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Stanislav Grof é um pesquisador da área da Psiquiatria que tem como objeto de estudo a consciência humana. Não é propriamente filósofo, pedagogo ou educador. Então por que fui buscá-lo? Porque de suas pesquisas empíricas com a consciência humana, inicialmente investigando o ácido lisérgico e depois criando a Respiração Holotrópica, emergiu uma interessante cartografia da consciência que sugere que a condição humana, o sujeito humano, tem muito mais aspectos a serem considerados em sua antropologia do que aquilo que vêm propondo as antropologias fundadas no paradigma newtoniano-cartesiano.
Grof, mediante a instalação de estados ampliados de consciência, registrou e gravou em fitas magnéticas os conteúdos elaborados pelos sujeitos de sua investigação. Coletou tais relatos, catalogou-os, organizou-os e ousou uma nova interpretação que vai além do inconsciente pessoal como proposto por Freud. Assim a cartografia que propõe não é oriunda de estudos teológicos, a partir da Revelação de livros sagrados, e nem de especulação filosófica e metafísica. É fruto de suas investigações com os estados ampliados de consciência e, portanto, tem uma base empírica.
Os detalhes da construção da cartografia sugerida por Grof encontram-se bem descritos em seus livros. Vou apresentar aqui uma breve síntese para que o leitor tenha, posteriormente, condições de compreender a concepção antropológica – concepção de ser humano – que dela emana. Tal cartografia distingue quatro níveis na consciência: a barreira sensorial, o nível biográfico- rememorativo, o nível perinatal e o nível transpessoal.
O primeiro nível, a barreira sensorial
, diz respeito a sensações físicas que sentimos quando entramos em processo de expansão da consciência e não tem muito significado na perspectiva do autoconhecimento. São sensações relativas à visão, à audição e ao olfato, por exemplo.
O segundo nível, o biográfico-rememorativo
, diz respeito às nossas memórias biográficas com nossos pais e pessoas próximas a nós; refere-se também à memória de acontecimentos que nos marcaram positiva ou negativamente. Aqui é possível ver toda a dinâmica psíquica como ensinada por Freud.
O terceiro nível, o perinatal,
diz respeito à memória e ao aprendizado experimentado por ocasião do processo de nascimento dos seres humanos no momento do parto, processo este que Grof chama de morte-renascimento, por toda dramaticidade e risco que traz. Sua cartografia sugere a existência, no nível perinatal, de quatro matrizes de aprendizado que se constituem neste momento e que, embora permaneçam inconscientes, atuam na vida pós- uterina, participando da definição de nossas características pessoais.
São as Matrizes Perinatais Básicas (MPB):
Matriz Perinatal Básica I (MPB I): também chamada por Grof de O Universo Amniótico. Esta matriz tem sua base biológica na unidade simbiótica entre o feto e o organismo materno no processo de gestação. A experiência do feto pode ser uma experiência de conforto, segurança, tranqüilidade e paz – o que o autor chama de “berço bom” – ou pode ser uma experiência de distúrbios, desconfortos e inseguranças, especialmente nos períodos finais da gestação, o “berço ruim”. Para Grof a qualidade da experiência na vida intra-uterina é um dos determinantes de comportamento futuro do sujeito humano, obviamente que em combinação com inúmeros outros fatores da vida pós-uterina. As figuras abaixo são pinturas, de autoria do próprio Stanislav Grof, que representam o que chamou de berço bom e berço ruim. Nos processos de respiração holotrópica, em estado ampliado de consciência, as experiências vivenciadas são, muitas vezes, marcadas por imagens deste tipo que Grof representou em suas pinturas. Posteriormente podem ser trabalhadas em processos psicoterápicos que guardam sensibilidade para com uma visão mais ampliada do ser humano.
O Berço Bom
O Berço Ruim
MPB II ou Devoração Cósmica Sem Saída:
ocorre no segundo momento biológico do parto e é uma situação de enorme tensão para o feto uma vez que se inicia o processo que prepara o nascimento. A sensação para o feto é tão crítica, principalmente se este experimentou o “berço bom”, que Grof denominou esta matriz de devoração cósmica. Na vida pós-uterina esta matriz associa-se a situações de estar sem saída e sem esperança pela dimensão de opressão. Permanecer preso a esta sensação pode facilitar o sujeito assumir o papel de vítima em sua vida cotidiana. A figura a seguir, também de autoria de Grof, representa a experiência dos primeiros sintomas do parto biológico e da influência da Matriz Perinatal Básica II.
Os primeiros momentos do parto biológico
MPB III ou A Luta Morte-Renascimento: esta matriz corresponde ao terceiro momento do parto, quando o feto começa a travessia pelo canal do nascimento. É um momento de luta e esperança. Luta porque a situação é ainda de muita opressão, mas, ao mesmo tempo, é de esperança porque é a possibilidade de fazer a travessia e superar as ameaças deste momento. A figura 7, quadro do pintor suíço Hansruedi Giger selecionada pelo próprio Grof em seu livro Além do Cérebro, sugere a experiência da MPB III ao combinar “a fragilidade anatômica dos fetos com uma maquinaria agressiva e faixas constritivas de aço à volta da cabeça, sugerindo o nascimento”.
