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Bruxaria e Paganismo

O controle mágico das condições atmosféricas

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excerto de O Ramo de Ouro
Sir James George Frazer.  Trad. Waltensir Dutra.

O leitor paciente talvez se recorde de que fomos levados a mergulhar no labirinto da magia por uma análise dos dois tipos diferentes de deus- homem, os quais podem ser distinguidos como o religioso e o mágico, respectivamente. No primeiro, um ser de uma ordem diferente do homem e a ele superior encarnase, por um período longo ou curto, num corpo humano, manifestando seu poder e sua sabedoria sobre-humanos através de milagres operados e profecias proferidas através do tabernáculo corpóreo que se dignou eleger para domicílio. A esse tipo de deus-homem podemos chamar de inspirado ou encarnado. Nele, o corpo humano é simplesmente o frágil recipiente terrestre que um espirito divino e imortal preenche. Por outro lado, o deus-homem do tipo mágico é apenas um homem que dispõe, em graus excepcionalmente elevados, de poderes que a maioria de seus semelhantes se atribuem em menor escala. Na sociedade primitiva, dificilmente haverá alguém que não pratique a magia. Assim, ao passo que o deus-homem do primeiro tipo, o inspirado, recebe sua divindade de um ser divino que se dignou a ocultar seu brilho celestial por trás de uma máscara opaca de molde terreno, o deus- homem do segundo tipo tira seu poder extraordinário de uma certa simpatia física com a natureza. Ele não é um mero receptáculo de um espírito divino. Todo o seu ser, corpo e alma, está em sintonia tão delicada com a harmonia do mun- do que um toque de sua mão ou um movimento de sua cabeça podem provocar uma vibração que percorre a trama universal das coisas; e, inversamente, seu organismo divino é agudamente sensível a modificações do ambiente tão leves e sutis que deixariam os mortais comuns insensíveis. Mas o limite entre esses dois tipos de deus-homem, por mais que o fixemos com exatidão em teoria, raramente pode ser traçado com precisão na prática, e, nos parágrafos que seguem, não insistirei em tal distinção.

Vimos que, na prática, a arte da magia tanto pode ser   usada   para   beneficiar   pessoas   como comunidades inteiras, e que, conforme tenha uma ou outra finalidade, pode ser chamada de magia privada ou magia pública. Além disso, observamos que o mágico público ocupa uma posição de grande influência, da qual, se for prudente e capaz, pode avançar, passo a passo, até a dignidade de chefe ou de rei. Assim, o exame da magia pública nos leva a compreender a realeza primitiva, pois, na sociedade selvagem e bárbara, surgem muitos chefes e reis que devem sua autoridade, em grande parte, à sua reputação como magos.

Entre as finalidades de utilidade pública que a magia pode alcançar, a mais importante é o suprimento adequado de alimentos. Os fornecedores de alimentos — os caçadores, os pescadores, os agricultores — recorrem todos a práticas mágicas na realização de sua tarefa, como indivíduos privados, em benefício próprio. Grande progresso foi registrado, porém, quando uma classe especial de mágicos foi instituída; quando, em outras palavras, um certo número de homens foi isolado com o objetivo expresso de favorecer toda a comunidade com a sua habilidade, fosse ela dirigida para a cura de enfermidades, para a previsão do futuro, para o controle das condições atmosféricas ou qualquer outro objetivo de utilidade geral.

O controle mágico da chuva

Entre as atribuições assumidas pelo mago público em benefício da tribo, uma das mais importantes é o controle do tempo, e especialmente a de ensejar uma precipitação pluviomé-trica adequada. A água é o primeiro elemento essencial da vida e, na maioria dos países, o suprimento de água depende das chuvas. Sem a chuva, a vegetação seca, os animais e homens definham e morrem. Por isso, nas comunidades selvagens o fazedor de chuva é personagem muito importante, existindo mesmo, algumas vezes, uma classe especial de magos cuja finalidade é regular a precipitação das águas do céu. Os métodos pelos quais eles procuram rea- lizar sua incumbência baseiam-se comumente, embora nem sempre, no princípio da magia ho- meopática ou imitativa. Se querem fazer chover, simulam a chuva espargindo água ou imitando nuvens; se o seu objetivo é sustar a chuva e provocar a seca, evitam a água e recorrem ao calor e ao fogo com o objetivo de secar a umidade demasiado abundante. Essas tentativas de modo algum se limitam, como poderia imaginar o leitor instruído, aos aborígines nus daquelas áreas escaldantes como a Austrália central e certas partes da África oriental e meridional onde é freqüente o sol calcinar, sob um céu azul e límpido, a terra hiante e sedenta. Elas são, ou costumavam ser, bastante comuns entre pessoas aparentemente civilizadas nos climas úmidos da Europa.

