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A Maior Drugstore do Mundo – As Portas da Percepção parte 2 de 4

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Uma  rosa  é  uma  rosa,  e  nada  mais  que  uma  rosa;  mas  esses  quatro  pés  de cadeira,  além  de  pés  de  cadeira  eram  São  Miguel  e  todos  os  anjos.  Quatro  ou  cinco horas após o início da experiência, quando começavam a cessar os efeitos da deficiência de  açúcar no  meu  cérebro,  levaram-me para  um pequeno passeio pela cidade,  no qual estava  incluída  uma  visita,  ao  cair  da  tarde,  ao  que  era  modestamente  considerado  o maior  drugstore  do  mundo.  Nos  fundos  do  estabelecimento,  entre  brinquedos,  cartões de felicitações e revistas de histórias em quadrinhos, havia — por estranho que pudesse parecer — toda uma prateleira de livros de arte. Apanhei o primeiro volume ao alcance da mão. Continha obras de Van Gogh, e o quadro que surgiu quando o livro se abriu foi A cadeira — aquele assombroso retrato de uma realidade metafísica que o pintor louco viu, com uma espécie de reverente terror, e buscou reproduzir em sua tela. Mas essa era uma tarefa em que até o poder do gênio revelou-se totalmente impotente. Estava claro que  a  cadeira  vista  por  Van  Gogh  era,  em essência,  a mesma que  eu vira.  Mas, ainda  que incomparavelmente mais real do que aquela que a percepção comum deixa entrever, mesmo assim a cadeira do quadro continuava a ser nada mais que um símbolo do fato, embora  extraordinariamente  expressivo.  O  fato  fora  uma  manifesta  Peculiaridade;  isto era apenas um emblema. Esses emblemas são fontes de conhecimentos seguros sobre a
Natureza  das  coisas,  e  tais  conhecimentos  podem servir  para  preparar  a  mente  que  os aceita   para   ilações   imediatas   sobre   essa   mesma   natureza.   Mas   isso   é   tudo.   Por expressivos   que   sejam,   os   símbolos   jamais   se   podem   converter   nas   coisas   que representam.

Seria  interessante,  sob  esse  aspecto,  realizar  um  estudo  das  obras  de  arte  que prenderam  a  atenção  dos  grandes  apreciadores  da  Peculiaridade.  Que  tipo  de  pintura teria  Eckhart  admirado?  Quais  quadros  e  esculturas  contribuíram  para  a  experiência religiosa  de  San  Juan  de  Ia  Cruz,  de  Hakuin,  de  Huineng  ou  de  William  Law?  Essas indagações estão além de minhas possibilidades de resposta, mas tenho a convicção de que a maioria dos grandes amantes da Peculiaridade pouco se preocupou com a arte — alguns,  recusando-se  pura  e  simplesmente  a  levá-la  em  conta;  outros,  contentando-se com trabalhos que olhos de crítico classificariam como obras de segunda, ou mesmo de décima classe. (Para uma pessoa, cuja mente transfigurada e transfiguradora é capaz de descobrir o Tudo em cada isto, a classificação de uma pintura como sendo de primeira ou de décima categoria, ainda tratando-se de pintura religiosa, será coisa que lhe há de provocar a mais soberana indiferença.) A arte, creio eu, interessa apenas a principiantes, ou   então   a   essas   obstinadas   mediocridades   que   decidiram   satisfazer-se   com   a contrafação da Peculiaridade, com símbolos em lugar daquilo que estes significam, com o cardápio elegantemente apresentado em vez da própria refeição.

Devolvi Van Gogh à prateleira e apanhei o volume seguinte. Era um livro sobre Botticelli.  Folheei-o.  O  nascimento  de  Vênus,  que  nunca  figurou  entre  minhas  telas prediletas;  Vênus  e  Marte,  aquela  beleza  tão  apaixonadamente  denunciada  pelo  pobre Ruskin, no ardor de sua enfadonha tragédia sexual; maravilhosamente rica e intricada, seguiu-se a Calúnia de Apeles. Por fim, deparei com um quadro menos conhecido e não muito  bom  —  Judite.  Minha  atenção  foi  despertada  e  eu  me  quedei  embevecido,  não pela pálida e neurótica heroína ou por sua serva; não ante a hirsuta cabeça da vítima ou pela paisagem primaveril que formava o fundo do quadro, mas ante a purpúrea seda do corpete pregueado e das longas saias que o vento ondulava.

Aquilo era algo que eu já havia visto, e naquela mesma manhã, entre as flores e os móveis quando, por acaso, olhei para baixo e minha vista se extasiara ao fixar minhas próprias  pernas  cruzadas.  Essas  dobras  de  minhas  calças  —  que  labirinto  de  infinita complexidade  simbólica!  E  a  textura  da  flanela  cinzenta  —  quão  rica,  profunda  e misteriosamente  suntuosa  era  ela!  E  lá  estava  isso  tudo,  de  novo,  no  quadro  de Botticelli!

