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Por Paulo Urban (*)
Publicado na Revista Planeta nº 346 / julho 2000
Predicadas pelo estranho 13, as sextas-feiras, noites de sabá, impõem maior respeito ao imaginário popular; se a noite for de lua cheia então…
A sexta-feira é 13. Muita gente tem medo dela! Seu nome sugere feitiçaria e, para muitos, sua ocorrência no calendário é prenúncio do azar. Toda sexta-feira, entretanto, acha-se associada à idéia do Sabá, como ficou conhecido a partir da época medieval o festim em que as bruxas reunidas banqueteiam em presença do Demônio. Também às sextas, à luz da lua cheia, os amaldiçoados lobisomens se transformam, e os vampiros propalam-se em vôo sedento de sangue à procura de suas vítimas.
Mas, e quanto ao maldito número 13? É o número da morte, do azar, do mau agouro, dizem alguns. Para outros, contradizendo, pode simbolizar a sorte por trazer em si as transformações, visto que o 13 representa o rompimento dos limites, a quebra dos padrões estatutários impostos pelo 12. Expliquemos melhor. O 12 expressa as coisas inteiras, os sistemas fechados e completos. Observe-se que são 12 os meses do ano, as horas do dia e da noite; também o número de deuses do Olimpo e de constelações e signos do zodíaco; e 12 são as notas musicais, tons e semitons. Já o 13 é aquele que ultrapassa a ordem conhecida das coisas, promove a revolução do novo, e se intromete em nosso mundo de modo a perturbar nossa aparente sensação de segurança, advinda da ordinária dimensão à qual estamos acostumados. Associado ao jogo, às vicissitudes da vida, igualmente à sorte e ao azar, o 13 ainda compõe o número de cartas de cada um dos 4 naipes dos baralhos comuns. E eram 12 os apóstolos presentes à última ceia de Cristo, de onde se criou a superstição medieval de que quando 13 se reúnem à mesa para comer, um em breve irá morrer.
Predicadas pelo estranho 13, as sextas-feiras, noites de sabá, impõem maior respeito ao imaginário popular; se a noite for de lua cheia então…
Na mitologia assírio-babilônica, data-se além de 8 mil anos a crença de que Isthar, a lua, tornava-se indisposta a cada plenilúnio, quando então se observava o sabattu, período de recolhimento dos homens em respeito à Grande Deusa. Veja-se que provém da antigüidade mais remota o útil conselho dado aos maridos para que estes não provoquem suas mulheres em fase pré-menstrual. Durante a indisposição de Isthar, guardava-se o sábado, que primitivamente era mensal, dia considerado nefasto, no qual não se autorizava qualquer tipo de trabalho, nem viajar ou cozinhar alimentos. Com a percepção de que Isthar apresentava fases cíclicas, crescente, cheia, minguante e nova, a cada 7 dias renovadas, a prática do sabattu estendeu-se a todas as semanas de modo a demarcar sempre o último dia da semana.
Sábado, em português, vem do latim sabbatum, que, por sua vez foi emprestado do grego sábbaton. Este, seria proveniente do hebraico sahabbat, que, etimologicamente, deriva do verbo sabat (parar). Outras fontes o extraem de seba (sete), ou o tomam como corruptela do termo sabi’at (sétimo dia). Tenhamos em conta ainda que o hebraico sabbat guarda enorme semelhança com sapatu, que em dialeto árcade primevo significava “parada, descanso”, também “sono da lua”. Nesse caso, o termo hebraico seria originário do grego, ao contrário da primeira hipótese.
Em meio às divergências semânticas, muitos acreditam que a Igreja, em sua obstinada caça às bruxas, tenha julgado conveniente escolher um nome da tradição judaica, especificamente aquele que denota o período de oração que se inicia ao pôr do sol das sextas-feiras, para nomear o conclave das feiticeiras. Agindo assim, transformaria judeus, bruxas e demais hereges, inimigos comuns da fé cristã, em gatos de um mesmo saco. Além disso, no início das perseguições, denominava-se “sinagoga” o local escondido nas florestas destinado à reunião das bruxas.
Pesquisando mais profundamente encontramos o termo grego sabbathéos, literalmente “o sabá divino”, relacionado às sabátidas, festas dedicadas a Sabácio, divindade agrícola conhecida na Trácia e na Frígia, com atributos similares aos de Dionísio, ainda que não tão popularizada quanto este. As sabátidas já ocorriam anteriormente a Moisés e ao judaísmo; e a seu deus eram consagrados o trigo e a cevada, da qual se fermentava uma bebida inebriante, servida aos presentes.