Quando as chuvas não chegam na estação adequada, o povo da Angoniland central acorre ao chamado “templo da chuva”. Arrancam a grama e o chefe derrama cerveja num pote, que é enterrado no chão, ao mesmo tempo em que diz: “Senhor  Chauta,  endureceste  teu  coração  para conosco, que te fizemos nós? Devemos realmente perecer. Dá aos nossos filhos a chuva, eis aí a cerveja que te trouxemos”. Em seguida, todos bebem da cerveja restante, que é dada a provar até mesmo às crianças. Arrancam, depois, ramos de árvores, e dançam e cantam pedindo chuva. Quando retornam à aldeia, encontram uma vasilha com água colocada à porta por uma velha; mergulham nela os ramos e os sacodem para os céus, de modo a espalhar as gotas. Depois disso, a chuva certamente virá, em nuvens pesadas. Podemos ver, nessas práticas, uma combinação da religião com a magia, pois, enquanto a aspersão de gotas d’água com os ramos é uma cerimônia puramente mágica, a oração pedindo chuva e a oferenda de cerveja são ritos puramente reli- giosos. No Laos, a festa do Ano-Novo é come- morada em meados de abril e dura três dias. As pessoas se reúnem nos pagodes, que são iluminados e decorados com flores. Os monges budistas realizam certas cerimônias e, quando chegam às orações pela fertilidade da terra, os fiéis jogam água em pequenos furos no chão do templo, como símbolo da chuva que esperam que Buda envie sobre os arrozais no devido tempo.

É interessante observar que, quando se deseja um resultado contrário, a lógica primitiva faz com que o feiticeiro do tempo observe regras de conduta exatamente opostas. Na ilha tropical de Java, onde a rica vegetação atesta a abundância das chuvas, as cerimônias para fazer chover são raras, o que não ocorre com as que visam sustar a chuva. Quando  alguém  vai  dar  uma  festa  na  estação chuvosa e convidou muitas pessoas, procura um feiticeiro do tempo e lhe pede que “faça subir as nuvens que possam estar baixando”. Se o feiticeiro concorda em exercer seus poderes profissionais, começa por se comportar segundo certas regras, tão logo seu cliente se afasta. Deve observar jejum, ficar sem beber ou tomar banho; o pouco que come deve ser seco, e, em hipótese alguma, pode entrar em contato com a água. O dono da festa, por sua vez, bem como seus criados, de ambos os sexos, não devem lavar roupas nem tomar banho enquanto durar a festa e são obrigados a respeitar, durante toda a sua duração, a mais rigorosa castidade. O feiticeiro senta-se numa esteira nova em seu quarto e, à frente de uma pequena lâmpada de azeite, profere, pouco antes de a festa começar, a seguinte oração ou fórmula mágica; “Avô e avó Sroekoel” (o nome parece escolhido ao acaso; por vezes, são usados outros), “volta para a tua terra. Akkemat é a tua terra. Põe de lado tua barrica de água, fecha-a bem fechada para que não caia nenhuma gota”. Enquanto murmura essa oração, o feiticeiro olha para cima, queimando incenso durante todo o tempo.

No sudeste da Europa, são observadas, atual- mente, cerimônias de fazer chover que se baseiam na mesma lógica das mencionadas anteriormente. Entre os gregos da Tessália e da Macedónia, por exemplo, quando a seca dura por muito tempo, é hábito mandar uma procissão de crianças dar volta aos poços e fontes da vizinhança. À frente caminha uma menina adornada de flores, e suas companheiras a encharcam de água a cada parada, ao mesmo tempo em que cantam uma invocação. Da mesma forma em Poona, na Índia, quando há necessidade de chuva, os rapazes vestem um de seus companheiros apenas com folhas e dão-lhe o nome de rei da chuva (Mrüj raja). Dirigem-se então a todas as casas da aldeia, cujo dono, ou sua mulher, asperge água sobre o rei da chuva, dando ao animado grupo alimentos de vários tipos. Quando terminam de visitar todas as casas, despem o rei da chuva de sua vestimenta de folhas e banqueteiam-se com os alimentos ganhos.