Representação da MPB III
MPB IV ou Experiência de Morte e Renascimento: é o ápice do processo de nascimento quando o feto, finalmente, completa a saída do útero materno e ganha o espaço exterior. Biologicamente tal processo apresenta os indícios ainda de luta, mas já dentro de um estágio mais evoluído e menos agressivo. Os episódios da vida pós-natal que se ligam a MPBIV são aqueles relacionados a vitórias, sucessos e triunfos sobre situações perigosas. A figura 8, de autoria de Grof, representa a Fênix que para o autor é um símbolo bastante apropriado de morte- renascimento “uma vez que envolve morte pelo fogo, nascimento de algo novo e movimento em direção da fonte de luz”.
A transição da MPB III para MPB IV: nascimento, luz, vitória
Grof sugere que experiências de muita dor e sofrimento numa dessas matrizes podem fazer com que a pessoa em questão guarde com esta matriz uma relação de Matriz Negativa, e afirma que “muitas observações sobre o indivíduo que está sob forte influência de matrizes perinatais negativas sugerem que ele encara a vida e seus problemas de um modo não somente vazio, mas com conseqüências destrutivas para si e para os outros, a longo prazo” (1987, p. 307-308). Entretanto, mostrou também que tais experiências podem ser acessadas e liberadas tornando a vida do sujeito mais adequada ao desenvolvimento pleno e para tanto, juntamente com sua esposa Christina Grof, criou um processo terapêutico conhecido como Respiração Holotrópica. O processo perinatal abre espaço para o quarto nível da consciência.
O quarto nível da consciência é o domínio transpessoal. De acordo com Grof as matrizes perinatais anteriormente apresentadas são uma ponte e fazem a comunicação entre a nossa psique individual e aquilo que Jung chamou de Inconsciente Coletivo. De fato as experiências com as diferentes matrizes perinatais mostram, além das lembranças do parto biológico, seqüências que podem apresentar a história da humanidade, o envolvimento com reinos e seres mitológicos, a identificação com animais, etc… Todos estes elementos fazem parte do domínio transpessoal, que é um “lugar” descoberto pela moderna pesquisa da consciência e que está além dos campos biográfico e perinatal. É bem verdade que muitas culturas e tradições espirituais já conhecem tais domínios há muito tempo. A ciência moderna, porém, somente agora, com as últimas décadas de pesquisa da consciência, chegou a trabalhar com tal domínio que foge aos limites impostos pelo paradigma newtoniano- cartesiano. Este é o nível no qual, através da consciência ampliada, as barreiras de tempo e espaço, rigorosamente estudadas no paradigma newtoniano-cartesiano, desaparecem e dão lugar à percepção da unidade que perpassa o mundo humano, o mundo da natureza e a realidade cósmica. Aqui Grof identificou uma série de experiências, espirituais inclusive, que a humanidade há muito conhece, mas que permaneceram sufocadas, e às vezes consideradas como doentias, por uma concepção paradigmática redutiva e fragmentada. É a partir, sobretudo deste nível, que é possível considerar a espiritualidade do ser humano e também a sua dimensão ecológica, que o liga ao mundo da natureza.
Na tentativa de facilitar a compreensão da cartografia grofiana proponho o seguinte esquema didático apresentado na figura abaixo. Neste esquema o ponto central é o sujeito, o indivíduo humano. Tudo o que está dentro do grande “V”, que se abre sobre o sujeito, é a sua interioridade, aberta ao mundo holotrópico (do grego holos, totalidade; holotrópico é aquilo que se move em direção à totalidade). Tudo o que está fora do grande “V” é a sua exterioridade ou plano hilotrópico (do grego hylé, matéria; hilotrópico é tudo aquilo que se move em direção à matéria). Na exterioridade estão o Tempo-Espaço, a História, a(s) Cultura(s) e a(s) Sociedade(s). O mergulho (ou subida) em direção ao transpessoal, as realidades além do ego pessoal como o nome sugere, passam pela barreira sensorial, pelo campo biográfico-rememorativo e pelo campo perinatal com suas quatro matrizes básicas.
