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excerto de O Ramo de Ouro
Sir James George Frazer. Trad. Waltensir Dutra.
Uma divindade de cuja vida se poderia dizer que não estava, de uma certa maneira, nem no céu nem na terra, mas pairando entre os dois, era o deus nórdico Bálder, o bom e belo filho do grande Odin, ele próprio o mais sábio, o mais dócil, o mais amado de todos os imortais. A história de sua morte, tal como é contada na segunda das Edas, a que foi escrita em prosa, é a seguinte. Certa vez Bálder teve sonhos sombrios que pareciam pressagiar sua morte. Por causa disso, os deuses realizaram um conselho e resolveram protegê-lo contra todos os perigos. Assim, a deusa Friga, sua mãe, obteve do fogo e da água, do ferro e de todos os metais e pedras da terra, das árvores, das doenças e venenos, e de todos os animais quadrúpedes, aves e insetos, o juramento de que não fariam mal a Bálder. Depois disso, ele passou a ser considerado como invulnerável, e os deuses se divertiram colocando-o no meio deles, enquanto alguns disparavam setas contra ele, outros lhe davam golpes e outros ainda lhe atiravam pedras. Nada, porém, o feria, e todos se regozijaram com isso. Só Loki, o maldoso, estava descontente e, disfarçado de velha, foi procurar Friga, a qual lhe disse que as armas dos deuses não podiam ferir Bálder porque obtivera delas o juramento de que não o atingiriam. E Loki então perguntou: “Todas as coisas juraram poupar Bálder?”, ao que Friga respondeu: “A leste do Valhalla cresce uma planta chamada visco que me pareceu demasiado jovem para que eu lhe pudesse pedir um juramento”. Com isso, Loki dirigiu-se ao lugar mencionado e arrancou o visco, levando-o para a assembléia dos deuses, onde encontrou o deus cego Hoder, de pé, fora do círculo. Perguntou-lhe, então: “Por que não atacas Bálder?”, e Hoder respondeu: “Porque não vejo onde ele está e, além disso, não tenho arma”. Loki contestou: “Faze como os outros e presta homenagem a Bálder, como todos. Eu te mostrarei onde ele está e poderás atacá-lo com este galho”. Hoder tomou o visco e o lançou contra Bálder, como Loki lhe disse. O ramo de visco atingiu Bálder e foi penetrando em sua carne; ele tombou morto. E essa foi a maior desgraça que jamais caiu sobre os deuses e os homens. Durante alguns momentos, os deuses permaneceram estarrecidos, sem fala, mas, em seguida, elevaram a voz e choraram amargamente. Levaram o corpo de Bálder para a praia, onde estava o seu navio, chamado Ringhorn, que era o maior de todos os navios. Os deuses queriam lançar o navio ao mar e incendiá-lo com o corpo de Bálder, mas o navio não se movia. Mandaram, então, buscar uma mulher gigante, chamada Hyrrockin, que veio montada num lobo e deu ao navio tal empurrão que saíram fagulhas dos roladores e toda a terra tremeu. O corpo de Bálder foi então levado e colocado numa pira funerária em seu navio. Quando sua mulher Nana viu isso, seu coração explodiu de dor, e ela morreu. Foi colocada na pira junto com o marido, e o fogo foi ateado. Também o cavalo de Bálder, com todos os arreios, foi cremado.
Na mais antiga das Edas, que é a Eda poética, a história trágica de Bálder é antes sugerida do que contada explicitamente. Entre as visões que a sibila nórdica vê e descreve na estranha profecia conhecida como a Vòluspa, há uma relacionada com o visco fatal. “Vejo”, diz ela, “o destino pairando sobre Bálder, o filho de Wotan, a vítima ensangüentada. Lá está o visco, esguio e delicado, florescendo bem acima do chão. Desse ramo, tão esbelto de se olhar, crescerá uma flecha daninha e fatídica. Hoder vai dispará-la, mas Friga, em Fenhall, chorará sobre a dor do Valhalla.” Mas, olhando mais adiante no futuro, a sibila vê descortinar-se uma visão mais brilhante de um novo céu e uma nova terra, onde os campos ainda não semeados produzirão a mancheias e todas as dores serão curadas. E então Bálder voltará para morar na bem-aventurada mansão de Odin, numa câmara mais clara do que o sol, ornada de ouro, onde os justos viverão alegremente para sempre.
Escrevendo por volta do final do século XII, o velho historiador dinamarquês Saxo Grammaticus conta a história de Bálder de uma forma que pretende ser histórica. De acordo com ele, Bálder e Hoder eram rivais pela mão de Nana, filha de Gewar, rei da Noruega. Ora, Bálder era um semideus, e o aço comum não podia penetrar seu corpo sagrado. Os dois rivais se enfrentaram numa batalha terrível, e embora Odin, Tor e os demais deuses lutassem por Bálder, ele foi derrotado e fugiu, e Hoder desposou a princesa. Mas Bálder retomou coragem e voltou a enfrentar Hoder num campo de luta. Seu desempenho foi, porém, ainda pior do que antes, pois recebeu um golpe mortal da espada mágica de Hoder, que lhe fora dada por Miming, o sátiro das florestas. Depois de agonizar durante três dias em meio ao sofrimento, Bálder morreu e foi enterrado com honras reais.
Quer tenha existido realmente ou seja apenas uma personagem mítica, Bálder era adorado na Noruega. Tinha um grande santuário em uma das baías do belo fiorde Sogne, que penetra profundamente entre as solenes montanhas norueguesas com suas sombrias florestas de pinheiros e suas altas cascatas que se dissolvem em espuma antes de chegar às águas escuras do fiorde muito abaixo. Esse santuário era chamado de bosque de Bálder. Uma cerca protegia o território sagrado e, dentro dele, havia um templo espaçoso com as imagens de muitos deuses, mas nenhum deles adorado com a devoção dedicada a Bálder. Tão grande era o respeito dos pagãos pelo lugar que ali nenhum homem podia fazer mal a outro, nem roubar seu gado, nem profanar-se com mulheres. Mas as mulheres cuidavam das imagens dos deuses no templo, aqueciam-nas com fo- gueiras, ungiam-nas com óleo e secavam-nas com panos.
Qualquer que seja o juízo formulado sobre a possibilidade de haver um núcleo histórico cercado de um envoltório mítico na lenda de Bálder, os detalhes do relato sugerem que ele pertence àquela classe de mitos que foram dramatizados no ritual ou, em outras palavras, que foram representados como cerimônias mágicas em benefício da produção dos efeitos naturais que descrevem em linguagem figurada. Um mito não é jamais tão gráfico e preciso em seus detalhes como ao se transformar nas palavras que são faladas e postas em ação pelos atores do rito sagrado. Será possível demonstrar que a história nórdica de Bálder era um desses mitos se pudermos provar que as cerimônias que se assemelham aos acontecimentos nela registrados foram representadas pelos escandinavos e por outros povos europeus. Ora, os principais incidentes do conto são dois: primeiro, o visco arrancado, e, segundo, a morte e a cremação do deus. E talvez possamos ver em ambos uma contrapartida de ritos anualmente observados, separadamente ou em conjunto, por povos de várias partes da Europa. Esses ritos serão des- critos e discutidos nos capítulos que se seguem. Vamos começar com as festas anuais dos fogos, deixando para depois o exame da questão do visco.
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