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André Correia (Conexão Pagã / @bercodepalha)
Se você pensa que o tambor é um instrumento primitivo e que quem toca ou ouve é excêntrico, vou convidá-lo para um simples exercício de percepção. Em uma banda de rock, três instrumentos são essenciais: guitarra, baixo e bateria. A bateria é um conjunto de tambores. Se você gosta de forró, o tambor está lá, a zabumba. Se gosta de música clássica, os tímpanos estão lá. Para quem gosta de samba e axé, não preciso explicar muito. E quem gosta de música eletrônica, não fica de fora. Por exemplo, Drum n’ Bass, ou seja, Tambor e Baixo.
Os tambores não só estão presentes em todos os tipos de música, como também são importantíssimos para transmitir a energia, a força e a condução dos ritmos musicais.
E quando foi que, historicamente, entramos em contato com os tambores? Qual foi o primeiro tambor que ouvimos? Qual a sua função mística? “Boas perguntas” – eu sei.
Quando fazemos exercícios de observação da natureza, podemos identificar, principalmente nos primatas, comportamentos de comunicação através de batidas. Os gorilas de dorso prateado, os silverbacks, batem repetidamente no peito para comunicar dominância e chamar a atenção das fêmeas. Chimpanzés e bonobos batem com galhos no chão e em troncos de árvores para demonstrar agressividade contra o oponente. Mas e nós?
Tudo o que podemos falar sobre o passado são suposições, baseadas em estudos, é claro, mas são suposições. Assim como nossos primos, possivelmente nossos primeiros “toques” ritmados tenham sido batendo com galhos no chão, batendo em troncos ocos que permitiam alguma acústica, até chegarmos aos modelos mais primitivos dos tambores que conhecemos hoje. Mas no início, as batidas também eram usadas para comunicação e somente posteriormente se tornaram música.
Imagine que em tempos remotos, as peles de animais eram essenciais para nos proteger do frio. Após abater o animal, seu couro era retirado, sangue e gorduras raspadas e posto para secar sobre alguma superfície. E se alguém, durante esse processo, tivesse colocado o couro sobre algum tronco oco para secar e esse couro secasse, aderindo e se moldando ao tronco, e quando tocado emitisse sons diferentes? Pois bem, essa é, bem resumidamente, uma das principais hipóteses do surgimento do mais antigo membranofone.
“Ok, eles tinham tambores. Mas para que serviam? Eles já conheciam ritmos?”
Tudo bem, pode ser que você não tenha pensado nisso. Mas mesmo que vocês não tenham perguntado, vou falar apenas algumas palavras sobre esse assunto que julgo importante.
Ritmos estão presentes em tudo ao nosso redor, mas estamos tão imersos na nossa realidade que não prestamos mais atenção nisso. Nossa atenção se tornou tediosamente seletiva. Ao andar, temos ritmos nos movimentos dos braços e das pernas, nos pulmões, no coração e no fluxo sanguíneo, que podem se alterar conforme a velocidade.
Imagine se observarmos o canto dos pássaros, o som dos animais, o possível ritmo de batidas causadas pelo vento ou pelo movimento das águas, etc. O ritmo está presente desde sempre, nós só deixamos de notar no dia a dia.
Apesar de todas essas frequências estarem por aí, gosto de pensar que todos nós somos forjados por ritmos. A fecundação ocorre através de um sexo ritmado. Os primeiros sons que ouvimos são do coração, da respiração e do fluxo sanguíneo de nossas mães quando ainda estamos no ventre. Nascemos em contrações frequentes, respiração ofegante… ritmos. Por fim, choramos alto, a plenos pulmões. Somos feitos de música.
Mais adiante na história, os tambores começaram a ser usados em festas de tribos, clãs, famílias e comunidades. Por muitos séculos, poucas opções de instrumentos estiveram disponíveis. Alguns instrumentos de corda, algumas formas de flautas e tambores. E naquela época todos os “shows” eram unplugged. Tambores eram tocados em festas, funerais, embarcações, guerras e também em celebrações espirituais. A música sempre foi um condutor de pensamentos e estados emocionais.
