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EDWARD C. WHITMONT
“Ah, se fosse assim tão simples! Se houvesse pessoas más em um lugar, insidiosamente cometendo más ações, e se nos bastasse separá-las do resto de nós e destruí-las. Mas a linha que divide o bem do mal atravessa o coração de todo ser humano. E quem se disporia a destruir uma parte do seu próprio coração?”
– Alexander Solzhenitsyn
O termo sombra refere-se àquela parte da personalidade que foi reprimida em benefício do ego ideal. Uma vez que todas as coisas inconscientes são projetadas, encontramos a sombra na projeção — na nossa visão do “outro”. Assim como as figuras oníricas ou fantasias, a sombra representa o inconsciente pessoal. Ela é como que um composto das couraças pessoais dos nossos complexos e, portanto, o portal de acesso a todas as experiências transpessoais mais profundas.
Falando em termos práticos, é comum que a sombra apareça como uma personalidade inferior. No entanto, pode haver também uma sombra positiva, que surge quando tendemos a nos identificar com as nossas qualidades negativas e a reprimir nossas qualidades positivas.
Este é um exemplo clássico de uma situação que nos é familiar. Uma paciente de meia- idade queixava-se incessante e amargamente da sogra. Sua descrição do problema, de modo geral, parece correta e adequada, pois as declarações do seu marido eram quase idênticas. A mãe é vista por ambos como dominadora ao extremo, como alguém incapaz de admitir as opiniões alheias, como alguém que pede conselhos e logo os despreza, como alguém que se diz em posição de desvantagem, abusada e martirizada; o resultado é que o relacionamento com ela torna-se impossível. Nossa paciente (a nora) sente que a sogra se interpõe entre ela e o marido: o filho precisa constantemente servir à mãe, e a esposa, em conseqüência, sente-se eclipsada. Sua situação conjugal parece estar num impasse insolúvel. Ela tem o seguinte sonho:
Estou num corredor escuro. Tento alcançar meu marido, mas o caminho está barrado pela minha sogra. O mais assustador, no entanto, é que a minha sogra não me vê embora um holofote brilhe intensamente sobre mim. E como se, para ela, eu não existisse.
Lembremo-nos que um sonho sempre sugere uma situação inconsciente. Ele é complementar e revela aquilo que não está suficientemente dentro do campo da nossa percepção. Um sonho não irá reformular uma situação que o sonhador já percebe de modo adequado e correto. Quando existem dúvidas na mente consciente, um sonho pode ajudar a resolvê-las pela reiteração, mas, quando o sonho repete algo de que nos sentimos absolutamente convencidos, trata-se de um desafio que nos está sendo feito pelo inconsciente; nossas projeções se erguem contra nós. A primeira vista, o sonho da nossa paciente parece confirmar a sua queixa consciente. Mas o que ele diz quando buscamos uma projeção inconsciente? Ele diz, com toda a clareza, à sonhadora, “O holofote está sobre você, não sobre a sua sogra”. Ele mostra as qualidades inconscientes que ela projeta sobre a sogra e que se interpõem entre ela própria e o marido. Nela, a sogra impede-a de alcançar o marido. O que se interpõe no seu caminho é a sua própria tendência de sempre estar com a razão, a sua própria tendência de criar obstáculos e menosprezar as coisas e a sua própria tendência de ser a grande mártir. O holofote está sobre ela, mas a sogra não a vê; ela está tão dominada e identificada com as qualidades imputadas à sogra que é incapaz de ver a si mesma como realmente é, de ver a sua própria e verdadeira individualidade. Em conseqüência, é como se a sua individualidade deixasse de existir. Já que não consegue ver realmente a si mesma, ela tampouco consegue, na vida real, ver a sogra como um ser humano e, portanto, não consegue lidar de modo adequado com as táticas de obstrução que utiliza. Esse é um círculo vicioso perfeito, que inevitavelmente ocorre quando ficamos aprisionados a uma projeção de sombra (ou a uma projeção de animus ou de anima). Uma projeção sempre embaça a nossa visão da outra pessoa. Mesmo quando acontece de as qualidades projetadas serem qualidades reais da outra pessoa — como ocorre neste caso —, a reação afetiva que marca a projeção sugere que o complexo afetivo em nós embaça a nossa visão e interfere com a nossa capacidade de ver com objetividade e estabelecer relações de um modo humano.