As pessoas podem viver seu cotidiano com atenção apenas ao mundo exterior e abrirem-se muito pouco às suas realidades internas. A vida, como é comumente vivida nas diretrizes do paradigma newtoniano-cartesiano, facilita que a pessoa chegue, no máximo, a trabalhar sistematicamente com materiais do campo biográfico-rememorativo, de modo especial dentro da dinâmica psíquica sugerida por Freud. Ao viverem assim ficam “desconectadas” de grandes energias psíquicas presentes nos campos perinatal e transpessoal. Eventos esporádicos, ocasionais ou provocados, podem, em certos momentos, “reconectá-las” com tais energias, mas uma vida que se pretenda irrigada pelas energias mais profundas da psique precisará manter esta conexão por um permanente e cuidadoso trabalho de autoconhecimento ou auto-exploração sugere Grof. A Respiração Holotrópica é uma dessas vias de autoconhecimento, mas não é a única. Muitos podem ser os caminhos utilizados para tal processo, do trabalho sistemático com os próprios sonhos às experiências artísticas diversas passando pelas diferentes técnicas de meditação. Conforme a figura 10 sugere, a pessoa que conseguiu um trabalho de auto-atenção permanente, de forma a reconectar seus níveis internos, é a pessoa re-ligada interagindo com o mundo das culturas e das sociedades com a inteireza de ser hilo-holotrópico que é.
A cartografia que apresentei sugere uma antropologia da inteireza, uma vez que Grof defende que o ser humano, para desenvolver-se plenamente, precisa re-ligar as dimensões internas de sua psique ao mesmo tempo em que necessita reconhecer suas vinculações com a realidade exterior a si mesmo, o mundo da cultura. Entende que o sujeito pode viver fragmentado: como afirmei anteriormente a cultura newtoniano-cartesiana tende a fixá-lo nos dois primeiros níveis da consciência da cartografia proposta. A conseqüência é uma vida angustiada e atormentada pela falta da energia que vem dos demais níveis da consciência e que podem ajudar a introduzir equilíbrio, ânimo, entusiasmo, capacidade de cuidado e sentido à vida. A pessoa quando desligada de suas energias vitais pode facilmente tornar-se o Zé Ninguém, sugerido por Reich.
O sujeito re-ligado pode, além de avançar positivamente em seu processo pessoal de individuação e realização, contribuir favoravelmente para a construção de uma cultura de paz e solidariedade. Grof chega mesmo a dizer que as situações de exploração, opressão, miséria, fome, guerras e enfermidades que nossa humanidade vive são sintomas de problemas “não apenas econômicos, políticos e tecnológicos. Eles são reflexos do estado emocional, moral e espiritual da humanidade contemporânea. (…) Esses elementos destruidores e autodestrutivos na atual condição humana são uma conseqüência direta da alienação da humanidade moderna tanto de si mesma como da vida e dos valores espirituais” (1992, p. 249-250).
A antropologia sugerida por Grof me faz entender o ser humano como um sujeito complexo e transpessoal, hilotrópico (=direcionado à materialidade) e holotrópico (=direcionado à totalidade), no qual estão presentes: a racionalidade, a corporeidade, a emocionalidade e a espiritualidade perpassadas por polaridades que nos fazem nos construir na história como homo sapiens-demens (Morin, 2000, p. 59-60), em meio ao conjunto dos outros seres humanos, na coletividade, o que exige uma atenção constante à complexidade sujeito individual-sujeito coletivo. Tal construção, sempre inacabada, e, portanto, sempre propiciadora de esperança (Freire, 2000, p. 114), se faz muitas vezes entre conflitos, contradições e sofrimentos, mas comporta também o desenvolvimento com amadurecimento, integração e solidariedade. Ao usar o termo transpessoal não se pretende negar o pessoal. O termo transpessoal expressa uma concepção mais ampliada de ser humano, isto é, ele não se reduz ao seu ego construído nas culturas e nas sociedades. É isto também, mas não só isto. Compreende que a construção do humano exige o pessoal e o transpessoal. Este transpessoal significa “sair de si”, de seu ego racional, e mover-se em direção aos níveis mais profundos de si mesmo; em direção aos outros seres humanos na vida interpessoal, social e cultural; em direção à natureza, aos demais viventes e ao próprio cosmo. No limite significa abrir-se, inclusive, à perspectiva do Mistério que envolve a origem e desenvolvimento da vida. Não se trata, portanto, de negar o pessoal, mas de estar aberto ao transpessoal e assim gerar uma maior capacidade de cuidado para com a vida. Esta maneira de compreender o ser humano exige de todos os humanos, e em especial do educador, um empenho de autoconhecimento, uma vez que é no trabalho consciente de religação de suas características advindas da realidade interior e da realidade exterior que se faz à consciência com a qual se apresenta à ação no mundo e ao trabalho educativo.
A partir desta antropologia é possível, pois, pensar uma outra educação. E é importante lembrar que educação, nesta maneira de pensar, não se confunde com ciência; e por mais que necessite desta é necessário que ela, a educação, esteja atenta aos diversos aspectos da condição humana e sua educabilidade. Assim é possível pensar uma educação na/para inteireza. Esta concepção de educação não advoga abandonar a luta política no contexto da história, mas, ao contrário, defende a participação política do educador por inteiro, re-ligado e, portanto, com energia suficiente para enfrentar obstáculos, construir sentido, favorecer a partilha, encarar os conflitos e ajudar a gerar uma cultura de paz.
Elydio dos Santos Neto
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