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André Correia (Conexão Pagã / @bercodepalha)
Eu aprendi errado sobre o diabo. Talvez todos nós tenhamos aprendido totalmente errado o seu significado real e a sua função social e psicológica. No fim das contas, talvez ele seja o que “Deus” quisesse o que ele fosse, um parceiro muito próximo que mantêm o Universo em ordem.
Meu primeiro contato com o Diabo, pelo o que me lembro, foi assistindo o filme O Exorcista, uma obra que considero até hoje uma das melhores do cinema. Escrito por William Friedkin e dirigido por William Peter Blatty, esse filme ecoa até hoje no meu inconsciente com o mesmo impacto que teve quando eu era criança. Foi assustador, continua sendo, mesmo que eu entenda o que está por trás desse símbolo que atinge o meu eu infantil até hoje. Mesmo que me assustasse, eu fiquei fã desse diabo. Tive camisetas com a capa do filme, com o rosto da Regan, pôsteres, fitas de VHS de documentários, edições de colecionador e até hoje tenho o Box Especial de Bluray! Se o objetivo do filme era mostrar o lado ruim do diabo, funcionou, mas também me cativou. Até hoje eu sou “team capiroto”, mas não por ele ser mau, mas por ser absurdamente humano. Vale dizer aqui, que sim, eu sei que o diabo no filme é Pazuzu, da Suméria.
Na mitologia bíblica, quando Lucifer caiu e levou consigo alguns anjos, entendemos que ele se tornou um rival direto do deus todo poderoso, aquele que é onipresente e onisciente, mas que ainda assim não antecipou a revolta do seu anjo mais bonito. Ou teria antecipado? E se a função das sombras seja exatamente essa, ser um contraponto saudável na luz divina? É como se precisássemos reconhecer os aspectos selvagens, crueis e mortais de Deus, mas para não sujar com todo esse sangue o seu nome sagrado, utilizamos um alterego divino para macular com mais liberdade. O diabo é um “capanga” que cumpre o trabalho sujo inerente na natureza. Enquanto deus cria, o diabo destrói. Ele é responsável pela tentação, pela doença, pela dor, pela crueldade e todas as características negativas que são naturais da nossa espécie, mas não queremos relacionar com deus. Por isso ele, o diabo, se torna o antagonista. Tanto que a palavra “diabo” em essência, siginifica opositor ou acusador.
Se pensarmos que o diabo é parte dos planos divino, cumprindo um papel de equilibrio e absorvendo os impactos cruéis da natureza, podemos pensar que esse mesmo diabo tem uma função importante na natureza humana. No Tarot, quando a carta do Diabo surge, não está relacionada a algo ruim, maléfico, mas sim aos aspectos sombrios, materiais e humanos. É um convite para mergulhar nas vielas obscuras da nossa inconsciência, metendo o pé na porta do superego e se banhando nas proibições heréticas do ID, mas sempre em busca de iluminar, esclarecer e trazer à consciência expressões da nossa selvageria normal, para que possamos compreendê-la, respeitá-la e se necessário, domá-la. Ou seja, a carta do Diabo fala do ser humano na sua mais natural expressão. Inclusive, eu gosto dessa carta. Quando compro ou ganho um deck novo, é uma das primeiras cartas que vou buscar, ao lado do Louco e do Eremita.
Talvez, a imagem do diabo com chifres com a qual me afinizei ainda criança, tenha sido um dos facilitadores para me afeiçoar na adolescencia e perdurar até hoje na devoção ao deus Cornífero. Ainda mais depois que descobri que, de fato, o diabo só ganhou chifres graças aos deuses pagãos.
Quando a igreja chega nos territórios pagãos com a intenção de catequisar os povos, existe naturalmente uma resistência das pessoas para irem até as igrejas para celebrar o novo deus único. Então, a igreja inverte o movimento. Ao invés de levar os pagãos para as igrejas, começa a levar a igreja para os pagãos. Destruindo a originalidade dos templos aos deuses antigos, os padres começam a rezar missas dentro templos pagãos, assim amenizando o choque da mudança e influenciando aqueles que reconheciam o local como sagrado. Na tentativa de influenciar, a igreja acabou por canonizar algumas deusas, como aconteceu com Brigith, que se tornou Santa Brígida, e nomeia alguns santos como padroeiros de algumas funções, como eram alguns deuses. Além disso, toma a imagem de alguns deuses chifrudos mais proeminentes e os colocam como os antagonistas do deus único.
Ou seja, os deuses corníferos que representavam a força, a virilidade, o poder selvagem, a vida e a morte, começam a ser interpretados como maléficos, sombrios e começam a ser sincretizados com o diabo bíblico, que nunca foi descrito como tal em nenhum texto sagrado.
Mas o diabo cumpre a sua função importante na igreja católica e outras denominações cristãs até hoje. Já pensaram nisso? Se não existisse o diabo, a igreja perderia totalmente o seu sentido e poucas pessoas frequentariam os seu cultos. Pois o que move muitas pessoas não é a vontade de estar perto de deus, mas sim o medo constante de ir para o inferno. Entende que o diabo é o vendedor de ingressos das igrejas? A culpa, as tentações e o pecado tem papel fundamental na manutenção dos fiéis. Fico pensando: se tirassemos o medo da punição, as pessoas se tornariam a pior versão delas mesmas? Isso me faz pensar que muitos dos que estão lá, na verdade precisam da coleira sagrada da igreja para manter a selvageria humana sob controle.
Conhecer a si mesmo, inclusive fazer amizade com o próprio diabo é essencial para que nos tornemos livres das imposições sociais e dominações dos poderes religiosos. Inclusive, é importantíssimo que saibamos o nome, sobrenome e o RG do diabo que habita em nós, não só para acalmá-lo, mas também podermos evocá-lo vorazmente sempre que for necessário.
Dica de amigo? Faça amizade com o diabo!
André Correia. Psicólogo atuante em clínica desde 2007, adepto da bruxaria eclética, construtor de tambores ritualísticos. Participa dos projetos Conexão Pagã e Music, Magic and Folklore. Coordenador do Círculo de Kildare e autor da obra musical Tambores Sagrados.
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