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André Correia (Conexão Pagã / @bercodepalha)
Como muitas crianças brasileiras, aprendi a rezar muito cedo. Nasci em uma família católica não praticante, ou seja, uma família que dizia crer em Deus, mas que não fazia muita questão de ir para a igreja além de casamentos, batizados e missas de sétimo dia. No entanto, algumas curvas e ladeiras mudaram a rota dessas crenças para mim. Minha mãe, após a morte do meu tio, começou a ler romances espíritas na tentativa de encontrar algum acalento para o coração triste. Meu pai, que sempre usou um crucifixo de ouro no peito, o tirou, começou a ler os mesmos romances que minha mãe e com o passar do tempo foi ler sobre budismo, meditação, Reiki, mas no fim voltou a estudar a bíblia. Hoje, no momento em que escrevo isso, nenhum dos dois estudam ou praticam nada relacionado a religião, mas ainda creem no Deus bíblico.
Mesmo eu sendo pagão, o cristianismo deles nunca me incomodou e fico feliz em dizer que o meu paganismo também nunca incomodou a eles. Minha mãe até hoje tem um pouco de medo, por mais que eu mostre, explique e convide, ela prefere respeitar de longe. É o jeito dela. Obviamente, não faz com que eu a ame menos por isso. Pelo contrário, me faz pensar que tenho que entender e exercitar o limite da fé de cada um. Amor é amor, simples assim. Foi ela quem me ensinou a rezar agradecendo antes de comer e antes de dormir. Foi ela quem me deu um medalhão enorme de São Bento para me proteger dos fantasmas que eu via, sentia e morria de medo quando era criança. Foi ela também quem jogou fora meu primeiro livro de bruxaria. Na época, fiquei triste e revoltado, mas baseada na crença dela, ela estava me protegendo. Hoje, meu deus com chifres e minha deusa do fogo a protegem também, mesmo que ela não saiba. Assim como acredito que ela reze ao Deus dela pedindo proteção para mim e minha família. Amor é amor, simples assim.
Tendo sido criado nessa tradição desde o nascimento, inevitavelmente cresci acreditando num Deus único, onipresente, onisciente e tudo mais que o pacote cristão oferece. Mas logo cedo, por volta dos 11 ou 12 anos de idade o cristianismo me abortou da sua crença e me abandonou na floresta, foi nesse momento que os deuses mais antigos me encontraram e me acolheram em seu berço de palha. Fui renascido e iniciado para uma nova crença que começava a se apresentar, onde precisei caminhar por muito tempo sozinho no escuro, mas resisti, me dediquei e eventualmente me escondi para continuar sem interferências.
Quando ouvi pela primeira vez que Deus não estava sozinho, que outros deuses e principalmente as deusas estavam ao seu lado, entendi que Ele era na verdade “Ele”, com letra maiúscula. Não era único, mas sim mais uma manifestação da divindade, somada à aquarela do universo sagrado. Note que acreditar em outros deuses não me fez descartar a existência do Deus cristão, mas me fez entender que Ele é uma manifestação divina que se aplica ao povo que busca pelo sagrado dentro das igrejas, assim como existem deuses em templos de umbanda, candomblé, hinduísmo e, obviamente, no paganismo. Ser pagão e praticante de bruxaria nunca me fez ser anticristão, talvez tenha me tornado mais reticente e defensivo com as pessoas fiéis a Cristo e ao Deus “único”, pessoas que passei a ver como agressores contra mim e minha fé, falando mentiras sem fundamentação e realizando muitos ataques.
Falar sobre tudo isso com meus pais foi muito natural, mesmo que eles não acreditassem no que eu estava descobrindo empolgadamente e querendo compartilhar com alguém. Eles me ouviam. Meu pai, mais do que minha mãe, se interessava mais em ouvir. Mas tive a sorte de ter pais que nunca impediram ou proibiram que eu lesse a respeito, estudasse ou praticasse. Como eu disse no começo, houve certa resistência da minha mãe, mas isso passou tão rápido que não renderia mais nenhum parágrafo.
Talvez a parte mais difícil para eles tenha sido quando eu falei (e ainda falo) sobre a dualidade do sagrado, do masculino e do feminino. Acredito que ainda seja difícil para eles acreditar em um deus com chifres e uma deusa mulher da tríplice chama. Apesar de soar muito natural para mim, preciso me colocar no lugar deles com empatia, fazer esse exercício que eles fizeram por mim quase três décadas atrás e entender que eles possuem crenças diferentes das minhas, e está tudo bem.
Ainda hoje, vejo neles dois símbolos muito fortes do masculino e do feminino divino, às vezes em paz e às vezes se distanciando silenciosamente, como acontece no ritmo da natureza que inspira e expira, que é sistólico e diastólico, que é cíclico. Amam e odeiam sem nunca abandonar, pois assim são as coisas, como primavera e outono, opostos que curam um ao outro, num gesto amoroso de simbiose.
Acredito que o sagrado masculino e o sagrado feminino, o deus e a deusa, sejam assim. São cores que compõem uma paleta infinita, com a qual cada pessoa escolhe pintar o divino mistério. Assim como foi para mim, podemos olhar para o pai presente ou para o pai ideal, que escuta, compreende, educa, acolhe, direciona de forma gentil ou mais dura quando necessário. Assim como também são as mães, presentes ou ideais, que acolhem com carinho, falam diretamente no coração, simbolizam força, coragem e colo. Mas que são verdadeiras leoas quando os filhotes são ameaçados.
Esses seres divinos, antigos, primitivos e modernos, na verdade, atemporais, os deuses e deusas, se manifestam magistralmente na figura dos pais e mães. Considero inclusive as figuras de pais e mães que não são suficientes, que abandonam, que erram, que se perdem. Assim como a natureza, as falhas também existem. Para sobreviver, é necessário encontrar meios. Nisso, existem pais adotivos, tios, avós, figuras mágicas nas quais podemos nos apoiar e honrá-los da mesma maneira.
Acredito que podemos continuar rezando antes de dormir e antes de comer, usando inclusive as mesmas orações que aprendemos quando éramos crianças. Mesmo que os nomes usados não remetam aos deuses da sua crença atual, mesmo que as cores sejam diferentes, o desenho pode ser o mesmo. Você ainda acessará o mesmo sagrado. No meu caso, adicionando aos meus deuses a força do amor que minha mãe dedicou a mim quando me ensinou a oração que ela acreditava ou ainda acredita que iria ou vai me proteger.
André Correia. Psicólogo atuante em clínica desde 2007, adepto da bruxaria eclética, construtor de tambores ritualísticos. Participa dos projetos Conexão Pagã e Music, Magic and Folklore. Coordenador do Círculo de Kildare e autor da obra musical Tambores Sagrados.
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