Os seres humanos civilizados usam roupas e, pois, não pode haver quadro, seja ele retrato, narrativa mitológica ou histórica, onde não haja representação de dobras de tecido. Mas, embora podendo caber-lhe o mérito da origem, jamais poderemos atribuir ao hábito do vestuário o exuberante tratamento que a roupagem vem merecendo como tema  principal  em  todas  as  artes  plásticas.  É  evidente  que  os  artistas  sempre  lhe conferiram  um  valor  intrínseco  (ou,  quiçá  mais  propriamente,  sempre  se  aperceberam do valor que ela representava para eles). Quem pinta ou esculpe roupagens está pintando ou esculpindo formas que, em última instância, não possuem simbolismo intrínseco — formas  não  condicionadas  que  os  artistas,  mesmo  os  mais  fervorosos  adeptos  do naturalismo, deixam entregues a si mesmas. No comum das Madonas ou dos Apóstolos,  os  elementos  estritamente  humanos,  inteiramente  simbólicos,  constituem  cerca  de  dez por cento da obra. O restante é formado por um sem-número de variações coloridas do inexaurível tema de linhos e lãs amarfanhados. E esses nove décimos não-simbólicos de uma  Madona  ou  um  Apóstolo  podem  ser  tão  importantes,  qualitativamente,  quanto  o são em quantidade. Não raro, são eles que dão o tom do conjunto da obra de arte, que estabelecem a nota mestra dentro da qual o tema está sendo executado, que exprimem a disposição de espírito, o temperamento, a atitude do artista diante da vida. A serenidade estóica  se  revela  por  superfícies  suaves,  pelas  amplas  dobras  das  roupagens  de  Piero. Esmagado  entre  realidade  e  vontade,  entre  cinismo  e  idealismo,  Bernini  ajusta  a verossimilhança quase caricatural das faces que modela com vastas abstrações de pano que são a corporificação, em pedra ou bronze, dos eternos lugares-comuns da retórica —  o  heroísmo,  a  santidade,  a  sublimidade  a  que  a  humanidade  perpetuamente  aspira, quase sempre em vão. E há ainda as saias e os mantos perturbadoramente viscerais de El Greco;  as  dobras  vivas,  retorcidas  quais  chamas,  em  que  Cosimo  Tura  envolvia  seus personagens.  No  primeiro,  a  espiritualidade  tradicional  se  dilui  em  anônimo  anelo fisiológico;   debate-se,   no   segundo,   um   sentimento   torturado   ante   a   reserva   e   a hostilidade características deste mundo. Examinemos, agora, as obras de Watteau; seus homens  e  suas  mulheres  empenham-se  em  lutas,  aprontam-se  para  bailes,  embarcam, em  relvas  de  veludo  e  sob  vetustas  árvores,  para  a  Citera  dos  sonhos  de  todos  os amantes;  a  imensa  melancolia  que  os  envolve,  bem como  a  pungente  sensibilidade  de seu   criador,   encontram   expressão,   não   nas   ações,   atitudes   ou   semblantes   dos personagens, mas no relevo e na textura de suas saias de tafetá, de seus mantos e gibões de  cetim.  Não  há  nelas  nem  uma  polegada  sequer  de  superfícies  suaves;  tudo  é  um emaranhado  de  sedas  em  incontáveis  e  minúsculas  pregas  e  rugas  em  incessante modulação — reflexo de uma incerteza interior reproduzida com a perfeita segurança de uma mão de mestre — de tom para tom, de uma cor indefinível para outra. Na vida, “o homem põe  e  Deus  dispõe”.  Nas  artes  plásticas,  quem propõe  é  o  assunto;  mas  quem dispõe é, em última instância, o temperamento do artista, e em primeira — ao menos em retratos, pintura  histórica  e descritiva —  as  roupagens e tapeçarias criadas pelo pincel ou pelo buril. Esses dois elementos podem fazer com que uma festa galante nos faça vir lágrimas  aos  olhos;  que  uma  crucificação  tenha  uma  tal  serenidade  que  nos  alegre  a alma; que uma cena de suplício seja quase que intoleravelmente lúbrica; que o retrato de um  prodígio  de  insensatez  feminina  (penso,  neste  instante,  no  incomparável  Mme. Moitessier, de Ingres) possa exprimir a mais austera, a mais inflexível intelectualidade.

Mas isto não é tudo. As roupagens, percebo-o agora, são muito mais que simples artifícios  para  a  introdução  de  formas  desprovidas  de  simbolismo  nas  pinturas  e esculturas naturalistas. O que nós outros só vemos sob a influência da mescalina pode, a qualquer   tempo,   ser   visto   pelo   artista,   graças   a   sua   constituição   congênita.   Sua percepção  não  está  limitada  ao  que  é  biológica  ou  socialmente  útil.  Algo  do  saber inerente à Onisciência flui através da válvula redutora do cérebro e do ego e atinge sua consciência.  Isso  lhe  dá  um  conhecimento  do  valor  intrínseco  de  tudo  o  que  existe. Tanto  para  o  artista  como  para  quem  ingere  mescalina,  o  tecido  é  um  hieróglifo  vivo que  representa,  de  certo  modo  singularmente  expressivo,  os  insondáveis  mistérios  da existência.   Ainda   mais   que   a   cadeira,   embora   talvez   menos   que   aquelas   flores absolutamente  preternaturais,  as  dobras  de  minhas  calças  de  flanela  cinzenta  estavam impregnadas  de  existência.  Não  sei  dizer  a  que  deviam elas  sua  privilegiada  situação. Seria   porque   as   formas  assumidas   pelas  dobras   dos  tecidos  são  tão  esquisitas  e dramáticas que atraem nosso olhar e, assim, produzem esse milagre de pura existência sobre a atenção? Quem poderá dize-lo? Mas importa menos a razão para a experiência do  que  esta  em  si  mesma.  De  olhos  fitos  nas  saias  de  Judite,  no  maior  drugstore  do  mundo, fiquei sabendo que Botticelli — e não somente ele como também muitos outros — havia contemplado as roupagens e tapeçarias com os mesmos olhos transfigurados e transfiguradores  que  eu  possuía  naquela  manhã.  Eles  haviam  visto  o   Istigkeit,  a Totalidade  e  o  Infinito  das  dobras  de  um  tecido  e  haviam empregado  ao  máximo  seu talento  para  representá-las  na  tela  ou  no  mármore.  É  evidente  que  não  poderiam,  de forma alguma, triunfar, pois o esplendor e a maravilha da existência pura pertencem a uma ordem superior ao poder de expressão, mesmo da arte mais sublime. Mas, nas saias de Judite, pude ver claramente aquilo que, fosse eu um pintor de gênio, teria feito com minhas  velhas  calças  de  flanela  cinzenta.  Não  seria  muito  —  sabe-o  o  céu  —  em comparação com a realidade, mas bastaria para deliciar gerações e gerações de amantes da arte, para fazê-los compreender, um pouco que fosse, o verdadeiro valor daquilo que, em  nossa  patética  imbecilidade,  chamamos  simples  coisas  e  desprezamos  em troca  da televisão.

