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Alguma coisa vaga e ainda inexplicável leva o homem brasileiro a pensar que somos todos europeus, surgimos com Cabral e só temos contas a prestar à tradição e à cultura européias. Quando muito, devemos urna ou outra vela a este ou aquele orixá e, portanto, à África. Aos índios, por sua vez devemos algumas palavras — e já é muito.
Dessa forma, pouco ou nada nos importa o que foi e como foi o homem que aqui viveu antes da chegada dos que verdadeiramente nos interessam — isto é, os europeus. Assim, quem quer saber como viveu o homem pré-histórico brasileiro, anterior ao próprio índio? Quem se importa em saber até mesmo que este homem existiu e que até‚ hoje podemos encontrar centenas de pontos, espalhados pelo País, no quais ele deixou os sinais de sua passagem? Quem quer saber como, por que e quando este homem desapareceu?
Sem dúvida, existem os que querem saber. Mas mesmo esses empacam diante de um problema: um certo preconceito científico, se é que podemos chama-lo assim, que estuda o homem apenas a partir de seu surgimento no Velho Mundo, a Europa e deixa inteiramente de lado o homem americano.
Assim, a ciência conhece bem — em termos — quando o homem atual surgiu na Europa, com o chamado homem de Cro-Magnon, há cerca de quarenta mil anos. Mas essa mesma ciência praticamente nada sabe sobre o homem na África , na Asia, na América. Clark Howell, um antropólogo americano, explica bem este problema em O Homem Pré-Histórico:
“Grande parte do trabalho dos paleoantropólogos, referente ao período entre os anos 35.000 e 10.000 antes de Cristo, foi feita na Europa. Como consequencia, sabemos muita coisa sobre um grupo de homens que ali viveu durante esses anos , e quase nada sobre os que viveram nos outros lugares.
Sabe-se perfeitamente que o resto do mundo era também ocupado. A Africa estava cheia de gente, os antepassados dos atuais bosquimanos; no entanto, os negros atuais , pelo que se sabe, não viviam ali. Quem são esses negros e de onde provieram não se sabe, assim como não se conhece nenhum ancestral dos povos mongolóides. Na América do Norte e, mais tarde, a do Sul, foram invadidas por homens pela primeira vez. Contudo, não possuímos nenhuma investigação detalhada a seu respeito, nem sobre seu estabelecimento.”
É claro, isso se repete também aqui, no Brasil. Ao contrário do que muitos pensam, os índios não foram os primeiros habitantes do País: antes deles, um povo pré-histórico aqui viveu, um povo hoje simplesmente chamado de homens do sambaqui. Básicamente, um sambaqui é um depósito de refugos, “lata de lixo dos pré-históricos brasileiros”, geralmente constituido de ossos, conchas e resíduos de toda espécie, e que pode ser encontrado em praticamente todo o nosso litoral. Exatamente por isso o ancestral do homem brasileiro é chamado de homem do sambaqui, pois ‚ nesses jazigos que antropólogos, arqueólogos e etnólogos se baseiam para descobrir as condições de vida dos primeiros habitantes deste país.
Aparentemente, esses sambaquis são apenas depósitos de conchas, mas existem dois tipos de depósitos: os que oferecem interesse pré-histórico, artificiais, obras do homern, e os naturais, sem interesse antropológico. Apenas os primeiros são chamados de sambaquis — o que provávelmente quer dizer “monte de conchas.”
Normalmente, esses montes são formados por conchas de moluscos, maritimos ou terrestres, ostras e berbigões, e estão misturados principalmente com instrumentos de ossos e pedras, e esqueletos ou parte de esqueletos de homens e animais.
Em termos físicos, já se definiu que o homem pré-histórico brasileiro era baixo, moreno-pardo, quase um indivíduo da raça amarela. Não domesticava qualquer tipo de animal, nem mesmo o cão — coisa que o índio faz. Também não usava o arco e a flecha ou qualquer arma propulsora. Vivia principalmente da coleta e da pesca, raramente da caça.
Até hoje não foi encontrado nenhum vestígio de habitantes nos sambaquis Assim, esses monumentos — se ‚ que podemos chama-los assim — não devem ter servido de moradia. Provávelmente, a povoação ficava ao lado, pouco distante. O homem do sambaqui devia habitar cabanas ou choças muito grosseiras, mas que o abrigassem da umidade e dos mosquitos.