Há um modo totalmente diferente de provocar chuva, a que se recorre em casos extremos, quando a seca é muito prolongada e a paciência é curta. Nessas ocasiões, abandonam-se totalmente os processos da magia imitativa e, demasiado irritadas para desperdiçar o fôlego em orações, as pessoas buscam, com ameaças, maldições e até mesmo com a simples força física, arrancar as águas do céu do ser sobrenatural que, por assim dizer, lhes cortou o abastecimento.

Os chineses são peritos na arte de tomar de assalto o reino dos céus. Assim, quando desejam chuva, fazem um enorme dragão de papel ou de madeira para representar o deus da chuva e o levam em procissão. Se não chover, o dragão é amaldiçoado e destruído. Em outras ocasiões, ameaçam e espancam o deus se ele não fizer chover; por vezes, privam-no publicamente da condição divina. Por outro lado, se a desejada chuva cai, o deus é promovido a uma dignidade superior, por um decreto imperial. Mais ou menos no ano de 1710, a ilha de Tsong-ming, que pertence à província de Nanquim, foi assolada por uma seca. O vice-rei da província, depois que as habituais tentativas de comover o coração da divindade local com a queima de incenso mostraram-se inúteis, mandou dizer-lhe que, se não chovesse até determinado dia, ela seria expulsa da cidade e o seu templo seria arrasado. A ameaça não surtiu efeito junto à teimosa divindade; o dia designado chegou e passou,  e  não  choveu.  Indignado,  o  vice-rei proibiu que o povo fizesse novas oferendas no santuário do deus insensível e mandou fechar e selar as portas do templo. Isso produziu, sem demora, o efeito desejado. Suspensas as suas fontes de abastecimento, o ídolo não teve outra solução senão render-se. A chuva caiu dentro de poucos dias, e o deus voltou a gozar do afeto de seus fiéis.

Como outros povos, os gregos e os romanos procuravam conseguir a chuva pela mágica quando orações e procissões não surtiam efeito. Os atenienses sacrificavam carne cozida, e não assada, às Estações, implorando-lhes que evi- tassem a seca e o calor excessivo, promovendo um tempo moderado e fazendo chover no devido momento. É um exemplo interessante da combinação de feitiçaria com religião, do sacri- fício com a magia. Os atenienses achavam vaga- mente que a água do recipiente seria transmi- tida, pela carne cozida, aos deuses e em seguida mandada de volta por eles na forma de chuva. Com o mesmo espírito, os prudentes gregos estabeleceram o costume de derramar mel, mas nunca vinho, nos altares do deus Sol, observando, com muita razão, como era con- veniente que um deus, do qual tanta coisa de- pendia, se mantivesse rigorosamente sóbrio.

Tal como o mágico pensa que pode fazer chover, assim também imagina que pode fazer com que o sol brilhe e que pode apressar ou retardar seu poente. Quando ocorria um eclipse, os ojibwas imaginavam que o sol estava sendo extinto. Por isso,  lançavam  aos  ares  flechas  com  pontas incendiadas, esperando com isso reacender a sua luz agonizante. Os sencis do leste do Peru também lançavam flechas ardentes ao sol durante um eclipse, mas, ao que tudo indica, faziam-no não tanto para reacender a sua luz, mas para expulsar um animal selvagem que imaginavam estar em luta com o astro. Por vezes, o modo de fazer com que o sol brilhe é o inverso do sistema usado para fazer chover. Assim, os habitantes de Timor sacrificam ao sol uma vítima branca ou vermelha, e uma vítima negra à chuva. Alguns dos nativos da Nova Caledônia afogam um esqueleto para ter chuva, mas o queimam para fazer brilhar o sol.

Quando a névoa se tornava muito densa nas sierras do Peru, as índias costumavam sacudir barulhentamente os ornamentos de prata e co- bre que usavam no peito e sopravam contra a névoa, esperando com isso dispersá-la e fazer com que o sol brilhasse através dela. Outra maneira de produzir o mesmo efeito era queimar sal ou espalhar cinzas no ar. Jerônimo de Praga, viajando entre os pagãos lituanos em princípios do século XV, encontrou uma tribo que adorava o sol e venerava um grande martelo de ferro. Os sacerdotes lhe disseram que certa vez o sol desaparecera por vários meses porque um poderoso rei o havia encerrado numa torre alta e fortificada; mas os signos do zodíaco haviam arrebentado a torre com aquele martelo e libertado o sol. Por isso adoravam o martelo.