— É assim que precisamos ver — fiquei dizendo enquanto olhava para minhas calças ou relanceava os olhos pelos livros recamados de jóias nas estantes e pelos pés de minha cadeira infinitamente mais que vangoghiana. —  É assim que precisamos ver as coisas  —  tal  como  elas  são!  —  E  ainda  havia  reparos  a  fazer.  Pois  se  alguém  visse sempre as coisas sob esse aspecto, jamais desejaria fazer algo diferente. Haveria apenas de olhar, de ser tão-somente a sublime Desindividualização da flor, do livro, da cadeira, das calças. Isso bastaria. Mas, nesse caso, e as outras pessoas? E as relações humanas? No  registro  da  conversação  daquela  manhã,  encontrei,  a  cada  passo,  a  repetição  da pergunta:  “Que  me  diz  das  relações  humanas?”.  Como  poderia  alguém  conciliar  essa infinita  bênção  de  ver  as  coisas,  tal  como  elas  devem  ser  vistas,  com  os  deveres temporais de agir como se deve agir e sentir como é mister que se sinta? — É preciso que   sejamos  capazes  —   respondi   eu  —   de  considerar  estas  calças  infinitamente importantes, e os seres humanos ainda  mais  infinitamente  importantes.  —  É  preciso!  mas  na  prática  isso  me pareceu  impossível.  Essa  participação  no  manifesto  esplendor  das  coisas  não  deixava lugar, por assim dizer, para as preocupações comuns, necessárias, com a vida humana e, acima  de  tudo,  para  as  preocupações  com  os  indivíduos.  Pois  as  pessoas  possuem individualidade e (ao menos sob um aspecto) naquele momento eu não era eu mesmo, a um só tempo percebendo e sendo a Desindividualização das coisas ao meu redor. Para essa  Desindividualização  recém-nascida,  o  comportamento,  a  aparência,  o  próprio raciocínio  do  indivíduo  que  ela  momentaneamente  deixara  de  ser,  assim como  os  dos outros indivíduos — seus companheiros de até então —, se não lhe eram desagradáveis (pois  a  aversão  não  figurava  entre  as  categorias  em termos  das  quais  eu  raciocinava), estavam, no entanto, bastante longe de suas cogitações. Compelido pelo pesquisador a analisar  e  relatar  o  que  estava  fazendo  (e  como  desejaria  ser  deixado  a  sós  com  a Eternidade em uma flor, com o Infinito em quatro pés de cadeira e com o Absoluto nas pregas de urnas calças de flanela!), verifiquei que estava, deliberadamente, evitando os olhares   daqueles   que   me   faziam   companhia   naquela   sala;   que,   intencionalmente, procurava não tomar conhecimento de sua presença. E, no entanto, um deles era minha esposa, e o outro, um homem que eu considerava e de quem muito gostava. Mas ambos pertenciam  a  um  mundo  do  qual,  naquela  ocasião,  a  mescalina  me  havia  tirado  —  o mundo   dos   personalismos,   da   dimensão   tempo,   dos   julgamentos   morais   e   das considerações utilitárias; o mundo — e era esse aspecto da vida humana que, acima de tudo,   mais   desejava   esquecer   —   o   mundo   da   auto-afirmação,   da   convicção,   da supervalorização da palavra e das noções idolatra-mente cultuadas.

Nesse  ponto  da  experiência  passaram-me  às  mãos  uma  grande  produção  em  cores  do  conhecidíssimo  auto-retrato  de  Cézanne,  o  busto  de  um  homem  cuja  cabeça estava  coberta  por  um  grande  chapéu  de  palha;  rosado,  de  lábios  corados,  ostentando opulentas suíças negras e dono de olhos escuros e inamistosos. É uma obra excelente; mas  não  era  como  obra  de  arte  que  eu  a  encarava,  naquele  instante.  Pois  a  cabeça imediatamente  adquiriu  relevo  e  ganhou  vida  sob  a  forma  de  um  homenzinho  que lembrava  um duende,  olhando  através  de  uma  janela  que  era  a página diante de  mim. Comecei a rir. E, quando me perguntaram a razão, disse, e continuei repetindo:

—    Que  pretensão!  Quem  pensa  ele  que  é?  —  Essa  exclamação,  eu  não  a endereçava  a  Cézanne,  em  particular,  mas  a  toda  a  espécie  humana.  Quem  pensavam eles todos que eram?