Imaginemos um motorista que, sem perceber, usa óculos com lentes vermelhas. Ele teria dificuldades para distinguir entre as luzes vermelha, amarela e verde dos semáforos e correria perigo constante de sofrer um acidente. De nada lhe adiantaria que algumas, ou mesmo que todas as luzes que ele percebe como vermelhas fossem realmente vermelhas. O perigo, para ele, está na sua incapacidade de diferenciar e separar o que a sua “projeção vermelha” lhe impõe, Quando ocorre uma projeção de sombra, não somos capazes de diferenciar entre a realidade da outra pessoa e nossos próprios complexos. Não conseguimos distinguir entre fato e fantasia. Não conseguimos ver onde começamos e onde o outro termina. Não conseguimos ver o outro; nem a nós mesmos.
Peça para um amigo lhe descrever o tipo de personalidade que ele acha mais desprezível, mais insuportável, mais odiosa e de convívio mais impossível; ele descreverá as suas próprias características reprimidas — uma autodescrição que é absolutamente inconsciente e que,.portanto, sempre o tortura quando ele recebe seu efeito de uma outra pessoa. Essas mesmas qualidades são tão inaceitáveis para ele precisamente porque elas representam o seu próprio lado reprimido; só achamos impossível aceitar nos outros aquilo que não conseguimos aceitar em nós mesmos. Qualidades negativas que não nos incomodam de modo tão intenso ou que achamos relativamente fácil perdoar — se é que precisamos perdoá-las — em geral não pertencem à nossa sombra.
A sombra é a experiência arquetípica do “outro”, aquele que, por ser-nos estranho, é sempre suspeito. A sombra é o impulso arquetípico de buscar o bode expiatório, de buscar alguém para censurar e atacar a fim de nos vingarmos e nos justificarmos; ela é a experiência arquetípica do inimigo, a experiência da culpabilidade que sempre recai sobre o outro, pois estamos sob a ilusão de que conhecemos a nós mesmos e já trabalhamos adequadamente nossos próprios problemas. Em outras palavras, na medida em que é preciso que eu seja bom e justo, ele, ela ou eles tornam-se os receptáculos de todo o mal que deixo de reconhecer dentro de mim mesmo.
As razões para isso residem na natureza mesma do próprio ego; o desenvolvimento do ego ocorre como resultado do encontro entre o Eu — enquanto tendência potencial da personalidade – e a realidade externa, ou seja, entre a individualidade potencial interior e a coletividade No primeiro nível de experiência entre o certo e o errado, que é a base para a auto- aceitação, os inícios de consciência são assumidos e projetados sobre a coletividade exterior. A criança aceita a si mesma em termos de adequação. A harmonia com o Eu (e, portanto, com a consciência) parece depender de início da aceitação externa — ou seja, dos valores coletivos e da persona, bem como daqueles elementos da individualidade que estão demasiado em desacordo com os valores aceitos da persona para poderem ser conscientemente incorporados à imagem que o ego faz de si mesmo. Eles se tornam, assim, sujeitos a repressão. Mas não desaparecem; continuam a atuar como um alter ego invisível que parece estar fora do indivíduo – em outras palavras, atuam como a sombra. O desenvolvimento do ego baseia-se na repressão do “errado” ou do “mau” e na promoção do “bom”. Nosso ego não consegue fortalecer-se a menos que primeiro aprendamos os tabus coletivos, aceitemos os valores do superego e da persona e nos identifiquemos com os padrões morais
É da maior importância notar que as qualidades que foram reprimidas por serem incompatíveis com os ideais da persona e com os valores culturais gerais talvez sejam fundamentais para a estrutura básica da personalidade; mas, por terem sido reprimidas, permanecerão primitivas e, portanto, negativas. Infelizmente, a repressão não elimina as qualidades ou impulsos, nem os impede de agir. Ela apenas os remove da consciência do ego; eles continuam a existir como complexos. Ao serem removidos da nossa visão, escapam da nossa supervisão e podem, assim, continuar a existir de modo irrefreado e destrutivo. Portanto, a sombra consiste em complexos e qualidades pessoais baseados em impulsos e padrões de comportamento que são uma inquestionável parte “escura” da estrutura da personalidade. Na maioria dos casos, essas qualidades são facilmente observáveis pelas outras pessoas. Só nós mesmos não conseguimos vê-las. As qualidades da sombra formam, em geral, um agudo contraste com os ideais do ego e os esforços da vontade. O altruísta sensível talvez abrigue um brutal egoísta dentro de si; a sombra do bravo guerreiro talvez seja um lamuriante covarde; a doce namorada talvez hospede uma amarga megera.