Os magos como reis

Os exemplos acima podem ser suficientes para nos convencer de que, em muitas terras e entre muitas raças, a magia teve pretensões de controlar as grandes forças da natureza para o bem do homem. Se assim foi, os praticantes dessa arte devem ter sido, necessariamente, personagens importantes e influentes em qualquer sociedade que tenha tido fé em suas extravagantes pretensões, e não é de surpreen- der que, em virtude da reputação de que des- frutavam e da veneração que inspiravam, algu- mas dessas personagens tenham atingido as mais altas posições de autoridade sobre seus crédulos semelhantes. Na verdade, os magos parecem ter se transformado, em muitos casos, em chefes e reis.

Na África, as evidências da transformação de mágicos em reis, e particularmente dos fei- ticeiros da chuva, são relativamente abundantes. Assim, entre os wambugwes, povo bantu da África oriental, a forma original de governo era a república familiar, mas o enorme poder dos feiticeiros, transmitido hereditariamente, os elevou sem demora à condição de pequenos senhores ou chefes. Dos três chefes que viviam no país em 1894, dois eram muito temidos como magos, e a riqueza que possuíam em rebanhos foi quase totalmente recebida como presentes dados em retribuição a serviços prestados como magos. Sua arte principal era a de fazer chover. Diz-se dos chefes dos ata-turus, outro povo da África oriental, que são apenas feiticeiros, sem qualquer poder político. E entre os wagogos, da Africa oriental alemã, o principal poder dos chefes, ao que consta, vem da sua arte de fazer chover. Se um chefe não puder fazer chover por si mesmo, deve então conseguir chuva com algum conhecedor da arte. Na poderosa nação massai, da mesma região, os curandeiros são por vezes os chefes, e o supremo chefe dessa raça é, quase invariavelmente, um poderoso curandeiro. Esses laibon, como são chamados, são ao mesmo tempo sacerdotes e médicos, hábeis na interpretação dos augúrios e dos sonhos, em afastar a má sorte e em fazer chover. O chefe ou curandeiro supremo, que tem sido chamado de papa dos massais, não só deve fazer chover como também repelir e destruir os inimigos em guerra com seu povo por meio de suas artes mágicas.

Em muitas outras partes do mundo, os reis tinham a incumbência de regular o curso da natureza em benefício de seu povo e eram pu- nidos se não o fizessem. Parece que os citas costumavam pôr a ferros o seu rei quando os alimentos escasseavam. No Egito antigo, os reis sagrados eram responsabilizados pelas más colheitas, mas os animais sagrados também partilhavam da responsabilidade pelo curso da natureza. Quando a peste e outras calamidades assolavam a terra, em conseqüência de uma seca prolongada e rigorosa, os sacerdotes agar- ravam os animais à noite e os ameaçavam, mas se o mal não cedesse, abatiam-nos. Na ilha de coral Nue, ou ilha Selvagem, no sul do Pacífico, houve outrora uma linhagem de reis. Mas, como eram também sumos sacerdotes, devendo, portanto, promover a abundância de alimentos, o povo contra eles se irritava em épocas de escassez, e os matava, até que, tendo sido mortos um após outro, não havia mais ninguém para ser rei e a monarquia chegou ao fim. Os antigos autores chineses nos contam que, na Coréia, sempre que chovia demais ou de menos e as plantações não amadureciam, a culpa era atribuída ao rei. Alguns coreanos eram a favor da deposição do rei, outros, da sua execução. O próprio imperador chinês é considerado responsável se a seca é demasiado severa, e são muitos os éditos de autocondenação sobre esse assunto, publicados nas páginas da veneranda Gazeta de Pequim. Em casos extremos, o imperador, vestido com roupas humildes, sacrifica aos céus e implora a sua proteção. Os toorateyas das Celebes do Sul sustentam que a prosperidade do arroz depende do comportamento de seus príncipes e que o mau governo — e entendem por isso um governo que não se conforme aos costumes antigos — provocará o fracasso das colheitas. Na época do rei sueco Domalde houve uma grave escassez que durou vários anos e não pôde ser aplacada pelo sangue de animais ou de homens. Por isso, numa grande assembléia popular, reunida em Uppsala, os chefes decidiram que o próprio Rei Domalde era a causa da escassez e devia ser sacrificado para que a fartura voltasse. Por isso executaram-no e espalharam seu sangue pelos altares dos deuses. Também nesse caso diz a tradição que os suecos sempre atribuíram as boas ou más colheitas aos seus reis. No reinado do Rei Olaf houve uma grande escassez, e o povo o considerou culpado por ser muito comedido em suas oferendas. Reuniu um exército e marchou contra ele, cercou sua moradia e a incendiou, queimando-o com ela, “oferecendo-o a Odin como um sacrifício para conseguir boas colheitas”.