—   Isso   me   faz   lembrar   Arnold   Bennett   nos   Dolomitas   —   disse   eu, repentinamente,  recordando  uma  cena  que  um  instantâneo  feliz  imortalizara,  cerca  de quatro ou cinco anos antes de sua morte, quando tateava através de uma trilha gelada em Cortina  d’Ampezzo.  Ao  seu  redor,  a  neve  virgem;  ao  fundo,  a  atração  irresistível  dos rubros despenhadeiros. E lá estava o caro, afável e infeliz Arnold Bennett, exagerando, conscientemente, o papel de seu personagem favorito, corporificando-o ele mesmo. Lá vinha  ele,  vagarosamente,  sob  o  brilhante  sol  dos  Apeninos,  os  polegares  metidos  na cava do colete amarelo que se avolumava, um pouco mais abaixo, na curva graciosa de uma janela estilo Regência — a cabeça jogada para trás, como que tentando vencer uma crise  de  gagueira,  sob  a  cerúlea  abóbada  celeste.  Já  não  me  lembro  de  quais  tenham realmente  sido  suas  palavras;  mas  seu  porte,  seu  ar  e  sua  atitude  pareciam proclamar: “Sou tão bom quanto essas montanhas do inferno!”. E, de fato, sob certos aspectos, ele lhes  era  infinitamente  superior;  mas  —  e  ele  bem  o  sabia  —  não  o  era  pela  forma segundo a qual seu personagem predileto, no reino da ficção, gostava de ser.

Feliz ou infelizmente (dependendo do significado que se der à palavra) todos nós exageramos ao viver o papel de nosso personagem favorito. E o fato quase infinitamente improvável  de  se  tratar  de  Cézanne,  de pouco  lhe valia. Pois o  renomado  pintor,  com seu  pequeno  conduto  para  a  Onisciência  a  burlar  a  ação  da  válvula  redutora  formada pelo cérebro e o filtro do ego, era também, e tão-somente, um duende de grandes suíças e olhar inamistoso.

Para descansar, voltei às pregas de minhas calças.

—   E assim que precisamos ver as coisas — tornei a repetir. E bem que poderia ter acrescentado: “Isto é o tipo de coisa que precisa ser vista”. Coisas sem pretensões, satisfeitas  com  serem  apenas  elas  mesmas,  conformadas  com  suas  peculiaridades,  não agindo   de   per   si,   não   tentando,   loucamente,   isolar-se   do   Dharma-Corpóreo,   em diabólico desafio à graça de Deus.

— O que mais se aproximaria disso — disse eu — seria um Vermeer.

Sim,  um Vermeer.  Pois  esse  misterioso  artista  foi  triplamente  bem aquinhoado — com a visão que identifica o Dharma-Corpóreo com a sebe ao fundo do jardim; com o  talento  para  reproduzir,  com  a  máxima  fidelidade,  essa  visão,  dentro  das  limitações impostas pela capacidade humana; com a prudência para se ater, em suas pinturas, aos aspectos  da  realidade  mais  suscetíveis  de  serem  reproduzidos.  Pois,  embora  Vermeer representasse  seres humanos, sempre foi um pintor  de naturezas-mortas. Cézanne, que dizia a seus modelos femininos que se esforçassem por parecer-se com maçãs, buscava pintar  seus  retratos  dentro  do  mesmo  espírito.  Mas  suas  raparigas  com  ar-de-maçã associam-se  mais  às  idéias  de  Platão  que  ao  Dharma-Corpóreo  na  sebe.  Elas  são  a Eternidade  e  o  Infinito,  não  em  areia  ou  por  flores,  mas  pelas  abstrações  de  alguma espécie  de  alta  geometria.  Vermeer  jamais  pediu  a  seus  modelos  que  buscassem parecer-se com maçãs. Ao contrário, insistia em que fossem o mais femininas possível mas  sempre  abstendo-se  de  se  comportarem  com  infantilidade.  Poderiam  sentar-se  ou ficar de pé, mas não deveriam apresentar-se com risos zombeteiros ou com arrogância, jamais  deveriam rezar  ou  suspirar  por  amores  ausentes,  tagarelar,  olhar  com inveja os filhos  de  outras  mulheres,  namorar,  amar,  odiar  ou  trabalhar.  Se  fizessem  quaisquer dessas coisas iriam, indubitavelmente, mostrar-se mais intensamente elas mesmas; mas deixariam,    por    essa    mesma    razão,    de    apresentar    sua    sublime    e    essencial Despersonalização.  É  de  Blake  a  opinião  de  que  as  portas  da  percepção  de  Vermeer estavam apenas parcialmente limpas. Um único painel atingira uma transparência quase perfeita; o resto da porta continuava enlameado. A Despersonalização essencial pode ser perfeitamente percebida em coisas e em criaturas vivas, no divisor entre o bem e o mal. No  homem,  só  podemos  vislumbrá-la  quando  ele  está  em  repouso,  com  a  mente desanuviada, o corpo estático. Nessas circunstâncias, Vermeer pôde ver a Peculiaridade em toda a sua celestial beleza — pôde vê-la e, até certo ponto, representá-la em sutil e suntuosa   natureza-morta.   Vermeer   é,   indubitavelmente,   o   maior   pintor   de   seres humanos  no  estilo  natureza-morta.  Mas  houve  também  outros  contemporâneos  de Vermeer na França, tais como os irmãos Lê Nain. Eles pretendiam, creio eu, dedicar-se à pintura descritiva; mas, o que em verdade produziram, foi uma série de retratos, tipo natureza-morta, nos quais sua aguda percepção do infinito valor de todas as coisas está presente, não como nos de Vermeer, por um sutil enriquecimento das cores e texturas, mas  por  uma  intensificação  das  luzes,  uma  obsessiva  distinção  das  formas,  dentro  de uma tonalidade austera e quase que monocromática. De nossos dias é Vuillard, o pintor inexcedível, com suas esplêndidas e inesquecíveis pinturas do Dharma-Corpóreo sob a forma de um quarto de dormir burguês; do Absoluto consumindo-se em chamas no seio da família de um comerciante à hora do chá, em um jardim suburbano.