A existência da sombra (ou a necessidade dela) é uma realidade arquetípica do gênero humano, pois o processo de formação do ego — o conflito entre coletividade e individualidade – é um padrão humano A sombra é projetada de duas maneiras: individualmente, na forma da pessoa a quem atribuímos todo o mal; e coletivamente, na sua forma mais geral, como o Inimigo, a personificação do mal. Suas representações mitológicas são o diabo, o arquiinimigo, o tentador, o demônio, o duplo ou o elemento escuro/mau no par de irmãos/irmãs. A sombra é um componente do desenvolvimento do ego, Ela é um produto da cisão que ocorre quando estabelecemos o centro da nossa percepção. Ela é aquilo que, ao medirmos o conjunto, percebemos que faltava. Ela coincide de modo aproximado com aquilo que foi considerado (primeiro por Freud e, agora, por quase todos nós) como o inconsciente: ou seja, os elementos reprimidos da consciência. Nas representações inconscientes espontâneas, a sombra geralmente é personificada por uma figura do mesmo sexo da pessoa que a sonha.
O reconhecimento da sombra pode acarretar efeitos marcantes sobre a personalidade consciente. A própria noção de que o mal que vemos na outra pessoa talvez esteja em nós mesmos, pode provocar choques de intensidade variada dependendo da força das nossas convicções éticas e morais. E preciso ânimo para não fugir ou ser esmagado pela visão da própria sombra; é preciso coragem para assumir a responsabilidade pelo próprio eu inferior. Quando esse choque parece quase impossível de ser suportado, o inconsciente geralmente exerce sua função compensatória e vem em nossa ajuda com uma visão construtiva da situação; como neste sonho:
“Alguém queria me matar com uma maçã. Então, vi que um dos meus vizinhos, de quem jamais gostei, havia conseguido transformar um terreno rochoso e árido, que eu considerava inútil, num bonito jardim.”
Esse sonho mostra o problema da sombra sob dois ângulos: primeiro, em termos arquetípicos e depois em termos individuais. O paciente associava à maçã a famosa maçã do primeiro capítulo do Gênesis — o presente do diabo. A pessoa desconhecida que tentava mata- lo com o presente do diabo (ou da serpente) representa uma forma arquetípica da sombra, a realidade humana geral de que todos nós precisamos lidar com o problema da sombra. O vizinho real, de quem ele não gostava, representa a sombra pessoal, Na verdade, o sonho diz: “Você receia que a sombra — aquilo em você que oferece a maçã, a discriminação entre o bem e o mal e, portanto, a consciência da tentação do mal dentro de você — o mate.” Pois. por ter comido a maçã, o homem conheceria a morte (Gênesis 3:19); mas a maçã também implica que “… sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal” (Gênesis 3:5). O sonho, portanto, sugere que esse problema pessoal que tanto chocou o seu sonhador é um problema geral, fundamental, humano — logo, arquetípico. A confrontação com o próprio mal pode ser uma experiência mortificante e destrutiva; mas, como a morte, ela aponta para além do significado pessoal da existência. É importante que o sonhador perceba isso.
A segunda parte do sonho diz: “Foi o seu próprio lado da sombra — aquilo em você que você acha inaceitável, ou seja, aquelas qualidades que você associa ao vizinho de quem não gosta — que transformou um terreno árido e inútil num paraíso.” A sombra, quando percebida, é uma fonte de renovação; o impulso novo e produtivo jamais nasce dos valores estabelecidos do ego. Quando chegamos a um impasse, a uma fase estéril em nossa vida — apesar de um desenvolvimento adequado do ego — devemos buscar o nosso lado escuro e até então inaceitável, que está à disposição do nosso lado consciente. No Fausto, Goethe faz o diabo responder assim quando lhe perguntam, “Quem sois, então?”:
Parte daquele Poder que pensa
fazer o Mal e acaba fazendo o Bem.
(O inverso também é verdadeiro: quanto mais queremos fazer o bem, mais acabamos criando o mal — quando, por exemplo, nos tornamos “fazedores do bem” profissionais, subestimando o mal ou deixando de perceber nossas intenções egoístas.)