Talvez o último resquício dessas superstições que perdurou em relação aos nossos reis ingleses foi a idéia de que podiam curar a escrofulose pelo toque. Por isso, a doença tor- nou-se conhecida como o “mal do rei”. A Rainha Elizabeth exercia com freqüência esse dom miraculoso de curar. No dia do solsticio de verão de 1633, Carlos I curou uma centena de pacientes de uma só vez, na capela real, em Holyrood. Mas parece ter sido com seu filho, Carlos II, que o costume chegou ao auge. No dia 29 de maio de 1660, Carlos II retornou à pátria em triunfo, vindo do exílio, e, no dia 6 de junho, começou as curas da escrofulose. A cerimónia é assim descrita por Evelyn, que talvez a tenha testemunhado: “Sua Majestade iniciou a cura pela imposição das mãos, segundo o costume, da seguinte maneira: Sua Majestade sentou-se em seu trono na sala dos banquetes, e os médicos levaram os enfermos até o trono, junto ao qual estes se ajoelhavam. O rei tocava-lhes o rosto com ambas as mãos ao mesmo tempo, e nesse instante um capelão paramentado dizia: ‘Ele impôs-lhes suas mãos e os curou’. Isso era dito em relação a cada paciente em particular. Depois de terem sido todos tocados, eles voltavam a se apresentar na mesma ordem, e o outro capelão, ajoelhado, com ouro sobre fita branca em seu braço, os levava um a um até Sua Majestade, que os tocava no pescoço ao passarem, enquanto o primeiro capelão repetia: ‘Essa é a verdadeira luz que baixou sobre o mundo’. Seguiu-se então uma Epístola (como antes era um Evangelho) com a liturgia, as orações pelos enfermos, com certas modificações, e finalmente a bênção. E então o lorde camareiro e o mordomo da Casa Real trouxeram uma bacia, um jarro de água e uma toalha, para que Sua Majestade se lavasse”.

No conjunto, portanto, tudo indica que temos razões para deduzir que, em muitas partes do mundo, o rei é o sucessor, em linha direta, do velho mago ou curandeiro. A partir do momento em que uma classe particular de feiticeiros é segregada da comunidade e dela recebe atribuições de cujo desempenho se acredita depender a segurança e o bem-estar públicos, esses homens gradualmente ascendem à riqueza e ao poder, até que os principais entre eles se transformam em reis sagrados. E, embora a distinção entre o humano e o divino ainda seja imperfeita, imagina-se com freqüência que os próprios homens podem chegar à divindade, não só depois de sua morte, mas em vida, graças à possessão, temporária ou permanente, de toda a sua natureza por um espírito grande e poderoso. Nenhuma  classe  da  comunidade  beneficiou-setanto quanto os reis dessa crença na possível encarnação de um deus sob forma humana. A doutrina dessa encarnação e, com ela, a teoria da divindade dos reis, no sentido estrito da palavra, constituem o tema do capítulo seguinte.

Deuses humanos encarnados

Os exemplos que, nos capítulos anteriores, tomamos às crenças e práticas de povos primitivos de todo o mundo devem ser suficientes para provar que o selvagem não reconhece as limitações ao seu poder sobre a natureza, que nos parecem tão óbvias. Numa sociedade em que cada homem se considera como mais ou menos dotado de poderes que chamaríamos de sobrenaturais, é evidente que a distinção entre deuses e homens é um tanto imprecisa, ou, antes, sequer chegou a se estabelecer.