Com isso, pode-se dizer que o sambaqui era um centro social rnúltiplo, local de reuniões coletiva, grande cozinha e sala-de-estar do clã , monumento totêmico do pré-homem americano, cuja localização não se fazia ao acaso, mas conforme certas condições impostas até — ou principalmente — por fatores mágicos. As alegrias e as tristezas coletivas ali se comemoravam, os ritos mágicos ali se procediam, como nas cavernas magdalenenses européias ou, posteriormente, nos imensos templos e nas vastas tumbas do Egito e da Mesopotamia.
O homem do sambaqui, primeiro habitante deste país — e seria maravilhoso talvez saber que nome davam a esta terra — , provavelmente foi esmagado por grupos de cultura superior à sua, grupos que aqui chegaram à milênios após , e que quase certamente são de origem siberiana, polinésia ou asiatica.
E, assim como esses grupo invasores derarn origem a várias tribos ainda encontráveis, o homem do sambaqui também deu origem a grupos indígenas. Há , inclusive urn fato que pode comprovar esta tese: os botocudos, hoje extintos, formavam a única tribo que era hostilizada por todas as outras nações indigenas encontradas pelos portugueses, no século 16. Eram chamados “tapuias”, ou seja, “os inimigos”, e formavam o agrupamento indigena mais atrasado de todo o País.
Outro fato que pode confirmar a tese: os crânios dos botocudos têm caracteristicas comuns aos dos homens do sambaqui. Assim, é bastante forte o indício de que teriam sido os últimos descendentes do nosso ancestral. Os botocudos, no entanto, assim como os xetás — quase certamente também da mesma linhagem — , desapareceram há cerca de cinquenta anos, e, como diz o historiador e antropólogo Paulo Duarte, “perdemos com isso os últimos contatos com a nossa pré-história”.
Mas se a antropologia e a arqueologia brasileira penosamente concordam que muita coisa se perdeu — e continua se perdendo, diáriamente, seja com a destruição de locais que guardam restos de culturas pré-históricas, seja com a destruição do que resta , uma escritora paulistana , ao contrário, tentou reviver , ficcionalmente, como teria sido o dia-a-dia deste homem nebuloso e desconhecido, parte do nosso mais longínquo passado.
Segundo Stella Carr — autora de O Homem do Sambaqui — , o maior problema que enfrentou ao escrever o livro foi o da linguagem: esse povo do passado não devia ter uma linguagem como a nossa, substantivada, que tem nome para as coisas, objetos, criações ou fenomenos da natureza. Este povo ainda mais rudimentar que o índio não tinha, portanto, o pensamento histórico, a memória cultural que hoje assalta qualquer criança: ela, assim que aprende a falar, é ensinada a repetir que o “olho branco da noite” chama-se, ria verdade, Lua. Isso antes mesmo que essa criança, digamos, possa sentir, incorporar, descobrir com os olhos e a emoção o que aquele “olho branco” representa. Ou seja: é mais importante repetir monótonamente “aquilo é a Lua” do que sentir, saber a Lua.
Para fugir disso, desse fascismo da linguagem — “a linguagem é fascista” diz Roland Barthers — , Stella Carr tentou “descrever as coisas como se não soubesse o que são elas ” . Me ví , então , quase como doida , cheirando as coisas , tocando , lambendo , tornei-me de novo inculta . Sabia que “para realizar o pensamento primitivo em termos de literatura eu tinha que lutar contra as palavras e não com as palavras. Usando uma câmara imaginária e focalizando a cena, aparecem em meu quadro uma figueira e um tapir. Pois bem. Como é uma figueira , se tivermos que dispensar o nome — figueira e apenas descreve-la ? Como faria o homem primitivo ? Como é um tapir , para o homem para quem esse nome nada representa ? Ora, eu nunca vira um tapir. E uma verdade desabou sobre mim : nós estamos tão aprisionados nas palavras que esquecemos a realidade ou talvez prescindamos dela. E então veio um aprendizado estranho e fascinante — aprender a “ver” de novo a partir da própria realidade. Veio a tentativa de descobrir as coisas, como pela primeira vez no mundo: alpalpando , cheirando , redescobrindo cada forma, cada cor”
Paulo Duarte, que faz a apresentação do romance, lembra que “são poucos os escritores que têm a indispensável imaginação para se internarem nessa selva escura, nesse campo maravilhoso, mas de dificil penetração, que é a arqueologia pré-histórica.”