Sabácio era representado com chifres na cabeça, semelhante a Dionísio, também chamado Deus-cabrito. Pan e Príapo eram igualmente cultuados nas sabátidas, e representavam-se pela figura de faunos ou bodes, senão pelo falo que os substituía, espécie de bastão que todos traziam à reunião, invariavelmente noturna, na qual banqueteavam os convivas, sentados no chão sobre peles de animais caprinos, com as quais também se cobriam encarnando seu comportamento e imitando seus berros. Neste culto agrário, uma virgem nua, símbolo da fertilidade, em alusão à Demeter (a Mãe Terra), deitava-se sobre a mesa ritualística e recebia sobre o ventre as oferendas, geralmente o trigo e a cerveja, sendo ela própria após o banquete oferecida à divindade caprina dona da festa, sempre encarnada por um sacerdote com máscara de chifres, vestido com pele de cabra, assim como os demais presentes. Após o gozo do mestre, e enlevados pela bebida, misturavam-se todos não importando o sexo, “fecundando-se” mutuamente. Ao final da festa, semelhantemente às Bacanais, invocava-se o raio, talvez alusão ao mito dionisíaco, posto que esta divindade antes de (re)nascer da coxa de Zeus fora fulminada e esquartejada por raios dos Titãs. Também a desvirginada do altar arrancava com sua boca a cabeça de um sapo, e a cuspia ao chão, em alusão às Mênades possessas que dilaceravam os animais conforme descreveu Eurípedes de modo perturbador nas Baccantes. Estes eram os originais pagãos, cujas festas celebravam no pago, isto é, no próprio povoado, geralmente nos campos de suas comunidades.
Qual a ligação desta festa com o sabá das feiticeiras? Entendamos a questão. A Igreja, já no ano de 360, no sínodo de Elvira, admitia a existência dos poderes mágicos, que seriam decorrentes de pactos com o demônio, e negava a comunhão, mesmo à hora da morte, para os que caíssem em tal tentação. Até o século XI, a Santa Sé diferenciava os seres maléficos, devotados aos sortilégios, aos encantamentos por bonecos de cera, aos filtros e maus-olhados, das strigae, demônios femininos que sob a forma de pássaro se alimentavam de recém-nascidos. Strega, bruxa em italiano, deriva-se daí, e em português temos igualmente o termo estrige; ambos oriundos da raiz latina strix, a significar coruja, pássaro noturno ou qualquer outra ave de rapina. Um século antes, o monge Regino de Prün dizia que voar à noite com a deusa Diana não podia ser algo real, senão mera ilusão provocada pelo Demônio.
Mas foi durante o século XII que se difundiu mais rapidamente a idéia do sabá, reunião noturna das sextas-feiras, à qual compareciam as bruxas voando em suas vassouras, cavalgando seus bodes, ou mesmo transformadas sob a forma de pássaros. Para que pudessem voar, untavam seus corpos com uma poção mágica por elas preparada; e na cerimônia, iniciada à meia-noite, entregavam-se a orgias e ao Demônio.
Somente em 1250 é que alguns bispos entregam ao dominicano Étienne de Bourbon a primeira descrição do sabá. Oito anos depois iniciam-se os processos por feitiçaria, e só no ano de 1275, após várias condenações, uma primeira acusada é morta na fogueira. O próprio São Tomás de Aquino (1225-1274), expoente da escolástica, declara ser possível a união carnal com Satanás. “Tudo o que acontece por via natural, o diabo pode imitar!”, afirmou.
Em 1318, o bispo de Cahors é condenado à fogueira sob acusação de haver tramado magicamente contra o Papa João XXII, por encantamento com boneco de cera, do qual a história tem relatos semelhantes desde 2500a.C. O poeta Virgílio (70-19a.C.) também fez referência à mesma prática. Em 1398 será a vez da Universidade de Paris reforçar a tese da união sexual entre as bruxas e o demônio, e em 1424 o monge Bernardino de Siena (1380-1444) prega contra as artes mágicas em Roma. Em 1465, curioso fato, é condenado à fogueira o prior da ordem dos Servitas, dono de um bordel, acusado não de empreender qualquer tipo de negócio ilícito, mas sim porque eram súcubos (demônios sob a forma feminina) quem ele oferecia aos que visitavam sua casa de prazeres.
