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Em 19 de janeiro de 1965 Casteneda usou o Psylocybe pela segunda vez. Tendo adormecido muito depressa depois do consumo, seu relato é irrelevante porém, quando, mais tarde, comentando essa experiência, Don Juan faz sua primeira referência ao que pode ser considerado uma “operação mágica” de zoomorfose do corpo astral, embora o xamã acredita firmemente que a transformação em um animal é ontologicamente integral, ou seja, o ser humano transforma-se em animal de forma plena, alterando inclusive a sua anatomia física (corporal).
Dom Juan não falou sobre minha experiência… Seu único comentário foi que eu tinha adormecido depressa demais. – O único jeito de ficar acordado é tornar-se um passarinho, um grilo ou coisa parecida… É isso que lhe estou ensinando. Sou um corvo. Estou-lhe ensinando a virar corvo. Quando aprender isso, vai ficar acordado, e mover-se-á livremente… (CASTANEDA, 1968 – p 86)
Em 30 de janeiro de 1965, em sua terceira experiência com Psilocybe, Castaneda “virou corvo”.
A “transformação” foi conduzida, passo a passo por Don Juan em um procedimento de sugestões vocalizadas objetivas, simples, como alguém que dá como ordens, mas falando com o paciente em timbre voz constante, monocórdio, bem devagar, eivado de um simpático tom de persuasão.
O método lembra muito de perto a técnica de hipnose (ou, como diziam os antigos, mesmerização) * pois, tal como fazem os hipnotizadores, o xamã, depois que o aprendiz já estava sob o efeito do Psilocybe, estabeleceu um código de comunicação.
Esse código contém uma espécie de gatilho, um estímulo sensorial: uma palavra-chave, um som musical ou o ruído de um estalar dos dedos, que funciona como um sinal para que sugestão seja aceita e o teor da sugestão seja realizado.
* MESMERISMO: Palavra derivada de Mesmer, ou seja, de Franz Anton Mesmer (1734-1815), médico e magnetizador nascido na Suábia, (região administrativa da Alemanha) precursor do conceito, da teoria do magnetismo animal e de suas aplicações na medicina. Mesmerismo foi a técnica psiquiátrico-psicológica que resgatou, na cultura ocidental, o Hipnotismo como uma prática terapêutica validade pela Ciência ortodoxa, acadêmica.
No caso da “transmutação” Castaneda em corvo, Don Juan convencionou como gatilho para a realização das sugestões, uma ordem-chave para desencadear, cada etapa da transformação do aprendiz. Essa ordem era piscar os olhos: Ordenou-me que fizesse um esforço para piscar, acrescentando que, sempre que eu conseguisse piscar, estaria pronto para prosseguir. (CASTANEDA, 1968 – p 86)
O processo começa com o “desaparecimento” de todo o corpo com exceção da cabeça: …esta nunca desaparece porque é a cabeça que se transforma em corvo. (Idem, 1968 – p 86)
As pernas da ave surgem do queixo, a cauda, da base, na parte de junção com o pescoço, as asas, dos maxilares (e isso dói), o corpo, do volume da cabeça humana em si mesma (excetuando olhos, nariz, boca, testa e o alto do crânio), o bico e narinas do corvo, da boca e nariz e, finalmente, a cabeça do corvo, surge da parte superior da abóbada do crânio na até a altura da testa.
Castaneda comenta esta primeira vez em que “transformou-se em corvo” em poucas palavras que sugerem uma alteração do sentido de visão que resultou na capacidade de ver a Realidade não comum, pela prime: Dom Juan tornou-se muito grande e brilhante. Alguma coisa nele era confortadora e segura. De repente, as imagens se turvaram; perderam seus contornos e tornaram-se padrões abstratos que oscilavam por algum tempo. (Ibdem, 1968 – p 87)
O Mistério da Bolinha
Antes de abordar o episódio da Visão do Corvo, é preciso assinalar que nessa terceira experiência de Castaneda um segundo derivado da mistura do Fuminho, uma espécie um subproduto é daquela mistura é adicionada ao conteúdo do cachimbo.
Castaneda descreve o surgimento elaboração de desse subproduto, de uma forma extremamente sucinta que deixa uma lacuna frustrante em um estudo antropológico sobre a utilização de plantas psicodélicas, a botânica psiquiátrica e noética (metafísica) de uma determinada cultura xamânica.
Uma questão, à qual que Don Juan – aparentemente não dá importância – embora na única alusão que fez ao assunto o índio deixe uma pergunta sem resposta direta, mas deixando uma lacuna com ares de mistério.