Ce qui fait que 1’ancien handagiste reme
Lê comptoir dont lê faste alléchait lês passants
C’est son jardin d’Auteuil, ou veufs de tout encens,
Lês Zinnias ont l’air d’être
en tôle vemie*

*[O que  faz com que o  antigo lojista despreze/  O  faustoso  balcão que atraía os
fregueses/ É seu jardim de Auteuil onde, à lisonja imunes,/As zínias lembram flores de
lata envernizada.]

Para Laurent Taillade, o espetáculo era simplesmente obsceno. Mas, se o antigo comerciante   de   material   ortopédico   se   houvesse   sentado   suficientemente   imóvel, Vuillard  teria  visto  nele,  tão-somente,  o  Dharma-Corpóreo;  teria  pintado,  entre  as zínias, o tanque dos peixinhos dourados, a torre mourisca e as lanternas chinesas da vila — um recanto do Éden ao romper do outono.

E,  entretanto,  minha  pergunta  continuava  sem  resposta.  Como  conciliar  essa percepção aguçada com uma justa preocupação pelas relações humanas, com os deveres e  as  tarefas  inadiáveis,  para  não  mencionar  a  caridade  e  a  piedade  atuantes?  A  velha disputa  entre  ativos  e  contemplativos  estava  sendo  renovada  —  e  renovada,  creio  eu, com  uma  violência  sem  precedentes.  Pois,  até  aquela  manhã,  eu  só  conhecera  a contemplação  sob  suas  formas  mais  humildes  e  encontradiças  —  a  divagação  do pensamento;  a  arrebatada  abstração  na  poesia,  na  pintura  ou  na  música;  a  paciente espera pela inspiração, sem a qual mesmo o mais prosaico escritor não pode pretender realizar  coisa  alguma;  como  vislumbres  acidentais  da  natureza  “de  algo  muito  mais profundamente interligado”, no dizer de Wordsworth; como o silêncio sistemático que leva,   por   vezes,   à   noção   de   um   “obscuro   saber”.   Mas,   desta   feita,   conheci   a  contemplação em sua pujança. Em sua pujança, sim, mas não em toda a sua plenitude. Pois,  quando  esta  é  atingida,  a  estrada  que  leva  a  Maria  inclui  a  de  Marta[3] e  eleva  a contemplação, por assim dizer, a seu mais alto poder. A mescalina nos abre o acesso a Maria, mas fecha a porta que leva a Marta. Ela nos permite chegar à contemplação, mas a uma contemplação que é incompatível com a ação e até mesmo com a vontade de agir, com a própria idéia de ação. Nos intervalos entre suas revelações, quem toma mescalina é capaz de sentir que, embora de certo modo tudo tenha a sublimidade que devera ter, por  outro  lado  há  nisso  qualquer  coisa  de  errado.  Seu  problema  é,  essencialmente,  o mesmo  com que  se  defronta  o  eremita,  o  arfoat[4] e,  em outro  plano,  o  paisagista  e  o pintor de retratos inanimados. A mescalina jamais poderá resolver tal problema; servirá apenas   para   situá-lo,   em   termos   obscuros,   para   aqueles   aos   quais   ele   jamais   se apresentou.  Sua  solução  plena  e  definitiva  só  poderá  ser  encontrada  por  quem  esteja preparado para  reforçar  a verdadeira Weltanschauung[5] por meio do comportamento adequado  e  de  uma  vigilância  constante,  natural  e  apropriada.  Ao  eremita  se  opõe  o contemplativo-ativo, o santo, o homem que, na frase de Eckhart, está pronto a descer do sétimo céu para levar de beber a seu irmão doente. Ao arhat, refugiando-se do mundo exterior  em um  Nirvana  inteiramente  transcendental,  opõe-se  o  Bodhisattva[7],  para quem a Peculiaridade e o mundo das contingências são uma mesma coisa, e para cuja piedade  sem  limites,  a  cada  uma  dessas  contingências  correspondem  outras  tantas portunidades, não só para meditações transfi-guradoras, como também para praticar a caridade  mais  objetiva.  E,  no  universo  da  arte,  a  Vermeer  e  aos  outros  pintores  de retratos  inanimados,  aos  mestres  do  paisagismo  chinês  e  japonês,  a  Constable  e  a Turner,  a  Sisley,  Seurat  e  Cézanne,  opõe-se  a  arte  integral  de  Rembrandt.  Esses  são nomes célebres, inacessíveis eminências. Pelo que me toca, nessa memorável jornada de maio pude tão-somente ser grato a uma experiência que me revelou, mais claramente do que eu jamais pudera discernir, a verdadeira natureza do desafio e o cunho inteiramente emancipador da resposta.