A idéia de um deus-homem, ou de um ser humano dotado de poderes divinos ou sobre- naturais, pertence essencialmente ao período remoto da história religiosa, no qual deuses e homens ainda são vistos como seres de uma ordem muito semelhante, ainda não foram se- parados pelo abismo intransponível que, para o pensamento posterior, se abre entre eles. Portanto, por mais estranha que nos possa parecer a idéia de um deus encarnado em forma humana, ela nada tem de absurda para o homem de  antigamente,  que  vê  num deus-homem  ou num homem-deus apenas um grau mais elevado dos mesmos poderes sobrenaturais de que ele, em plena boa fé, se considera portador. Nem estabelece ele uma distinção muito nítida entre um deus e um poderoso feiticeiro. Seus deuses são, com freqüência, apenas mágicos invisíveis que, por trás da cortina da natureza, produzem os mesmos encantamentos e feitiços que os mágicos humanos realizam de forma visível e corpórea entre seus semelhantes. E como se acreditava habitualmente que os deuses se exibiam aos seus adoradores sob forma humana, não era difícil para o mágico, com seus supostos poderes miraculosos, granjear a reputação de ser uma divindade encarnada. Assim, começando como pouco mais do que um simples feiticeiro, o curandeiro ou o mago pôde evoluir até transformarse a um só tempo em deus e em rei. Mas, ao falarmos dele como deus, devemos ter cuidado de não introduzir na concepção selvagem de divindade as idéias muito abstratas e complexas que atribuímos a esse termo. Quando o selvagem usa a palavra com que designa deus, tem em mente um ser de determinado tipo; quando o homem civilizado usa a palavra com que designa deus, tem em mente um ser muito diferente, e se, como acontece com freqüência, tanto o selvagem como o homem civilizado são igualmente incapazes de se olhar do ponto de vista um do outro, de suas discussões só podem resultar confusão e equívocos.

Um antigo historiador português nos conta que o quiteve, ou rei de Sofala, no sudeste da África, é um cafre de cabelos encarapinhados, um pagão que não adora coisa alguma e não tem nenhum conhecimento de Deus. Pelo contrário, considera- se o deus de todas as suas terras, sendo como tal também considerado e reverenciado pelos seus súditos. Quando estes são assolados pela escassez ou têm necessidade de alguma coisa, recorrem ao rei, acreditando com firmeza que ele lhes pode dar o que desejam ou de que precisam e que pode tudo obter de seus antecessores mortos, com os quais, é crença geral, está em contato. Por isso, pedem ao rei que lhes dê chuva, quando necessário, e outras condições atmosféricas adequadas para a colheita. Ao fazerem tais pedidos, oferecem-lhe presentes valiosos, que o quiteve aceita, dizendo-lhes que voltem para casa, pois suas solicitações serão atendidas. São tão bárbaros que, embora vejam com que freqüência o rei não lhes dá o que pedem, não se sentem decepcionados, antes lhe dão presentes ainda maiores. Tantos dias são gastos nessas idas e vindas que a chuva afinal chega, e os cafres se sentem satisfeitos, acreditando que o rei não os atendeu enquanto não havia recebido presentes suficientes e enquanto não havia sido bastante importunado, como ele próprio afirma, com o fim de mantê-los em seu engano.

Mas as pessoas nas quais uma divindade se revela nem sempre são reis ou descendentes de reis: a suposta encarnação pode ocorrer mesmo em homens da mais humilde origem. Assim, os budistas tártaros acreditam num grande número de Budas vivos, que oficiam como grão-lamas à frente dos mosteiros mais importantes. Quando um desses grão-lamas morre, seus discípulos não o lamentam, pois sabem que dentro em pouco ele reaparecerá sob a forma de um recém- nascido. A única preocupação que devem ter é descobrir o local do novo nascimento do lama. Se virem nessa época um arco-íris, consideram-no como um sinal enviado pelo lama morto para guiá-los até seu berço. Por vezes, é a própria criança divina que revela sua identidade. “Eu sou o grão-lama”, diz ela, “o Buda vivo de tal templo. Levem-me ao meu velho mosteiro. Eu sou o seu chefe imortal.” Qualquer que seja a forma da revelação do local de nascimento do Buda, pela sua própria declaração ou pelo sinal nos céus, levantam-se tendas, e os peregrinos alegres, muitas vezes chefiados pelo rei ou por um dos membros mais ilustres da família real, saem à procura do deus-criança, que nasce geralmente no Tibete, a terra santa, e, para chegar até ele, a caravana muitas vezes tem de atravessar os mais terríveis desertos. Quando finalmente o encontram, ajoelham-se para adorá-lo. Antes, porém, que seja reconhecido como o grão-lama a quem buscam, terá de dar provas de sua identidade. Perguntam-lhe o nome do mosteiro de que se diz chefe, a distância a que fica, e quantos monges ali vivem; deve também descrever os hábitos do grão-lama morto e a maneira pela qual morreu. Em seguida, vários objetos, como livros de orações, bules de chá, xícaras, são colocados à sua frente, e ele tem de mostrar os que usava em sua vida anterior. Se o fizer sem erro, suas pretensões serão reconhecidas, e ele será levado triunfalmente até o mosteiro. À frente de todos os grão-lamas está o dalai-lama de Lassa, a Roma do Tibete. Ele é considerado como um deus vivo, e, quando morre, o seu espírito divino e imortal renasce novamente numa criança. De acordo com certos relatos, o método de descoberta do dalai-lama é semelhante ao método, já descrito, de descobrir um grão-lama comum.