Considerando que o a produção da mistura de Psilocybe é anual, porque os ingredientes devem secar e mofar durante este tempo até estarem na condição ideal de consumo, resulta que o conteúdo daquele saquinho no qual o Fuminho fica guardado para ser usado durante um ano, pode ou não deixar restos, fragmentos que, segundo Don Juan, “não prestam mais”.
Castaneda quer saber o quê fazer com esses eventuais restos quando a nova mistura, destinada ao uso no novo ano estiver devidamente preparada? Bien, se fosse um usuário do Fuminho que não tem pejo de enrolar seu cigarrinho, ele simplesmente faria o que se chama de “um fininho” para queimar na “piteira” (ou, marica). Porém, uma violação da regra do cachimbo é inconcebível para Don Juan.
Queria saber o que aconteceria se eu nunca acabasse o saco. Dom Juan disse que nada aconteceria; o fumo não exigia nada. …Perguntei-lhe o que fazia com a mistura que não fumava, mas ele não respondeu. Disse que a mistura não prestava mais, se não fosse usada dentro de um ano. Nesse ponto, tivemos uma longa discussão.
Eu queria saber se a mistura perderia suas propriedades alucinógenas, ou seu poder, depois de um ano, assim tornando necessário o ciclo anual, mas ele insistiu que a mistura não perderia seu poder em época alguma. A única coisa que acontecia, falou, era que um homem não precisaria mais dela, pois teria preparado um novo suprimento; tinha de dispor do que sobrasse da mistura velha de determinada maneira, que Dom Juan não me quis revelar… (CASTANEDA, 1968 – p 69)
No “quarto encontro” do pesquisador com o Psilocybe, esse pequeno mistério em A Erva do Diabo parece ser parcialmente elucidado. Ocorreu que o saquinho de Castaneda continha dosagem suficiente somente para mais uma sessão: Em meu saquinho, havia mistura suficiente para encher o cachimbo uma vez. (Idem, 1968 – p 87).
Quando a mistura acabou, e depois de Castaneda ter fumado a porção, Don juan executou uma curiosa operação. Virou a bolsa para o avesso e …sacudiu a poeira no pratinho com os carvões… (Ibdem). (Porque, originalmente, o cachimbo é aceso com pequenos pedaços de carvão em brasa).
Os fragmentos da mistura do Fumo, ao entrar em contato com o carvão reagiram quimicamente, sofreram combustão da qual resultou uma aglomerado em formato de uma pequena esfera, semelhante à uma bola de gude, que rolou entre os carvões.
O Xamã recolheu este pequeno objeto, colocou-o no fornilho (vazio) do cachimbo. Castaneda foi instruído a “tragar”, e isso faz supor, fumar a bolinha que tendo sido retirada de entre carvões em brasa, poderia estar em estado incandescente.
Castaneda não esclarece a natureza da substância dessa bolinha e jamais registou o diâmetro da haste daquele cachimbo.
(Vai que esse cachimbo é um cachimbo indígena monstro cuja haste á larga o suficiente para deixar passar a bolinha. Nesse caso, Castaneda teria sugado e engolido um agente alucinógeno derivado do Fumo e, portanto, derivado do Psilocybe. Este articulista, por exemplo, conhece um ou dois cidadãos perfeitamente integrados à civilização possuem cachimbos grandes feitos com madeira ou hastes de bambu com mais de 6 cm de diâmetro e usam-nos para fumar uma plantinha cujo cultivo, venda e uso são reprimidos por lei no Brasil).
O cachimbo de Dom Juan media, entre o bojo e a haste, 25 cm de comprimento.
Então, fica esclarecida a questão sobre o quê fazer, xamanicamente, com o resto da mistura de Fuminho que sobra de uma ano para outro, ainda que sejam migalhas, poeira, pó que adere naturalmente ao forro da bolsa que a contém.
Submeter os resíduos a alta temperatura – tecnicamente, fusão. Possivelmente, em uma concha de metal ou em uma pipeta, o resultado poderia ser o mesmo, aglomeração e cristalização dos fragmentos que, certamente, por sua composição molecular tendem a se ligar em uma forma esférica resultando em um composto químico psicotrópico, sintetizado de forma caseira.
Essa substância é consumida pelo usuário do Fumo, porém, Castaneda não a identifica nada suas propriedades, sua textura ou função específica no “encontro” com o Psylocybe e, em A Erva do Diabo, não há registro de nenhuma tentativa do antropólogo para arrancar do índio qualquer explicação sobre esse “aditivo”. O fato é que na sessão da bolinha consolidou-se definitivamente a identificação pessoal zoomórfica de Castaneda com o corvo.
Ligia Cabus
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