Até esse momento, no entanto, os processos só eventualmente levavam à pena capital. Embora houvesse campanhas da Igreja contra hereges e pagãos, nenhuma caça sistematizada às bruxas existia. Tanto é que os carmelitas, em 1474, de seu púlpito, arriscavam-se a prever o futuro durante as missas, e o diziam fazer com auxílio dos demônios. Só com a reiterada insistência de dominicanos alemães é que o Papa Inocêncio VIII, em 5 de dezembro de 1484, publica a bula Summis Desiderantes Affectibus (“Desejando com Suma Ansiedade”), que espalharia o terror pelo continente:
“…tem chegado recentemente a nossos ouvidos que em certas regiões da Alemanha setentrional […] nas dioceses de Mainz, Colônia, Trier, Salzburgo e Brêmen, muitas pessoas de ambos os sexos, esquecendo-se de sua própria salvação e apartando-se da Fé Católica, têm mantido relações com os demônios […] por meio de encantamentos, feitiços, conjuros e outras superstições malditas…”
Confirmada pelo imperador Maximiliano I, o Papa designa para executar a bula, a começar pelo país reclamante, os monges Heinrich Institor e Jacob Sprengher. Este último, deão da Universidade de Colônia, publicaria dali a dois anos, com Heinrich Kramer, prior de Salzburgo, a mais importante obra sobre demonologia da história, o temível Malleus Malleficarum (“O Martelo das Bruxas”), fonte de inspiração para todos os tratados posteriores.
O “Malleus“, código atroz contra as artes negras de magia, mais do que a bula papal, peremptoriamente abriu as portas para o rolo compressor da santa histeria em que se transformou a Inquisição. Sua intenção era pôr em prática a ordem do Êxodo, 22;17: “A feiticeira, não a deixarás com vida”.
O “Martelo das Bruxas” dividia-se em três partes. A primeira discursava aos juízes, ensinando-os a reconhecer as bruxas em seus múltiplos disfarces e atitudes. A segunda expunha todos os tipos de malefícios, classificando-os e explicando-os. A terceira regrava as formalidades para agir “legalmente” contra as bruxas, demonstrando como inquiri-las para sempre condená-las.
O processo era cruel. Levava-se ao tribunal qualquer um que fosse suspeito de feitiçaria. Bastavam três testemunhas para que juntas servissem como “prova” dos autos. Os filhos podiam entregar seus pais; os cônjuges podiam delatar-se mutuamente. Por meio de tortura obtinham-se as confissões. Os réus eram ainda submetidos às provas ordálicas; nestas, qualquer mancha escura na pele do acusado serviria como prova do pacto com o Demônio. A insensibilidade à dor em qualquer parte do corpo também era indício de feitiçaria; ademais, amarravam-se os suspeitos em cruz sobre madeiras, e os atiravam nalgum rio. Se o acusado não afundasse, estava aí a prova de que o Diabo o protegia, razão pela qual era entregue à fogueira; caso se afogasse, estaria antecipada a justiça divina.
Extraíam-se assim as mais absurdas confissões, incluindo transformações dos envolvidos em cisnes negros, gatos ou lobos; também suas sevícias trocadas com Satanás.
Na Alemanha, onde nascera o terror, os números não deixam dúvidas do empenho inquisitorial: 45 feiticeiras queimadas num só ano em Colônia; em Salzburgo, 79; 300, em 3 anos, na Província de Babemberg; quase mil em Wuerzburgo; e mais de 6.500 em Trier!
Um curioso episódio merece ser contado. Três mulheres incriminavam um homem perante o implacável Sprengher, de ele lhes ter lançado um mau-olhado, posto que, ao mesmo tempo haviam sentido um arrepio quando estava perto delas somente o tal rapaz. O acusado jurava por todos os santos ser inocente; mas em vão. Por fim, sentenciado à fogueira, sua memória clareou; disse ser mesmo verdade, pois agora se lembrava de que na hora em que lhe atribuíam o mal feito ele de fato expulsara aos chutes três gatas pardas que haviam sorrateiramente entrado em sua casa. Sprengher, meritíssimo esclarecido, compreendeu então o fato; mandou libertar o pobre homem e levou à fogueira as acusantes.