Podemos, agora, concluir que a pretensão a poderes divinos e sobrenaturais, formulada pelos monarcas dos grandes impérios históricos como os do Egito, China, México e Peru, não era o simples resultado de uma vaidade exagerada ou a expressão vazia de uma adulação rastejante, mas um remanescente e uma extensão da antiga apoteose selvagem de reis vivos. Assim, por exemplo, como filhos do Sol, os incas do Peru eram reverenciados como deuses; não podiam errar, e ninguém sonhava em ofender a pessoa, a honra ou a propriedade do monarca ou de algum dos membros da família real.

Os reis do Egito, como os de outros países do antigo Mediterrâneo, eram divinizados em vida, sacrifícios lhes eram oferecidos, e seu culto era celebrado em templos especiais e por sacerdotes especiais. Na verdade, o culto dos reis fazia sombra, por vezes, ao dos deuses. Assim, no reinado de Merenra, um alto funcionário declarou ter construído muitos lugares santos para que os espíritos do rei, o eterno Merenra, pudessem ser invocados “mais do que todos os deuses”.

Historicamente, a instituição da realeza sagrada parece ter tido origem na ordem dos mágicos ou curandeiros públicos: está baseada, logicamente, numa associação errônea de idéias. Os homens confundiam a ordem de suas idéias com a ordem da natureza e por isso imaginavam que o controle que tinham, ou pareciam ter, de seus próprios pensamentos lhes permitia exercer um controle correspondente sobre as coisas.

Reis de setores da natureza

No caso do sacerdote de Diana em Nemi, esse controle sobre a natureza exercia-se especifi- camente em sua morada, o bosque de Arícia, que lhe dava o título de rei do bosque. Ao contrário dos reis titulares e sacerdotais, nas antigas repúblicas da Grécia e na Itália, o sacerdote de Diana não reinava na cidade, mas no bosque. Era, portanto, um rei da natureza, e de um setor específico da natureza, ou seja, o bosque, que lhe dava seu título. Se pudéssemos encontrar exemplos daquilo que chamaríamos de reis de setores da natureza, isto é, pessoas de quem se acreditasse que reinavam sobre determinados elementos ou aspectos da natureza, tais exemplos apresentariam, provavelmente, maior analogia com o rei do bosque do que com os reis divinos  que  até  agora  comentamos  e  cujo controle da natureza é mais um controle geral do que referente a aspectos específicos.

