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Shirlei Massapust
A coletânea de palestras “Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino” foi elaborada por Nietzsche no século retrasado, lá onde Judas perdeu as botas, mas permanece atual em seu fã clube – por aqui onde se crê ser tabu, digo, conteúdo adequado à realidade sócio cultural latino americana. (Que seja!) – Nietzsche enumera as qualidades do leitor ideal: O estudante é autônomo (independente do estabelecimento de ensino). Deve ser calmo e ler sem pressa, não deve colocar a si e à sua “cultura” como medida de critério seguro de todas as coisas nem esperar por um quadro de resultados. Contudo não se afastará tanto a ponto de negar o valor da produção nacional, as metamorfoses e/ou progressos históricos da Filosofia.
Não convém assumir como verdadeiro, eterno e imutável, a tudo que consta nos clássicos gregos. Não seria sensato contestar a moralidade de licenças poéticas ou julgar o comportamento alegre dos cultos de mistérios como algo imoral, ofensivo aos costumes da cristandade. Nada disso deve ser valorado fora do contexto histórico de sua época e lugar. Filosofia não se mistura com teologia, embora eventualmente um tópico da teologia possa ser objeto de estudo do filósofo e o teólogo muitas vezes dê ao seu trabalho uma formatação semelhante ao velho estilo grego dos diálogos filosóficos.
Em todo caso o estudante deve estar preparado para uma experiência de meditatio generis futuri (meditação geradora do futuro), pois só emitirá juízo sobre declarações alheias após meditar a respeito. Age como Sísifo feliz, subindo a montanha com sua carga de idéias pesadas só para rolar de novo isto do alto, feito criança descendo a ladeira no carrinho de rolimã. Ele deve desejar “percorrer toda a via das profundezas da experiência até o cume dos verdadeiros problemas da cultura, e inversamente destes cumes até os porões dos regulamentos mais áridos e dos quadros mais esmerados”. Vez por outra um problema é resolvido, mas aí vira ciência, o filho cresce e vai embora.
O estudante deve ter liberdade, determinação e falta de preconceito na hora de julgar. Isso simplesmente não era possível numa escola meramente técnica. Faltavam “estabelecimentos para a cultura”. Ao tentar prever o futuro à maneira dos arúspices romanos, examinando as entranhas do presente, Nietzsche preconiza corretamente que entre o seu presente (nosso passado) e o seu futuro utópico (nosso presente) ver-se-ia uma intensa metamorfose ou “destruição” do ginásio; talvez até da Universidade. Uma hipótese sinistramente trabalhada como metáfora nos videoclipes Another Brick in the Wall (Pink Floyd) e Mein hertz Brent (Rammstein).
Nem todos fecharam o livro pensando que Nietzsche jamais idealizou um modelo institucional mais adequado que aquele a ser suplantado, quiçá destruído. Embora eu certamente devesse seguir a manada fazendo vista grossa diante de certas coisas – e me preocupar com a reinvenção de tópicos menos importantes – não pretendo me calar diante de fatos óbvios… Nietzsche descaradamente, manifestamente, usou termos seletos do vocabulário maçom nestas palestras, intencionando compor alegorias nada sutis nas entrelinhas.
Por exemplo, o “pentagrama” que serve de alvo de tiro para o divertimento dos aprendizes no início da trama possui algo da natureza do venerável mestre que mais tarde será visto como uma estrela guia posando ao seu lado. Isto é assim porque o idoso filósofo logo viria a ser alvo de um perguntar incessante e se veria envolvido pelo questionamento acalorado de alunos que pensavam saber muito sobre todas as coisas, ainda que mal tenham largado a chupeta e deixado de usar fraldas!
Enfim, antes de ser filósofo e louco, Nietzsche era um adolescente ocioso cheio de nada. Ele aprendeu lições importantes de forma autônoma, com ajuda extracurricular, e parecia desejar que todo filósofo tivesse um circulo de amizades tão preocupado e prestativo quanto o que ele teve.
Os rituais maçônicos não tem natureza jurídica religiosa, sendo algo parecido com atividades de teatro entre amigos. Existem vários graus cujos programas adquiridos pelos maçons dentro das lojas maçônicas muitas vezes acabam vendidos para lojas de livros usados comuns depois que perdem sua utilidade. Pois bem, ignoro se Nietzsche foi maçom, mas se não foi ele ainda poderia ter lido isto caso desejasse, da mesma forma que eu li.
