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excerto de O Ramo de Ouro
Sir James George Frazer. Trad. Waltensir Dutra.
O espetáculo das grandes mudanças por que passa anualmente a face da terra impressionou profundamente a mente dos homens, em todos os tempos, e os levou a meditar sobre as causas de tão vastas e maravilhosas transformações. Sua curiosidade não era totalmente desinteressada, pois nem mesmo o selvagem pode deixar de perceber quão íntima é a relação de sua própria vida com a vida da natureza, e como os mesmos processos que congelam o regato e despem a terra da vegetação ameaçam-no de extinção. Num certo estágio de seu desenvol- vimento, os homens parecem ter imaginado que estavam em suas mãos os meios de evitar a calamidade potencial e que podiam apressar ou retardar a marcha das estações pela arte da magia. Assim sendo, realizaram cerimônias e recitaram fórmulas mágicas para fazer a chuva cair, o sol brilhar, os animais se multiplicarem e os frutos da terra crescerem. No curso do tempo, o lento progresso do conhecimento, que dissipou tantas ilusões queridas, convenceu pelo menos a parte mais pensante da humanidade de que a alternação entre verão e inverno, primavera e outono, não era mero resultado de seus próprios ritos mágicos, mas que alguma causa mais profunda, algum poder maior operava por trás das modificações de cenário da natureza. Os homens passaram então a considerar o crescimento e a decadência da vegetação, o nascimento e a morte das criaturas vivas como efeitos do aumento ou da redução da força dos seres divinos, de deuses e deusas que nasciam e morriam, que se casavam e tinham filhos, de acordo com a configuração da vida humana.
Assim, a velha teoria mágica das estações foi substituída, ou antes, complementada, por uma teoria religiosa. Embora os homens passassem a atribuir o ciclo anual de mudanças principalmente a modificações correspondentes em suas divindades, ainda achavam que, pela observação de certos ritos mágicos, podiam ajudar o deus, que era o princípio da vida, na sua luta com o princípio contrário, da morte. Imaginaram que podiam fortalecer as suas energias decadentes e mesmo trazê-lo de volta do reino dos mortos. As cerimônias que realizavam com esse objetivo eram, em substância, uma representação dramática dos processos naturais que desejavam favorecer; é um princípio conhecido da magia que se pode produzir os efeitos desejados simplesmente pela sua imitação. E como tinham passado a explicar as flutuações do crescimento e da decadência, da reprodução e da dissolução, pelo casamento, morte e renascimento ou ressurreição dos deuses, seus dramas religiosos, ou antes, mágicos, giravam em grande medida sobre esses motivos. Mostravam a frutífera união das forças da fertilidade, a triste morte de pelo menos um dos divinos consortes e sua ressurreição cheia de alegria. Assim, a teoria religiosa fundiu-se com a prática mágica. Tal combinação é bastante comum na história. Na verdade, poucas religiões conseguiram desprender-se totalmente das velhas malhas da magia. A incoerência de agir segundo dois princípios contrários, por mais que possa ter perturbado a alma do filósofo, raramente preocupa o homem comum; na realidade, quase nunca ele chega a ter consciência disso. Seu problema é agir e não analisar os motivos da ação. Se o gênero humano tivesse sido sempre lógico e sábio, a história não seria uma longa crônica de loucuras e crimes.
Das mudanças que as estações provocam, as mais notáveis na zona temperada são as que afetam a vegetação. Embora grande, a influência das estações sobre os animais não é nem de longe tão manifesta. É natural, portanto, que, nos dramas mágicos destinados a banir o inverno e a trazer de volta a primavera, a ênfase recaísse na vegetação, e que árvores e plantas tivessem neles maior destaque do que os animais e as aves. Não obstante, os dois lados da vida, o vegetal e o animal, não estavam dissociados na mente daqueles que realizavam as cerimônias. Na verdade, eles acreditavam habitualmente que o laço entre o mundo vegetal e o mundo animal era ainda mais forte do que realmente é — por isso, combinavam com freqüência a representação dramática do renascimento das plantas a uma união, dramatizada ou real, dos sexos, com o objetivo de estimular ao mesmo tempo e pelo mesmo ato a multiplicação dos frutos, dos animais e dos homens. Para eles, o princípio da vida e da fertilidade, quer fosse animal ou vegetal, era uno e indivisível. Viver e fazer viver, comer e gerar, eram essas as necessidades primárias dos homens do passado, que continuarão sendo as necessidades primárias dos homens no futuro enquanto o mundo for mundo. Outras coisas podem enriquecer e embelezar a vida humana, mas, se tais necessidades não forem satisfeitas em primeiro lugar, a própria humanidade deixará de existir. Essas duas coisas, portanto, alimento e filhos, eram as que os homens fun- damentalmente procuravam obter com a reali- zação de ritos mágicos para regular as estações. Ao que tudo indica, em nenhum outro lugar esses ritos foram celebrados de forma mais ge- neralizada e mais solene do que nas terras que margeiam o Mediterrâneo oriental. Sob os nomes de Osíris, Tamuz, Adônis e Átis, os povos do Egito e da Ásia ocidental representavam a decadência e o renascimento anuais da vida, especialmente da vida vegetal, que personificavam como um deus que morria e voltava novamente à vida. Em nome e em detalhes, os ritos variavam de lugar para lugar; em substância, eram os mesmos. A suposta morte e a suposta ressurreição dessa divindade oriental, um deus de muitos nomes mas de natureza essencialmente una, é o tema da presente pesquisa. Tomaremos como nosso exemplo desses cultos o de Tamuz ou Adônis.