Stella Carr, no entanto, conseguiu isso: há algo de mágico, de irreal em seu livro, especialmerite para os que se interessam pe1o passado da humanidade, não com a preocupação de museu mas sim com a de saber de onde vêm mitos que carregarnos até hoje — nós mesmos, homens do final do século vinte e ditos civilizados. Este O Homem do Sambaqui, assim, é a transposição , quase em ritmo cinematográfico, do que a antropologia e a arqueologia já descobriram sobre esse povo milenar.
Lendo o romance, descobrimos e — diria mesmo — quase convivemos com um antepassado nosso, um homem que aqui viveu durante cerca de sete, talvez dez mil anos, um homem que, exatamente como ocorre com o índio hoje, provavelmente foi destruído quando entrou em contato com povos de uma cultura mais desenvolvida — leia-se: quando entrou em contato com um povo que tinha armas mais mortíferas, exatamente como ocorre hoje.
Enquanto isso, nós, que fazemos parte de uma civilização surgida há sómente três séculos — a partir do surgimento da indústria , acreditamos que somos os melhores os mais cultos os mais desenvolvidos, os mais tudo entre os homens que já passaram por este planeta. Exatamente por isto, pouco nos importa os homens que não vivem ou viveram como nós, sem leis, horários , gravatas, automóveis , máquinas e cheques . Exatamente por nos considerarmos superiores, dedicamos apenas um grande desdém a esses povos tão selvagens — e acreditamos que, nós sim, jamais terernos um fim ; nossas tradições e crenças, nossa barbarie e civilização existirão para todo o sempre.
Como escreveu David Brower, um dos fundadores do movimento ecológico americano:
“Peguemos os seis dias da Gênese como imagem para representar o que, na reatidade se passou em cerca de quatro bilhões e meio de anos. Um dia equivale , portanto , a cerca de 660 milhões de anos. Nosso planeta nasceu numa segunda-feira, à zero hora.”
O homem só surge “três minutos antes da meia-noite, no domingo seguinte. Um quarto de segundos antes da meia-noite, Cristo nasce. A um quadragésimo de segundos antes da meia-noite, começa a Revolução Industrial. Pois bem “, conclui Brower, “apesar disso, estamos rodeados de gente que acredita que aquilo que eles fazem hoje um quadragésimo de segundo pode durar indefinidamente ”
Provávelmente — como todos os povos não-civilizados, e apenas eles — os homens do sambaqui sabiam que também desapareceriam, com suas conchas, suas pedras polidas, seus totens, sua vida dura e livre. Stella Carr termina seu livro exatamente com este fato histórico mas triste: após o encontro com um povo mais desenvoivido — os índios — todos os homens que formavam o povo do concheiro desapareceram, e “na aldeia da praia não havia ninguém mais que enterrasse os corpos que ficararn caídos ao longo do concheiro. Mas o tempo foi jogando devagar uma fina camada sobre aquele povo que era vivo, que era gente. E o tempo foi cobrindo tudo. E lá em baixo, até agora, no meio do concheiro estão eles. Todos eles. Tagima, Kaúma, Karincai, Ua, Kotia-Kotiatí, dois irmãos iguais. Todos. Os homens de pena sobreviveram. Durante muito e muito tempo, os homens de pena foram os donos da terra.
Até que um dia, das aguas bravas, vieram os homens de pano. . .
Historiador, antropólogo, jornalista ‚ político, Paulo Duarte fundou o Instituto de PréHistória da Universidade de São Paulo até ser afastado do cargo por um ato institucional. Duas vezes exilado, pôde ainda escrever !ivros como O Sambaqui Visto Através de Alguns Sambaquis e Fontes Brasileiras de Pesquisa Pré-Histórica, onde expõe o que pensa e o que descobriu em relação ao homem primitivo brasileiro.
Da publicação dos seus últimos livros sohre o homem pré-histórico brasileiro, há cerca de dez anos até hoje , alguma coisa se modificou sobre este mistério ?
A incógnita continua a mesma. 0 que se sabe ‚ que o homem do sambaqui, o homem pré-histórico brasileiro , pertence ao neolítico e tem a cultura do neolitico. Sua cultura, então, era a cuItura dessa época: ele tinha determinados conceitos a respeito dos principais fenomenos da natureza e tinha uma mitologia semelhante à do índio.