Antes de acessar a melhor fonte de instrução o aprendiz enfrenta a ira do companheiro cujo duplicado alter ego canídeo parece barrar o acesso à Nova Jerusalém (província de Passárgada existente lá no mundo das idéias), tal como Cérbero protege o Hades e Anúbis abre as portas do Amenti:
Em nome de toda a cultura e da pseudo-cultura! O que quer de nós este cão estúpido! Maldito cão! Fora daqui, tu que não foste iniciado, tu que não poderás jamais sê-lo, fique longe de nós e das nossas entranhas, retira-te em silêncio, calado e cheio de vergonha![1]
Platão teria uivado de rir lendo isso, pois num passado ainda mais remoto seu Sócrates havia criado a figura do Rei Filósofo ideal com ares de lobisomem.
— Ora tu pensas — prossegui — que, para efeitos de servir de guarda, há alguma diferença entre a natureza de um bom cachorrinho e a de um jovem bem nascido?
— Que queres tu dizer?
— Que um e outro precisa de ser perspicaz a sentir o inimigo, e rápido na perseguição, desde o momento em que se apercebeu dele; e, além disso, forte, para combater, se for apanhado.
— Precisa, efetivamente, de todas essas qualidades.
— E, além disso, de ser valente, para lutar com energia.
— Como não?
— Mas poderá ser valente quem não for animoso, quer seja cavalo ou cão ou qualquer outra espécie de animal? Ou não reparaste como o ânimo é invencível e indomável, e como uma alma possuída por ele não conhece medo nem derrota em qualquer circunstância?
— Reparei.
— Portanto, são já evidentes as qualidades físicas que deve ter o guardião.[2]
Entrando no mérito da parte que devo dizer sem explicar aos profanos – iguais a mim – lemos que Nietzsche critica a metodologia da educação utilizada pelas instituições de ensino na Alemanha, em sua época (uma fábrica de homens dóceis, obediente e destituídos de personalidade). Tomando o Venerável Mestre como personagem, Nietzsche sustenta que a concentração da verdadeira cultura num pequeno grupo é uma lei da natureza. Mas acaso cultura é coisa natural? Filosofia é um tipo de flor donde, quando murcha, brota o fruto da epistemologia que, novamente murcho, renasce como árvore do conhecimento da técnica industrial? Não é!
A pedagogia não é contra ou a favor dos “desígnios da natureza”. Ela apenas não tem nada a ver com isso… Há quem pense que o negócio é ganhar dinheiro, verdinhas, bufunfa! E não é verba para sopa de ervilhas, cigarro, piranha e carro velho. É grana para o Coringa queimar feliz. Isso que a gente pensa que vai ter e não tem, pois quando o quadro de Goya fica caro o pintor já perdeu as orelhas e está morto. Filósofo tem espírito de agricultor plantador de tâmara (aquela árvore que demora cem anos para crescer e dar os primeiros frutos natalinos).
A maioria dos homens luta para adquirir cultura, trabalha pela cultura (…) unicamente para permitir a existência de um pequeno número. (…) Democratiza-se os direitos do gênio para suavizar o trabalho que exige uma formação, para arrefecer a carência pessoal de cultura.[3]
O Venerável Mestre, com Nietzsche de tocaia, demonstra o desejo de reunir talentos inventivos que mostrem pelo seu bom exemplo aquilo que o senso comum não soube imitar. “É preciso uma riqueza transbordante para viver com suas próprias forças, e viver para todos”. Mas essa riqueza normalmente é só de idéias… Esse é o sentido da alegoria do sacrifício do mestre pelo benefício das gerações futuras.
O mestre tem a tarefa de deixar o jovem perplexo, lhe despertando o senso critico por meio de tarefas que exijam uma reflexão profunda até que a meditação se torne um hábito. É preciso respeitar a forma culta da linguagem e buscar o “gênio grego” sem repudiar nem abandonar os laços com a cultura nacional (no caso de Nietzsche, a cultura alemã; em nosso caso a cultura grega, a alemã e o que mais agregar dados importantes à nossa instrução, mas também faríamos bem em nos engajar na descoberta de verdadeiros talentos brasileiros, a exemplo de Hilton Japiassu e Alejandro Cerletti).
Notas:
[1] NIETZSCHE, F. “Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino”. Em: Escritos sobre educação. Trd. Noeli Correa de Melo Sobrinho. São Paulo, Loyola, 2003, p 127.
[2] PLATÃO. A República. Trd. Maria Helena Pereira. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p 83.
[3] NIETZSCHE, F. “Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino”. Em: Obra citada, p 71.
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