Isso nos leva ao fato básico de que a sombra é a porta para a nossa individualidade. Na medida em que nos oferece um primeiro vislumbre da parte inconsciente da nossa personalidade, a sombra representa o primeiro estágio em direção ao encontro do Eu. Não existe, na verdade, nenhum acesso ao inconsciente e à nossa própria realidade senão através da sombra. Só quando percebemos aquela parte de nós mesmos que até então não vimos ou preferimos não ver, podemos avançar para questionai e encontrar as fontes das quais ela se alimenta e as bases sobre as quais repousa. Logo, nenhum progresso nem crescimento são possíveis até que a sombra seja adequadamente confrontada — e confrontá-la significa mais do que apenas conhecê-la. Só depois de termos ficado realmente chocados ao ver como somos de verdade, cm vez de nos ver como queremos ser ou pretendemos ser, é que podemos dar o primeiro passo rumo à realidade individual.
Quando a pessoa é incapaz de integrar seu potencial positivo e se desvaloriza em excesso, ou quando ela é idêntica — por falta de força moral, por exemplo — ao seu próprio lado negativo, então o potencial positivo toma-se a característica da sombra. Nesse caso, a sombra é uma sombra positiva; ela é, então, o mais luminoso dos “dois irmãos”. Nesse caso, os sonhos também tentarão trazer à consciência aquilo que foi indevidamente subestimado: as qualidades positivas. Isso, no entanto, ocorre com menos freqüência do que a imagem exageradamente boa e brilhante de nós mesmos. Formamos essa imagem brilhante porque queremos estar dentro de padrões coletivamente aceitáveis.
Existem diversas maneiras possíveis de reagir à sombra. Recusamo-nos a enfrentá-la. Ou, uma vez conscientes de que ela é parte de nós, tentamos eliminá-la e removê-la de imediato. Ou nos recusamos a assumir a responsabilidade por ela e deixamos que ela aja a seu modo. Ou talvez optemos por “sofre-la” de uma maneira construtiva, vendo-a como a parte da nossa personalidade que poderá nos levar a uma saudável humildade e humanidade, e até mesmo a novas descobertas e a horizontes mais amplos.
Quando nos recusamos a enfrentar a sombra, ou quando tentamos combatê-la com a força da nossa vontade, exclamando: “Para trás, Satanás!”, estamos tão-somente relegando essa energia para o inconsciente e dali ela exercerá seu poder de uma forma negativa, compulsiva, projetada. Então, nossas projeções transformam o mundo à nossa volta num ambiente que nos mostra a nossa própria face, mesmo que não a reconheçamos como nossa. Tornamo-nos cada vez mais isolados; em vez de uma relação real com o mundo à nossa volta, existe apenas uma relação ilusória, pois nos relacionamos, não com o mundo como ele é, mas sim com o “mundo mau e perverso” que a projeção da nossa sombra nos mostra. O resultado é um estado de ser inflado e auto-erótico. seccionado da realidade, que geralmente toma as conhecidas formas de “Ah, se pelo menos tal coisa fosse assim”, ou “Ah, quando tal coisa acontecer” ou “Ah, se as pessoas me entendessem (ou apreciassem) direito”.
Devido às nossas projeções, vemos esse impasse como ódio do ambiente por nós; com isso, criamos um círculo vicioso que se prolonga ad infinitum, ad nauseam. Essas projeções darão uma tal forma às nossas atitudes em relação aos outros que por fim faremos surgir, literalmente, aquilo que projetamos. Imaginamo-nos tão perseguidos pelo ódio que o ódio acaba nascendo nos outros em resposta aos nossos cáusticos mecanismos de defesa. O outro vê a nossa defensiva como hostilidade gratuita: isso desperta os seus mecanismos de defesa e ele projeta a sua sombra sobre nós; reagimos com a nossa defensiva, causando assim ainda mais ódio.
Para proteger o seu próprio controle e soberania, o ego instintivamente oferece grande resistência ao confronto com a sombra; quando capta um vislumbre da sombra, a reação mais comum do ego é tentar eliminá-la. Mobilizamos a nossa vontade e decidimos, “Não quero mais ser assim!” E então vem o destruidor choque final, quando descobrimos que isso é impossível, pelo menos em parte, por mais que tentemos. Pois a sombra representa padrões de sentimento e de comportamento autônomos e energeticamente carregados. A energia desses padrões não pode ser simplesmente detida por um ato da vontade. Torna-se necessária uma recanalização ou transformação. No entanto, essa tarefa exige a percepção e a aceitação da sombra como algo que não pode ser simplesmente eliminado.