O exemplo mais adequado para nossos objetivos imediatos nos vem do Camboja. Ali, nas regiões mais remotas das florestas, vivem dois soberanos misteriosos, conhecidos como o rei do fogo e o rei da água. Sua fama espalhou-se por todo o sul da grande península indochinesa, mas apenas um eco distante dessa celebridade chegou ao Ocidente. Até há poucos anos, nenhum europeu, pelo que eu saiba, jamais vira qualquer deles, e sua existência mesma poderia ter sido considerada como uma fábula se não houvesse, ainda recentemente, comunicações regulares entre eles e o rei do Camboja, com o qual trocavam presentes anualmente. Os presentes cambojanos eram passados de tribo em tribo até chegarem a seu destino, pois ninguém se atreveria a essa longa e perigosa viagem. A tribo em que os reis do fogo e da água residem são os chréais ou jarays, raça de feições européias, mas de cor amarelada, que habita as montanhas e os altiplanos cobertos de florestas que separam o Camboja do Anam. Suas funções reais têm caráter puramente místico ou espiritual; não dispõem de autoridade política, são simples camponeses que vivem do seu suor e das oferendas dos fiéis. De acordo com um relato, vivem em total solidão, sem se encontrar jamais e sem ver nunca um rosto humano. Moram sucessivamente em sete torres no alto de sete montanhas e todos os anos passam de uma para outra. As coisas de que necessitam para sua subsistência são colocadas furtivamente ao seu alcance. Os reinados do rei do fogo e do rei da água duram sete anos, o tempo necessário para que passem por todas as torres, sucessivamente; muitos, porém, morrem antes de sua conclusão. Essa função é hereditária em uma ou (segundo outros) em duas famílias reais, que são muito consideradas, recebem rendimentos por isso e estão isentas da necessidade de trabalhar a terra. Mas, naturalmente, tal dignidade não é ambicionada e, se ocorre uma vaga, todos os homens elegíveis (devem ser fortes e ter filhos) fogem e se escondem. Os reis desfrutam de privilégios e imunidades extraordinários, mas sua autoridade não vai além das poucas aldeias das vizinhanças de onde vivem. Como muitos outros reis sagrados, dos quais falaremos adiante, os reis do fogo e da água não podem morrer de morte natural, pois isso prejudicaria a sua reputação. Assim, quando um deles adoece seriamente, os anciãos realizam consultas e, se acharem que não pode sobreviver, apunhalam- no. Seu corpo é queimado, as cinzas são recolhidas piamente e recebem honras públicas durante cinco dias. Parte delas é dada à sua viúva, que as guarda numa urna que deve levar às costas quando vai fazer suas lamentações no túmulo do marido.

Conta-se que o rei do fogo, o mais importante dos dois, cujos poderes sobrenaturais jamais são questionados, oficia casamentos, festas e sacrifícios em honra do yan, ou o espírito. Um lugar especial lhe é reservado nessas ocasiões, e o caminho pelo qual chega até ele é forrado de tecidos de algodão branco. Uma das razões para limitar a dignidade real à mesma família é o fato de ter esta em seu poder certos talismãs famosos, que perderiam sua força ou desapareceriam se transferidos a outra família. Esses talismãs são três: o fruto de uma trepadeira chamada cui, colhido há séculos atrás na época do último dilúvio, mas ainda fresco e verde; uma rota, espécie de palmeira oriental, também muito antiga, mas com flores que nunca fenecem; e, por fim, uma espada que contém um yan ou espírito, que a vigia constantemente e faz milagres com ela. Diz a tradição que se trata do espírito de um escravo, cujo sangue caiu sobre uma lâmina que estava sendo temperada, que teve morte voluntária para expiar sua ofensa involuntária. Com os dois primeiros talismãs o rei da água pode provocar uma enchente que cobriria toda a terra. Se o rei do fogo retirar a espada mágica alguns centímetros para fora da bainha, o sol se esconderá e os homens e animais mergulharão num sono profundo; se retirasse a espada totalmente, o mundo acabaria. A essa arma milagrosa são sacrificados búfalos, porcos, aves, e patos, para que faça chover. É guardada envolta em algodão e seda, e entre os presentes enviados anualmente pelo rei do Camboja, sempre havia tecidos finos para en- volvê-la.

Em troca, os reis do fogo e da água enviavam ao rei do Camboja uma enorme vela de cera e duas cabaças, uma cheia de arroz e a outra, de sésamo. A vela levava a impressão digital do dedo médio do rei do fogo, e provavelmente se acreditava que contivesse a semente do fogo, que o monarca cambojano recebia, portanto, uma vez por ano, sempre nova, da sua própria fonte, o rei do fogo. Essa vela sagrada era reservada a usos sacros. Ao chegar à capital do Camboja, era confiada aos brâmanes, que a colocavam junto às insígnias reais e, com a cera, faziam lamparinas que ardiam nos altares nos dias solenes. Como a vela era presente especial do rei do fogo, podemos conjeturar que o arroz e o sésamo fossem dados pelo rei da água. Este era sem dúvida também o rei da chuva, e os frutos da terra eram dádivas por ele conferidas aos outros homens. Em épocas de calamidade, como pestes, enchentes e guerra, um pouco desse arroz e desse sésamo sagrados eram es- palhados na terra, para “apaziguar a ira dos espíritos malignos”. Ao contrário do hábito do país, que é o de enterrar os mortos, os corpos desses dois monarcas místicos são queimados, mas suas unhas e alguns de seus dentes e ossos são preservados religiosamente, como amuletos.

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