E os restos deixados por essa cultura, os chamados sambaquis , são respeitados pelo homem brasileiro atua!?
Não. A destruição é sistemática. A última intervenção que eu tive foi quando cheguei a pedir à Justiça que me ajudasse contra uma organização criada perto de Iguape, se não me engano por um parente ou irmão de Laudo Natel. Eu intervim nisso e foi a última vez porque logo depois passei esse trabalho para o professor Passos que foi o diretor que me substituiu no Instituto de pré-História. Eu sempre fui muito rigoroso nessa questão da sustentação dos sambaquis e das pesquisas feitas nos sambaquis.
Mas qual é o interesse em se destruir um sitio com tão grande interesse arqueológico ?
O sambaqui é lucrativo. Ele é formado principalmente por conchas fósseis e a concha serve para várias coisas, em termos industriais. Por exempio: para a alimeritação de aves, para fazer a chamada farinha de sambaqui, muito procurada pela indústria. Como era fácil pegar, já que estava à flor da terra, nãa era preciso escavação alguma; as pessoas vinham, tiravam o que queriam e destruíam o sambaqui. Usaram também muito sambaqui para calçar estradas colocavam uma camada de sambaqui e punham terra por cima.
Qual seria a idade máxima de um homem do sambaqui, segundo seus estudos?
O máximo que eu encontrei em sambaqui brasileiro foi seis mil anos. E depois que encerrei minhas pesquisas não li nada que viesse a aumentar esse número de anos. Mas, certamente, há os que afimam que o homem pré-histórico brasileiro chegou a viver há cerca de vinte mil anos . É claro que existem os que querem trazer para o Brasil a primazia de ter tido o primeiro homem americano. Mas não aceito isso: não se pode confundir ciência com comércio, com patriotismo.
Um sambaqui costuma ter um tarnanho comum , igual a todos?
Não. Podem ser razoávelmente pequenos como podem ser verdadeiras montanhas, como os de Santa Catarina. Nesse caso, esses enormes sambaquis são como que um retrato de séculos de gerações de homens do cocheiro.
Os indios também chegaram a usar esses sambaqui?
Ah, sim. Mas apenas pegaram o sambaqui já abandonado. Eles usavarn aquilo para pescar, em geral para se abastecer. Ficavam ali durante o tempo ern que podiam pescar e depois voltavam para suas habitações.De certa forma, o índio pode ser visto como um sucessor do homem do sambaqui. Possivelmente existem tribos que são descendentes deste homem pré-histórico brasileiro. Mas o índio é bem mais adiantado.
Este homem pré-histórico brasileiro chegou a deixar pinturas em cavernas?
Sim, sim. Infelizmente, no entanto, essas pinturas não são muito respeitadas: o vandalismo, aqui, predomina não só na politica. Além disso, a maioria dos sinais deixados não foram ainda traduzidos. Nessas pinturas rupestres eles desenharam animais, homens e sinais que certamente são uma tentativa de comunicação . Existem cruzes, inclusive, entre esses símbolos . Claro nada têm a ver com o cristianismo; a cruz é um símbolo bem anterior a Cristo.
O homem pré-histórico brasileiro era pacífico ?
Quanto mais atrasado ‚ um grupo humano, mais pacífico ele é. Quer dizer, agem como os animais: matam para se defender ou para se alimentar. Matar por esporte, só mesmo o chamado homem civilizado, que introduziu isso e chegou a ensinar esse comportamento a animais: os cães, por exemplo. Existem cães adestrados para caçar e matar.
Quando desapareceu o homem do sambaqui ?
Desapareceu inteiramente um pouco antes da chegada dos portugueses. Sem dúvida, outros europeus estiveram aqui antes de Cabral, viajantes que se perderam no Atlantico ou mesmo os que vinham aqui deliberadamente para caçar e escravizar índios. Mas mesmo esses não chegaram a ter qualquer contato com o homem do sambaqui. Provavelmente, os últimos descendentes do homem pré-histórico brasileiro foram duas tribos, os xetás e os botocudos, que formavam as tribos mais atrasadas do Brasil e que foram inteiramente dizimados pelo homem branco e chamado civilizado neste nosso século. Dessa forma, o último contato que poderiamos ter com a nossa pré-história está perdido.
lrremediavelmente. . .
Extraido de um texto de Marco Antonio de Carvalho – 1980
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