De algum modo, quase todos nós sentimos que qualquer qualidade, uma vez reconhecida, precisará necessariamente ser passada ao ato; pois, mais doloroso do que enfrentar a sombra, é resistir aos nossos impulsos emocionais, suportar a pressão de um desejo, sofrer a frustração ou a dor de um desejo insatisfeito. Logo, para evitar ter de resistir aos nossos impulsos emocionais quando os reconhecemos, preferimos simplesmente não vê-los e nos convencer de que eles não estão ali. A repressão parece menos dolorosa que a disciplina. Mas ela é, infelizmente, mais perigosa, pois nos faz agir sem a consciência dos nossos motivos, ou seja, de modo irresponsável. Mesmo que não sejamos responsáveis pelo modo como somos e sentimos, precisamos assumir a responsabilidade pelo modo como agimos. Portanto, precisamos aprender a nos disciplinar. E a disciplina está na capacidade de, quando necessário, agir de modo contrário aos nossos sentimentos. Essa é uma prerrogativa — bem como uma necessidade — eminentemente humana.
A repressão, por outro lado, simplesmente desvia os olhos. Quando persistente, a repressão sempre leva a estados psicopatológicos; mas ela é, também, indispensável à formação inicial do ego. Isso significa que todos nós portamos os germes da psicopatologia dentro de nós. Nesse sentido, uma psicopatologia em potencial é uma parte integrante da nossa estrutura humana,
A sombra precisa ter, de algum modo, em algum momento, em algum lugar, o seu lugar de expressão legítima. Ao confrontá-la, temos a escolha de quando, de como e de onde podemos permitir dar expressão às suas tendências dentro de um contexto construtivo. E quando não é possível refrear a expressão do seu lado negativo, podemos amortecer seu efeito através de um esforço consciente para acrescentar um elemento atenuante ou, ao menos, um pedido de desculpas. E quando não podemos (ou não devemos) nos abster de ferir, podemos pelo menos tentar fazê-lo com gentileza e estar prontos para arcar com as conseqüências. Se desviamos virtuosamente os olhos, não temos essa possibilidade; e então é provável que a sombra, deixada a si mesma, nos atropele de uma maneira destrutiva e perigosa. Então, algo “acontece” conosco e é geralmente quando nos causa as maiores inconveniências; já que não sabemos o que está acontecendo, nada podemos fazer para atenuar seu efeito, e jogamos toda a culpa sobre o nosso semelhante.
Existem também, é claro, implicações sociais e coletivas do problema da sombra. Elas são espantosas, pois nelas estão as raízes do preconceito e da discriminação social, racial e nacional. Toda minoria, todo grupo dissidente, carrega a projeção da sombra da maioria — quer se trate de negros, de brancos, de cristãos, de judeus, de italianos, de irlandeses, de chineses ou de franceses. Além disso, já que a sombra é o arquétipo do inimigo, é provável que sua projeção nos envolva nas mais sangrentas guerras precisamente nas épocas de maior complacência a respeito da paz e da nossa própria retidão. O inimigo e o conflito com o inimigo são fatores arquetípicos, projeções da nossa cisão interior e não podem ser legislados ou simplesmente eliminados pela vontade, Só é possível lidar com eles — se é que é possível de todo — confrontando a nossa sombra e curando a nossa cisão individual. As épocas mais perigosas, tanto coletiva quanto individualmente, são aquelas em que presumimos ter eliminado a sombra.
A sombra não pode ser eliminada. Ela é a nossa irmã escura, sempre presente. Quando deixamos de ver onde ela está, é provável que os problemas estejam a caminho. Pois é certo que ela estará atrás de nós. Portanto, a pergunta adequada não seria: “Tenho um problema de sombra, tenho um lado negativo?” e sim: “Onde exatamente está a minha sombra agora?” Quando não podemos vê-la, é hora de tomar cuidado! E seria útil lembrar a declaração de Jung de que nenhum complexo é patológico per se. Ele só se torna patológico quando supomos que não o temos; pois então é ele que nos tem.
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