A música sempre foi um condutor de pensamentos e estados emocionais. O tambor sempre foi o maior representante dessas alterações de percepção.
Em ritmos mais lentos e com sons mais graves, temos estados mais densos, introspectivos, que podem ser relaxantes ou induzir uma imersão profunda na consciência (ou inconsciência). Ritmos mais rápidos e com sons agudos provocam uma aceleração do fôlego, maior oxigenação; a exaustão física também pode conduzir ao desligamento da percepção comum e abrir portas para uma outra consciência.
Esses acessos aos mundos além da razão se tornaram especialidade dos xamãs.
Diferente das definições atuais, os xamãs não eram homens e mulheres de classe média que usavam rapé e ayahuasca. Xamã, originalmente “saman”, eram os líderes místicos de tribos de um povo da Sibéria, que praticavam sua espiritualidade de forma bem peculiar. Formas primitivas de condução da espiritualidade, instrumentação habilidosa, métodos devocionais, de medicina, de acesso ao mundo além e muito mais. Com o avanço do tempo e de estudos, comportamentos semelhantes foram observados em outras sociedades ao redor do mundo, então o termo começou a ser popularizado.
Usando a definição mais global, podemos afirmar que o xamanismo está presente em muitas culturas ao redor do planeta, não só nos povos originários das Américas.
Os tambores foram encontrados em muitas dessas práticas espirituais ancestrais. Na África, na Europa, Ásia, Américas e Oceania, os tambores foram muito marcantes culturalmente, sendo protagonistas na condução mágica da consciência ou dos espíritos para o mundo dos deuses e dos mortos.
São os tambores que convidam e anunciam a chegada dos ancestrais, das deidades, dos deuses em muitos rituais através dos oceanos. Tocam ritmos que homenageiam o sagrado, estimulam o frenesi, desligam a consciência lógica e acessam os aspectos obscuros da razão. Mas por que ainda usamos os tambores nos rituais dos dias de hoje? Simples: porque funciona!
Por vezes, pensei comigo mesmo que o tambor fosse “somente” uma maneira de levarmos a nossa consciência para um passeio pelo nosso inconsciente e depois retornar de lá com insights construtivos. Pode ser? Pode, claro. Mas seria esse inconsciente onde os “espíritos e deuses antigos” habitam? Essa é uma afirmação que ninguém pode fazer, e cabe a fé de cada um experimentar e concluir.
De maneira geral, o tambor faz jus ao seu título de “cavalo do xamã”, que nos leva ao mundo dos espíritos para comungar com os ancestrais e com os sagrados e nos traz de volta. Mas será que qualquer pessoa pode usar o tambor?
Em muitas tradições, o tambor é empunhado somente por líderes espirituais. Mas nos dias atuais e na cultura pagã moderna, sim, qualquer pessoa pode tocar o tambor.
Atualmente, os tambores são utilizados para conduzir rituais e pessoas, para acalmar os pensamentos, para ativar ideias e emoções e até mesmo para fazer magia. No entanto, para a prática de acessar outros planos como tambor, regras antigas continuam válidas. É necessário muita experiência e responsabilidade para práticas como essas. Somente os mais vividos nesse caminho seriam capazes de uma prática tão profunda.
Essa afirmação não é somente para separar os praticantes por classes, mas sim para afirmar e alertar que o toque do tambor, apesar de acessível a todos, não é uma brincadeira. Os tambores são vivos, sagrados, empunhados milenarmente por homens e mulheres que se dedicaram a décadas para lidar com a vida e a morte, com curas, bênçãos e purificações. A função do xamã ou do bruxo que se propõe a essa atividade é para toda a vida, não somente para frivolidades.
Se você possui um tambor, saiba que essa relação não é de posse, mas sim de parceria. Se você toca tambor para você, saiba por que está tocando. Se você toca tambores para os outros, lembre-se de sua responsabilidade.
Toque o tambor e permita que o tambor toque você.
André Correia. Psicólogo atuante em clínica desde 2007, adepto da bruxaria eclética, construtor de tambores ritualísticos. Participa dos projetos Conexão Pagã e Music, Magic and Folklore. Coordenador do Círculo de Kildare e autor da obra musical Tambores Sagrados.
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