Seja-me  permitido  acrescentar,  antes  de  abandonar  este  assunto,  que  não  há forma de contemplação, mesmo a mais passiva, que não possua seu conteúdo ético. No mínimo a metade de toda a moral é negativa, e consiste em evitar o erro. O pai-nosso contém menos de cinqüenta palavras, e seis delas são dedicadas a pedir a Deus que não nos deixe cair  em tentação.  O  contemplativo-passivo deixa de fazer muitas coisas que teria de realizar; mas para se dispor a uma tal atitude, ele precisa abster-se de praticar uma série de ações que não deveriam ser levadas a efeito. O mal, acentuou Pascal, seria muito   diminuído   se   os   homens   aprendessem   a   permanecer   serenamente   em  seus aposentos.  Mas  o  contemplativo  cuja  percepção  haja  sido  esclarecida  não  precisará permanecer   encerrado   em   seus   aposentos.   Poderá   sair   para   seus   afazeres,   tão perfeitamente satisfeito em contemplar e em ser uma parte da divina Ordem das Coisas, que   nunca  ver-se-á   tentado   a  entregar-se   ao   que  Traherme  chamou  de  “impuros Artifícios do mundo”. Quando nos sentimos como se fôssemos os únicos herdeiros do universo,  quando  “o  mar  corre  em  nossas  veias  […]  e  as  estrelas  são  nossas  jóias”, quando todas as coisas parecem infinitas e sagradas, que motivos poderemos ter para a cobiça ou a soberba, para a fome de poder ou para as formas mais doentias de prazer? Os  contemplativos  não  são  propensos  a  se  tornarem jogadores,  alcoviteiros  ou  ébrios; como  regra,  não  pregam  a  intolerância  nem  promovem  guerras;  não  são  levados  ao roubo, à fraude ou à opressão dos fracos. E, a essas grandes virtudes negativas, podemos ainda  acrescentar  outra  que,  embora  difícil  de  definir,  não  só  é  importante  como também positiva. O arhat e o contemplativo sereno podem não praticar a contemplação em   sua    plenitude,    mas   mesmo   assim   nos   poderão   proporcionar   informações esclarecedoras  sobre  outra  e  transcendente  região  da  mente.  E,  se  praticarem-na  com elevação, tornar-se-ão os condutos através dos quais poderá advir uma certa influência benéfica,  dessa  região  ignota,  para  um  mundo  de  personalidades  atormentadas,  em constante agonia por falta desse auxílio.

Enquanto  isso,  eu  me  voltara,  a  pedido  de  meu  interlocutor,  do  retrato  de Cézanne para o que se passava em minha mente ao cerrar os olhos. E o que pude então observar   foi   curiosamente   decepcionante:   meu   campo   de   visão   estava   repleto   de estruturas de cores vivas, em constante mutação, que pareciam feitas de plástico ou de folha esmaltada.

— Vulgar — comentei. — Ordinário. Como os objetos de uma loja americana.

Todas essas quinquilharias existiam em um universo acanhado, atulhado.

— E como se alguém estivesse, debaixo do convés, em um navio — exclamei. — Uma loja americana flutuante.

E, à medida que eu a observava, tornou-se bem patente que essa loja americana flutuante estava, de certa forma, relacionada com as pretensões humanas. Esse interior sufocante  de  loja  barata  embarcada  era  meu  próprio  ego;  esses  vistosos  mobiles vulgares,  de  lata  e  de  matéria  plástica,  eram  minhas  contribuições  pessoais  para  o universo.

Achei  a  lição  salutar,  embora  não  deixasse  de  ser  constrangedor  que  ela  me tivesse  sido  ministrada  nesse  momento  e  sob  tal  forma.  De  modo  geral,  quem  toma mescalina  descobre  um  mundo  interior  tão  claramente  definido,  tão  axiomaticamente infinito  e  sagrado  quanto  aquele  mundo  exterior  transfigurado  que  eu  havia  visto  de olhos  abertos.  A  princípio,  minha  própria  experiência  fora  diferente.  A  mescalina  me proporcionara,  temporariamente,  o  poder  de  ter  visões  de  olhos  cerrados;  mas  não pudera  —  ou,  ao  menos  naquela  ocasião,  não  o  fez  —  revelar-me  uma  visão  interior remotamente comparável às minhas flores, à cadeira ou às calças de flanela “lá de fora”. O  que  ela  me  permitira  perceber,  interiormente,  não  fora  o  Dharma-Corpóreo  por intermédio  de  imagens,  e  sim  minha  própria  mente;  não  um  padrão  de  Peculiaridade, mas  um  conjunto  de  símbolos  —  em  outras  palavras,  um  substituto  caseiro  dessa Peculiaridade.

Os  indivíduos  de  imaginação  fértil  são,  em  sua  maioria,  transformados  em visionários pela mescalina. Alguns deles — e seu número talvez seja bem maior do que geralmente   se   admite   —   não   necessitam  de   transformação;   são   permanentemente visionários.

A espécie mental a que Blake pertencia acha-se razoavelmente bem distribuída, mesmo nas sociedades urbano-industriais da atualidade. A singularidade do artista-poeta não consiste no fato de, para citar seu Descriptive Catalogue, haver ele realmente visto “aquelas maravilhosas entidades que a Sagrada Escritura denominava Querubins”. Não reside  em que  “estes maravilhosos entes, surgidos em minhas visões,  tivessem, alguns deles, cem pés de altura […] todos repletos de mitológico e recôndito significado”. Está apenas em sua habilidade para traduzir, por palavras ou (com um pouco menos de êxito) com  traços  e  cores,  ao  menos  certos  aspectos  de  uma  experiência  algo  incomum.  O visionário desprovido de talento pode se aperceber de uma realidade interior não menos assombrosa,  bela  e  valiosa  que  o  mundo  observado  por  Blake;  mas  faltar-Ihe-á  por completo habilidade para exprimir, por meio de símbolos plásticos ou literários, aquilo que viu.

