minha irmã estavam acompanhando pela TV as notas da apuração do Grupo Especial no carnaval do Rio de Janeiro.  Eu estava no quarto quando lembrei de “Vou Festejar”, embora isso não fosse um samba-enredo a ser avaliado. Minha mãe foi para a cozinha e começou a cantar aquele samba antigo exatamente a partir da estrofe de onde parei em minha mente.

Em 11/05/2023, pela manhã, eu estava no banho pensando na música Minha Gioconda gravada por Chrystian & Ralf com Agnaldo Rayol, em 1996, para compor a trilha sonora da primeira fase da novela O Rei do Gado. Ao sair do banheiro ouvi minha mãe começar a cantar Minha Gioconda. Isso não foi muito atípico porque a novela O Rei do Gado estava a ser reprisada pela terceira vez no programa Vale a Pena Ver de Novo (TV Globo), à tarde, por volta de 17:10 às 18:20. Então, mesmo que a primeira faze da novela haja acabado em novembro de 2022, ainda era esperado que seus telespectadores rememorassem a trilha sonora do programa favorito ao longo do dia.

No meu terreno há uma árvore craveiro-da-índia (Syzygium aromaticum, também classificado como Eugenia caryophyllata). Em 13/05/2023 eu estava no terraço colhendo cravos caídos no chão, enquanto pensava na música Gita (1974) de Raul Seixas e Paulo Coelho. Ao descer com os cravos na mão ouvi minha mãe começar a cantar Gita na cozinha. Minha mãe não tem o habito de cantar quaisquer músicas do Raul Seixas.

Em 15/05/2023 eu estava no carro, a caminho do hipermercado Mundial, apenas pensando na música de The Kiffness x Ginger the Cockatiel – Kookee Kookee. Minha irmã, que estava sentada no banco de traz, começou a cantar essa música específica.

Em 31/05/2023, por volta de 11h10 da manhã, eu estava pensando na música I’ll Be There (1970), da banda The Jackson 5, e minha mãe começou a assobiar a mesma estrofe. De 15/08/2023 a 18/08/2023 nós escutamos uma seleção de cento e sessenta e sete músicas gravadas pelo cantor Roberto Carlos. Pela manhã de 19/08/2023 eu pensei em uma das músicas, estando em meu quarto. Minha mãe passou a cantar essa música específica estando na cozinha. Isso não foi um exercício combinado.

Em 12/10/2023 eu estava no escritório pensando em trechos da música Ja Rule – Wonderful (2005) e meu pai, que também não sabe inglês, cantou a abertura “oh, oh-oh-oh-oh”. Ele estava saindo da cozinha para o quintal. Nós só conhecíamos esse rap porque o vizinho tocava-o muito. Em 26/10/2023 eu estava pensando na música Haddaway – What Is Love (1993) e minha irmã, que estava no mesmo quarto, começou a cantá-la.

Em 03/11/2023 eu estava pensando no vídeo de Dan Vasc fazendo cover de Sonya Belousova – Toss a com to your witcher. Minha irmã, que estava no mesmo quarto, começou a cantar a versão brasileira gravada pelo dublador Raphael Rossatto, funcionário do estúdio de dublagem MGE Studios. Ela é fã dos livros e do seriado The Witcher.

Durante alguns meses minha irmã ouviu diariamente músicas das bandas Viper, Angra, Shaman e Innocence Lost. Em 03/01/2024, pela manhã, nós ouvimos o álbum Ritual da banda Shaman, composto por dez músicas. Depois pensei na música Pride e minha irmã começou a cantar exatamente a partir daquele ponto. Depois passei a pensar na música Fairy Tale e ela cantou Fairy Tale. Em 26/05/2024, por volta de 14h20, eu pensei um uma música específica da banda Angra, Make Believe, e minha irmã começou a cantá-la apesar de estar prestando atenção em um vídeo no celular onde a banda Innocence Lost tocava outra música. Na noite anterior minha irmã e seu amigo Roberto Carlos haviam tirado três fotos com todos os membros da banda Innocence Lost, após um show no Circo Voador. As três fotos saíram com defeito de lens flare (aberração óptica), cortando somente ela e o amigo. Sheila atribuiu o defeito à intervenção do espírito de André Matos (14/09/1971 – 08/06/2019) que “também quis sair na foto” abençoando-os. A banda Innocence Lost utiliza gravações pré-existentes em suas apresentações, mantendo André Matos como seu tecladista, apesar do óbito.

De 22/02/2023 a 03/01/2024, um período de 312 dias, o fenômeno ocorreu onze vezes. Poderíamos descartar as ocorrências dos dias 11/05/2023, 15/05/2023, 03/01/2024 ou mesmo 26/05/2024 como fáceis demais. O acerto de uma música entre cento e sessenta e sete ressonâncias possíveis, no dia 19/08/2023, também não seria mais atípico do que ganhar um sorteio simples. Todavia as seis ocorrências restantes foram deveras incomuns. Em média um evento bimestral comtemplou meu lar desde o início da coleta (e eu nem sequer anotei casos em que meus parentes pensaram em músicas antes de mim, pois ignoro os pensamentos deles). Nos 149 dias seguintes não tornou a ocorrer nada parecido.