O culto de Adônis era praticado pelos povos semitas da Babilônia e da Síria, e os gregos deles o tomaram já no século VII a.C. O verdadeiro nome do deus era Tamuz; o nome de Adônis é meramente o adon semita, “senhor”, título de honra pelo qual os seus adoradores a ele se dirigiam. No texto hebraico do Velho Testamento, o mesmo nome de Adonai, talvez originalmente adoni, “meu senhor”, é aplicado muitas vezes a Jeová. Mas os gregos, compreendendo-o mal, transformaram o título de honra num nome próprio. Embora Tamuz ou seu equivalente Adônis desfrutassem de uma ampla e duradoura popularidade entre os povos semitas, há motivos para se acreditar que seu culto teve origem numa raça de sangue mais antigo e de outra língua, os sumérios, que, no alvorecer da história, habitaram a baixa planície aluvial no fundo do golfo Pérsico e criaram a civilização que foi posteriormente chamada de babilônica.
Na literatura religiosa da Babilônia, Tamuz surge como o jovem esposo ou amante de Istar, a grande deusa-mãe, a personificação das energias reprodutivas da natureza. As referências a essa ligação entre ambos no mito e no ritual são fragmentadas e obscuras, mas percebemos por elas a crença de que Tamuz morria anualmente, passando da alegre terra para o sombrio mundo subterrâneo, e que todos os anos sua amante divina viajava, em busca dele, “para a terra de onde não há retorno, para a mansão das trevas, onde o pó se acumula na porta e no ferrolho”. Durante sua ausência, a paixão do amor deixava de atuar: homens e animais esqueciam de reproduzir-se, toda a vida ficava ameaçada de extinção. Tão intimamente ligadas à deusa estavam as funções sexuais de todo o reino animal que, sem a sua presença, elas não podiam ser realizadas. Um mensageiro do grande deus Ea era, por isso, enviado para resgatar a deusa de quem tanta coisa dependia. A inflexível rainha das regiões infernais, Alatu ou Eresh-Kigal, permitia, não sem relutância, que Istar fosse aspergida com a água da vida e partisse, provavelmente em companhia de seu amante
Tamuz, para o mundo superior e que, com esse retorno, toda a natureza revivesse.
Lamentações sobre a partida de Tamuz en- contram-se em vários hinos babilónicos, que o comparam às plantas que murcham rapidamen- te.
Sua morte parece ter sido chorada anualmente, ao som da música das flautas, por homens e mulheres, no solstício do verão, no mês de Tamuz, assim chamado em sua honra. As nênias eram, ao que se supõe, cantadas junto a uma efígie do deus morto, lavada com água pura, ungida com óleo e vestida de vermelho, enquanto a fumaça do incenso se elevava no ar como que para estimular os sentidos ador- mecidos do deus com seu odor pungente e des- pertá-lo do sono da morte. Numa dessas nênias, chamada Lamento das flautas para Tamuz, ainda parecemos ouvir as vozes dos cantores, repetindo o melancólico refrão, e perceber, como uma música ao longe, as notas queixosas das flautas:
“Quando ele se vai, ela grita um lamento.
‘Ó meu filho!’ — quando ele se vai, ela grita um lamento.
‘Meu Damu!’ — quando ele se vai, ela grita um lamento.
‘Meu mago e meu preste!’ — quando ele se vai, ela grita um lamento.
Junto ao cedro brilhante, enraizado em amplo lugar,
Em Eana, no alto e embaixo, ela grita um lamento.
Como o lamento da casa pelo seu senhor, ela grita um lamento,
Como o lamento da cidade pelo seu amo, ela grita um lamento.
Seu lamento é o lamento pela erva que não cresce no canteiro,
Seu lamento é o lamento pelo grão que não cresce na espiga. Sua câmara é uma posse que não traz novas posses,
Mulher fatigada, criança cansada, esgotada.
É o lamento pelo grande rio onde árvore não cresce.
É o lamento pelo campo onde não cresceram o trigo e as ervas.
É o lamento pelo lago onde não vivem peixes.
É o lamento pelo juncal onde juncos não nascem.
É o lamento pelo bosque onde a tamarga não vinga.
É o lamento pela mata onde nenhum cipreste brota.
É o lamento pelo jardim onde não há mel nem vinhas.
É o lamento pelos prados despidos de plantas. É o lamento pelo palácio em que não há vida”.
A história trágica e os melancólicos ritos de Adônis são mais bem conhecidos pelas descrições dos autores gregos do que pelos fragmentos da literatura babilônica ou pelas breves referências do profeta Ezequiel, que viu as mulheres de Jerusalém chorarem por Tamuz no portão norte do templo. Refletida no espelho da mitologia grega, a divindade oriental surge como um belo jovem amado de Afrodite. Em sua infância, a deusa o ocultou numa arca, que confiou a Perséfone, rainha dos infernos. Mas, quando Perséfone abriu a arca e viu a beleza da criança, recusou-se a devolvê-la a Afrodite, embora a deusa do amor tivesse ido, ela própria, ao inferno para resgatar seu amado do poder do túmulo. A disputa entre as deusas do amor e da morte foi resolvida por Zeus, que determinou que Adônis devia viver parte do ano com Perséfone no mundo inferior, e com Afrodite, no mundo superior ou na terra, durante a outra parte. Finalmente, o jovem foi morto numa caçada por um javali, ou pelo ciumento Ares, que se teria transformado em javali para provocar a morte de seu rival. Amargamente chorou Afrodite o seu amado e perdido Adônis. Nessa versão do mito, a luta entre Afrodite e Perséfone pela posse de Adônis reflete claramente a luta entre Istar e Alatu na terra dos mortos, ao passo que a decisão de Zeus, de que Adônis devia passar parte do ano no mundo inferior e parte no mundo superior, é apenas uma versão grega do desaparecimento e reaparecimento anual de Tamuz.
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