Conclui-se  perfeitamente,  à  luz  dos documentos e  rituais religiosos, bem como dos monumentos da poesia e das artes plásticas que chegaram até nós, que, na maioria das  épocas  e  dos  lugares,  os  homens  têm  atribuído  maior  importância  a  suas  visões interiores que às coisas objetivas que conhecem. Têm julgado que o que vêem, quando de olhos cerrados, possui maior importância espiritual que o visto à luz do dia. Qual a razão para isso? A familiaridade gera indiferença, e o problema da sobrevivência é de uma premência que vai da tediosa rotina à tortura. É para o mundo exterior que abrimos os olhos todas as manhãs, é nele que, de bom ou de mau grado, temos de procurar viver. No  mundo  interior  não  há  trabalho  nem  monotonia.  Visitamo-lo  apenas  em  sonhos  e devaneios, e sua singularidade é tal que nunca encontramos o mesmo mundo em duas ocasiões sucessivas. Que há, pois, de espantoso em preferirem os seres humanos, via de regra, olhar para dentro de si mesmos, em sua busca do sublime? Isso, de fato, sucede como  regra  geral,  mas  não  necessariamente:  não  somente  em  sua  religião,  como também em sua arte, os taoístas e os budistas Zen procuravam ir além de suas visões, ao encontro e através do Vazio, até as “dez mil coisas” da realidade objetiva. Graças a sua doutrina  da  Palavra  tornada  carne,  poderiam  os  cristãos,  desde  o  início,  adotar  uma atitude  semelhante  com  relação  ao  universo  que  os  circundava.  Mas,  em  razão  da doutrina  do  Pecado  Original,  viram-se  em  grande  dificuldade  para  fazê-lo.  Há  apenas trezentos   anos,   uma   expressão   de   completa   fuga   ao   mundo,   e   mesmo   de   sua condenação,  era  não  só  ortodoxa  como  compreensível:  “Nada  há  na  Natureza  que mereça  a  nossa  admiração,  a  não  ser  a  encarnação  de  Cristo”.  No  século  XVII,  essa frase de Lallemant parecia ter sentido. Hoje, encontramos nela a aura da demência.

Na  China,  a  ascensão  do  paisagismo  à  categoria  de  arte  importante  ocorreu há um  milênio;  no  Japão,  há  uns  seis  séculos;  na  Europa,  há  uns  trezentos  anos.  A identificação da Divindade com a sebe foi obra desses mestres zen, que consorciaram o naturalismo  taoísta  com  o  transcendentalismo  budista.  Foi,  pois,  apenas  no  Extremo Oriente  que  os  paisagistas,  conscientemente,  encararam  sua  arte  como  obra  religiosa. No Ocidente, a pintura religiosa consistia em representar personagens sacros e ilustrar textos sagrados. Os paisagistas tinham-se na conta de secularistas. Hoje reconhecemos em Seurat um dos supremos mestres do que pode ser denominado o paisagismo místico. E, não obstante, esse homem que era capaz, mais do que outro qualquer, de representar o  Impar  em  sua  pluralidade,  ficou  indignado  quando  alguém  lhe  elogiou  a  poesia  de suas obras. “Limito-me a aplicar o Sistema”, protestou ele.

Em  outras  palavras,  ele  se  considerava  um  praticante  do  pointillisme[7] e  nada mais.  Passagem  semelhante  conta-se  de  Constable:  Blake,  já  no  fim  de  sua  vida, conheceu-o  em  Hampstead  e  examinou  alguns  de  seus  esboços.  A  despeito  de  seu desprezo pela arte naturalista, o velho visionário soube dar-lhe o devido valor, embora pensasse  tratar-se  de  obra  de  Rubens.  —  “Isto  não  é  desenho”,  exclamou  ele,  “isto  é inspiração!”  Ao  que  Constable  lhe  teria  retrucado,  de  modo  bem característico:  “Fi-lo para que fosse desenho”. Ambos estavam certos. Aquilo era desenho, preciso e fiel, mas ao  mesmo  tempo  era  inspiração  —  inspiração  no  mínimo  tão  elevada  quanto  a  de Blake. Os pinheiros na Urze foram realmente identificados com a Divindade. O esboço  era  uma  reprodução,  necessariamente  imperfeita,  mas  assim  mesmo  profundamente impressionante,  do  que  uma  percepção  sem  peias  revelara  aos  olhos  abertos  de  um grande  pintor.  De  uma  contemplação  segundo  os  moldes  de  Wordsworth  e  Whitman, identificando  a  Divindade  com  a  sebe,  e  das  visões  introspectivas,  tais  como  as  de Blake,  das  “maravilhosas  entidades”,  os  poetas  contemporâneos  recuaram  para  uma investigação  do  que  é  pessoal,  como  oposto  ao  mais  do  que  pessoal,  subconsciente,  e para uma reprodução, em termos altamente abstratos, não dos fatos reais, objetivos, mas de  meras  noções  científicas  e  teológicas.  Coisa  algo  semelhante  ocorreu  no  campo  da pintura.  Nela  verificamos  uma  fuga  generalizada  da  paisagem  —  forma  predominante dessa arte no século XIX. Essa fuga não se deu para aquele sublime Princípio interior — ao qual se achavam ligadas, em sua maioria, as escolas tradicionais do passado —, para aquele Mundo Modelo, onde os homens têm sempre ao seu dispor estas duas matérias-primas: mito e religião. Não; o que houve foi uma fuga para o Princípio exterior, para o subconsciente  individual,  para  um  mundo  intelectual  mais  esquálido  e  ainda  mais estreitamente fechado que o da personalidade consciente. Essas quinquilharias de lata e de plástico, de cores berrantes, onde eu as havia visto antes? Em qualquer galeria de arte onde se exibam as últimas criações da arte não-representativa.

