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Bruxaria e Paganismo

Nossa dívida para com o selvagem

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excerto de O Ramo de Ouro
Sir James George Frazer.  Trad. Waltensir Dutra.

Seria fácil aumentarmos a lista dos tabus reais e sacerdotais, mas os exemplos recolhidos nas páginas anteriores devem bastar como amostras. Para concluir esta parte de nosso tema, resta-nos apenas expor sumariamente as conclusões gerais a que nossas pesquisas nos levaram até agora. Vimos que, na sociedade selvagem ou bárbara, encontram-se muitas vezes homens aos quais as superstições atribuem uma influência controladora sobre o curso geral da natureza. Esses homens são, por isso, tratados como deuses. Se tais divindades humanas também exercem influência temporal sobre as vidas e os destinos de seus adoradores, ou se suas funções são puramente espirituais e sobrenaturais — em outras palavras, se são reis ao mesmo tempo que deuses, ou apenas deuses —, esta é uma distinção que não nos diz respeito aqui. Sua suposta divindade é o fato essencial de que nos temos de ocupar. É por virtude dela que constituem, para os seus adoradores, uma segurança e uma garantia da continuidade e da sucessão ordenada dos fe- nômenos físicos de que a humanidade depende para a sua sobrevivência. É natural, portanto, que a vida e a saúde desses deuses-homens sejam um motivo de preocupação para o povo cujo bem- estar e até mesmo existência dele dependem. E, naturalmente, ele é forçado por esse povo a obedecer às regras que a inteligência do homem primitivo tenha imaginado para evitar os males a que o corpo está sujeito, inclusive o derradeiro mal,  a  morte.  Essas  regras,  como  seu  exame demonstrou, são apenas as máximas que, segundo a visão primitiva, todo homem prudente deve respeitar, para ter vida longa na terra. E, enquanto no caso dos homens comuns a observação das regras fica a critério do indivíduo, no caso do deus-homem ela é imposta, sob pena de afastamento do seu alto posto ou até mesmo de morte. É demasiado grande o interesse que seus adoradores têm por sua vida para que lhe permitam uma liberdade total de ação. Portanto, todas as superstições insólitas, todas as máximas dos tempos idos, todos os ditados veneráveis que a engenhosidade dos filósofos selvagens elaborou há muito tempo e que as velhas, ao lado das lareiras, ainda repetem como tesouros sem preço para os filhos e netos reunidos em torno do fogo doméstico nas noites de inverno —, todas essas antigas fantasias enfeixadas umas nas outras, todas essas teias de aranha do cérebro foram tecidas em torno do antigo rei, do deus humano que, nelas colhido como uma mosca na trama de uma aranha, dificilmente podia movimentar um membro fora das linhas do costume, “leves como o ar, mas fortes como elos de ferro”, que se cruzavam e recruzavam num labirinto interminável que o prendia estritamente a uma rede de observâncias das quais só a morte ou a deposição o podiam libertar.

Assim, para os estudiosos do passado, a vida dos antigos reis e sacerdotes tem muito o que ensinar. Nela estava condensado tudo o que passava por sabedoria quando o mundo era jovem. Constituía o padrão pelo qual os homens procuravam modelar a sua vida — um modelo perfeito, construído com rigorosa precisão segundo as linhas estabelecidas por uma filosofia bárbara. Por mais grosseira e falsa que essa filosofia nos possa parecer, seria in- justo negar-lhe o mérito da coerência lógica. Partindo da concepção do princípio vital como um pequeno ser ou alma existente no ser vivo, mas dele distinta e separável, deduz, para a orientação prática da vida, um sistema de regras que, em geral, se combinam bem e formam um todo bastante completo e harmonioso. A falha — e é uma falha fatal — do sistema não está na sua lógica, mas nas suas premissas; em sua concepção da natureza da vida, não em qualquer irrelevância das conclusões que estabelece a partir de tal concepção. Mas seria tão ingrato quanto pouco filosófico estigmatizar essas premissas como ridículas só porque podemos perceber facilmente a sua falsidade. Vivemos sobre os alicerces construídos pelas gerações anteriores e só muito vagamente podemos compreender os penosos e prolongados esforços que custou à humanidade atingir o ponto, não muito elevado afinal de contas, a que chegamos. Devemos nossa gratidão aos trabalhadores anônimos e esquecidos cuja reflexão paciente, cujos esforços constantes em grande parte contribuíram para fazer de nós o que somos. O volume de conhecimentos novos que uma época ou certamente que um homem podem acrescentar ao fundo comum é pequeno, e seria estupidez ou desonestidade, além de ingratidão, ignorar o todo, valorizando apenas a pequena  contribuição  que  pode  ter  sido  nosso privilégio trazer. Há, na verdade, pouco risco, hoje em dia, de desvalorizar as contribuições que os tempos modernos e mesmo a Antiguidade clássica trouxeram para o progresso geral de nossa raça. Mas, quando passamos esses limites, o caso é diferente. Desprezo e ridículo, ou aversão e denúncia, são, com demasiada freqüência, o único reconhecimento concedido ao selvagem e ao seu modo de ser. Não obstante, entre os benfeitores que estamos prontos a louvar agradecidos, muitos, talvez a maioria, foram selvagens. Pois, feitas as contas, nossas semelhanças com o selvagem ainda são mais numerosas do que as nossas diferenças. E o que temos em comum com ele, e deliberadamente conservamos como verdadeiro e útil, devemos aos nossos ancestrais selvagens que lentamente adquiriram por experiência e nos transmitiram por herança aquelas idéias aparentemente fundamentais que nos inclinamos a considerar como originais e intuitivas. Somos como que herdeiros de uma fortuna que vem sendo transmitida há tanto tempo que se perdeu a lembrança daqueles que a construíram, e seus possuidores no momento a consideram como um bem original e inalterável de sua raça desde o começo do mundo. Mas a reflexão e a pesquisa nos devem demonstrar que temos, para com os nossos predecessores, uma dívida em relação a muita coisa que consideramos como nossa, e que seus erros não eram extravagâncias intencionais ou delírios de insanidade, mas simplesmente hipóteses, que, como tais, se justificavam na época em que foram propostas, mas que uma experiência maior mostrou serem inadequadas. Só pela prova sucessiva das hipóteses e pela rejeição do que é falso é que a verdade se revela finalmente. Afinal de contas, o que chamamos de verdade é apenas a hipótese que se supõe funcionar melhor. Portanto, ao examinarmos as opiniões e práticas de épocas e raças mais rudes, bem faríamos em olhar com tolerância para os seus erros como deslizes inevitáveis na busca da verdade, e em conceder-lhes o benefício daquela tolerância de que nós mesmos talvez necessitemos algum dia: cum excusatione itaque veteres audiendi sunt. (“Com a mesma indulgência os antigos devem ser ouvidos.”).


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