A propósito, em 12/05/2023, à noite, meu pai estava assistindo telejornal e, sem razão, comentou um assunto sem pertinência temática no qual eu estava pensando naquele momento. Desta vez não se tratava de nada relacionado à música ou cultura pop.

É importante esclarecer que o grau de fluência em inglês de todas as pessoas em minha casa é diferente, muito variado. Minha irmã sabe mais, meu pai menos, minha mãe canta melhor em francês. Certa vez a frentista brasileira Solange Cristina Couto Maria, 26 anos, sem saber inglês, tentou cantar parte da música We Are The World, de Michael Jackson e Lionel Richie, durante uma prova do líder na quarta edição do programa Big Brother Brasil (13/01/2024 – 06/04/2004), transmitido pela TV Globo. Ignorando a verbalização e significado real das palavras, ela criou um jeito próprio de cantar: “Iarnuou, iar nistilve, iarnuou ce simarake so lesta silve”. Claro, o correto seria “We are the world, we are the children / We are the ones who make a brighter day / So let’s start giving”.

Este viria a ser lembrado como um dos momentos mais icônicos do programa pois finalmente alguém teve a coragem de vencer o medo do ridículo pronunciando ao vivo, em rede nacional, o que todos fazem apenas na privacidade dos seus pensamentos. Mesmo aqueles com fluência em inglês se deparariam com hits em alemão, em francês, em hangul, em nihongo, etc. Ninguém pode conhecer todos os idiomas do mundo. Quem nunca ficou com a voz do cantor argelino Cheb Khaled na cabeça, cantando El Arbi, em urdu, ou da cantora Aishwarya, cantando Beedi Jalaile, em hindi, quando tais músicas respectivamente se tornaram temas de abertura das novelas Vila Madalena (08/11/1999 – 05/05/2000) e Caminho das Índias (19/01/2009 – 11/09/2009), sendo reproduzidas copiosamente em rádios, boates e até mesmo nos alto falantes do centro da cidade do Rio de Janeiro? No Brasil, mesmo ninguém entendendo uma palavra do que entoavam Khaled e Aishwarya, eles botaram todo mundo para dançar, construindo blocos de memórias duradouras.

Seria ótimo se pessoas passassem a se interessar por idiomas nativo-americanos ouvindo a banda Inka’s cantar Puyumuyumuwam e Ananau; mas está tudo bem se não o fizerem. Pelos comentários nas publicações oficias no YouTube entende-se que vários fãs ocidentais da banda mongol The Hu simplesmente não perceberam que Sugaan Essena foi gravada em um idioma fictício imaginado para um videojogo da saga Star Wars. Lá alguém que valorou a música verdadeiramente ininteligível como igual às outras falou: “Não requer palavras um sentimento que nos fala à alma. Compreendemos sua essência”.

No curso escolar primário as crianças aprendem que as proporções de dois objetos semelhantes obedecem às mesmas fórmulas matemáticas, embora ambos possam variar em escalas de tamanho. Sendo assim, segundo o matemático Nílson José Machado, algo como uma garrafa pet de refrigerante Coca Cola de dois litros não é semelhante a uma garrafa pet de refrigerante Coca Cola de seiscentos mililitros, devido ao imutável tamanho do gargalo. Porém, uma garrafa verdadeira de Coca Cola pode se assemelhar aos brindes de garrafinhas de brinquedo da Coca Cola confeccionados iguais, mas em menor escala.[1]

Sendo assim entendemos que a letra da canção We Are The World, de Michael Jackson e Lionel Richie, apesar de parecida, não é semelhante à “Iarnuou” da Solange. Por outro lado, cifras fracionárias podem se aproximar mais da correspondência matemática quando obtemos sucesso em rememorar aquilo que ouvimos com bastante frequência em alguma época de nossas vidas. The Good The Bad And The Ugly de Ennio Morricone, Axel F de Harold Faltermeyer e trilhas sonoras de videojogos estão entre os instrumentais que continuaram tocando na memória de ouvintes sem o constrangimento das barreiras dos idiomas. Pense na Quinta Sinfonia – 1º movimento de Beethoven: “Tan, tan, tan, taaannn” são as quatro notas mais famosas da história da música. Não há como errá-las.

Dito isso, no caso de We Are The World x Iarnuou resta-nos muito provavelmente uma letra imperfeita sobreposta a uma cifra perfeita tocando na memória de Solange. E assim também acontece com todos nós, em maior ou menor grau de correspondência. Em verdade voz digo que nem sempre um modelo requer cálculos exatos para funcionar. Qualquer bebê, manuseando jogo de encaixe de formas geométricas, perceberia que um cubo entra fácil no encaixe destinado a um simples quadrado, assim como peças com pedaços quebrados ainda entram nos respectivos encaixes, apesar dos espaços esvaziados.

As músicas que tocam na minha cabeça são todas peças quebradas que talvez fossem melhor captadas por terceiros, e com maior frequência, se eu as imaginasse não como fracos borrões da realidade, mas como realmente deveriam ser caso reproduzidas em MP3. Em Parapsicologia a “telepatia” é rotulada como fenômeno de percepção extra-sensorial da variedade Psi-Gamma, referente à cognição paranormal.

Notas:

[1] MACHADO, Nílson José. Semelhança não é mera coincidência. Livro do professor. São Paulo, Editora Scipione, 2000, p 13 (do livro) e 5 (do encarte de atividades).


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