Naquele momento, alguém acabava de ligar um fonógrafo e de pôr um disco no prato. Ouvi com prazer a música; mas nada há que se equipare à visão apocalíptica que tive das flores e de minhas calças. Poderia um músico, prodigamente aquinhoado pela Natureza,  ouvir  as  revelações  que,  para  mim,  foram  exclusivamente  visuais?  Seria interessante   fazer   essa   experiência.   Entretanto,   embora   não   transfigurada,   embora mantendo a qualidade e a intensidade normais, a música contribuiu, e não pouco, para a compreensão  do  que  se  passara  comigo  e  dos  problemas  mais  amplos  que  esses acontecimentos suscitaram.

A música instrumental, por estranho que pareça, deixou-me bastante indiferente. O  Concerto  para  piano  em  dó-menor,  de  Mozart,  foi  interrompido  após  o  primeiro movimento e substituído por um disco de madrigais de Gesualdo.

— Essas vozes — disse eu com prazer —, essas vozes são uma espécie de ponte que nos permite regressar ao mundo dos homens.

E  como  ponte  continuaram,  mesmo  quando  cantando  as  composições  mais povoadas   de   variações   cromáticas   dentre   as   obras   do   príncipe   louco.   A   música prosseguiu através das frases irregulares ; dos madrigais, jamais batendo na mesma tecla em dois compassos l consecutivos. Em Gesualdo — aquele personagem fantástico de um melodrama de Webster — a desintegração psicológica exagerara, levara aos limites   extremos   uma   tendência   inerente   à   música   modal,   em   contraposição   à inteiramente tonai. Daí suas obras darem a impressão de terem sido escritas pelo último Schoenberg.

—  E  no  entanto  —  senti-me  forçado  a  dizer,  enquanto  ouvia  esses  estranhos produtos de uma psicose da Contra-Reforma atuando sobre um estilo de arte do fim da Era Medieval —, e, no entanto, pouco importa que ela seja toda em pedaços. O conjunto é caótico, mas cada fragmento, de per si, é ordenado, é a representação de uma Ordem Superior.  Essa  Ordem  Superior  sobrepuja  a  própria  desintegração.  Sente-se  a  unidade até  nos  fragmentos.  Talvez  ela  seja  mais  sensível  do  que  em  uma  obra  inteiramente  coerente.  Ao  menos,  não  seremos  levados  a  um  sentimento  de  falsa  segurança  por qualquer impulso meramente humano e artificial. Temos de confiar em nossa percepção direta, de natureza fundamental. Portanto, até certo ponto, a desintegração pode ter suas vantagens.      Mas   é   fora   de   dúvida   que   ela   é   perigosa;   terrivelmente   perigosa. Suponhamos que não mais possamos voltar, fugir ao caos…

Dos madrigais de Gesualdo pulamos, num salto de três séculos, para Alban Berg e sua “Suite Lírica”.

— Isto — avisei antecipadamente — será o inferno.

Mas,  quando  a  música  começou,  verifiquei  que  me  enganara.  Na  verdade,  a melodia   parecia   até  alegre.  Vindo  do  fundo  do  meu  subconsciente,  o  enlevo  se multiplicava  pelos  outros  tantos  tons  da  orquestra;  contudo,  o  que  realmente  me impressionou foi  a incongruência essencial entre uma desintegração psicológica talvez ainda  mais  completa  que  a  de  Gesualdo  e  os  prodigiosos  recursos,  tanto  em  talento como em técnica, empregados em sua expressão.

— Não parece que ele está triste consigo mesmo? — comentei com    zombeteiro    desagrado.    E    logo    depois:    —    Katzenmusik!, douta Katzenmusik![8]  —  Finalmente,  após  mais  uns  poucos  minutos  de  tortura:  —  Quem se
importa com quais sejam seus sentimentos? Por que não pode ele dedicar-se a qualquer outra coisa?

Como  crítica  de  uma  obra  indubitavelmente  notável,  ela  era  injusta  e  parcial, mas não creio que fosse despropositada. Cito-a, não só pelo valor que possa ter, como também por ter sido assim que, em um estado de pura contemplação, reagi ante a “Suite Lírica”.

3. Marta e Maria, irmãs de Lázaro, citadas no Novo Testamento, Evangelho de São Lucas. Nas alegorias cristãs, Marta simboliza a vida ativa; Maria, a contemplativa.

4. Arfoat – monge budista que atingiu a luz; santo budista.

5. Weltanschauung   (“visão   do   mundo”)   é   uma   concepção   filosófica   do universo como decorrência do rumo dos acontecimentos no mundo como um todo.

6. Bodhisattva  –  santo  budista;  aquele  que,  seguindo  as  pegadas  do  Buda, deverá, em encarnação futura, tornar-se também um Buda.

7. Técnica de pintura da escola neo-impressionista, fundada por Seurat, na qual as tintas são aplicadas sobre fundo branco, em pequenos pontos, seguindo um rigoroso sistema.

8. Literalmente,  “música  de  gatos”;  expressão  alemã  empregada  para  definir uma música desagradável.

por Aldous Huxley


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