Com o terror espalhado, o fantasioso distorcia a realidade. Mulheres histéricas, convencidas de sua culpa, muitas vezes aceitavam resignadas sua condenação à fogueira. Há casos de senhoras maiores de 80 anos confessando em detalhes como haviam sido violentadas pelo demônio. Em várias cidades as escolas são fechadas, posto que serviam às crianças para que trocassem entre si conhecimentos mágicos proibidos.
Em que pese a histeria disseminada no bojo do horror da Inquisição, algo resta acima de qualquer dúvida: os relatos do sabá tomados por confissão na Alemanha, em nada diferiam dos que eram detalhados pelas bruxas suíças, francesas, italianas, espanholas ou portuguesas. Na Inglaterra, onde a forca era quem esperava os hereges, os relatos são quase idênticos. Onde quer que se prendessem as bruxas, as confissões acerca do sabá traziam curiosa coincidência, que não poderia ter sido mera obra do acaso. Se por um lado os Tribunais forçavam seus réus a mentiras e falsas confissões que os incriminassem, por outro, havia de fato uma cultura pura, não cristã, ou cristã divergente da moral católica, que nem se importara muito com a Igreja até esta resolver deitar sua rede de holocausto sobre os povos pagãos, como os cátaros albingenses e os valdenses no sul da França, por exemplo, dentre outras tantas minorias germânicas que, massacradas pela Inquisição, refugiaram-se em terras nórdicas.
Sobre o rito do sabá das feiticeiras, concluíram os Tribunais: uma bruxa servia sempre de altar. A seu lado, uma figura de madeira, com chifres, representava o bode, ou Satanás. As estriges chegavam “voando” sobre suas vassouras, isto é, com o falo em suas mãos e por entre as pernas. Havia um banquete, durante o qual corria uma poção mágica, sempre uma beberagem excitante, a qual predispunha os participantes ao sexo sem critério. Era feita então a oferenda ao Diabo, geralmente alimento e bebida; apresentava-se a hóstia negra; consagrava-se o último morto e o último nascido na comunidade, já que à Terra voltam os que dela nascem; invocava-se o raio; e por fim dilacerava-se um animal em sacrifício ao Demônio.
Ora, parece claro a qual tradição nos reportam os sabás das feiticeiras; nenhuma outra senão a pagã. Algo bem mais antigo e distante do que representa o sabbat dos hebreus. E à Igreja coube a façanha sangrenta de pôr fim a quaisquer resquícios destes rituais, e fez associar a figura até então quase apagada do Demônio às práticas consideradas heréticas. Deturpando os relatos dos que freqüentavam livremente tais cerimônias, interpretando-os como obra demoníaca, reformulou a roupagem dos mitos de fertilidade e inventou o Mal que neles nem havia.
Foram tantos os processos e tão assustador o cenário de vida montado pela Inquisição, que esta não fez senão maior milagre que o de espalhar a fé no Demônio por toda a parte, criando-O para sempre a partir da santa luta que despendeu durante séculos contra Ele. Enquanto o espírito da Renascença revelava sua lucidez e ressuscitava clássicos da filosofia platônica e aristotélica que invadiam o mundo, traduzidos pelos árabes (não cristãos, evidentemente), a religião cristã sadicamente se divertia em sua cruzada insana contra as bruxas. Numa época em que as artes progrediam, e as Universidades se firmavam, o Demônio crescia para o mundo quanto mais a Igreja lançava almas ao fogo de seu abismo.
Lentamente extinguir-se-ão as fogueiras…a última condenação teve lugar em 1793; e no México a Inquisição fecharia suas portas somente um século mais tarde.
Nem as ciências, nem a medicina ou psicologia estavam desenvolvidas durante a “caça às bruxas” de modo a impedir este fenômeno hediondo, fruto da superstição cristã.
Hoje, os tempos são outros; a Igreja perdeu a hegemonia, sofreu crises, e colheu bem os frutos que plantou. É sempre assim! E eu, sem receio de ser guardado num cinzeiro, escrevo o que bem entendo sobre o sabá das feiticeiras. Conheço até algumas amigas que se dizem bruxas; mais que isso, duas delas freqüentam as missas de domingo. Mesmo quando caem numa semana de Sexta-feira 13!
* Dr. Paulo Urban é médico psiquiatra, criador da abordagem terapêutica, a Psicoterapia do Encantamento
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