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Bruxaria e Paganismo

Entrevista com Gilmara Ígnea

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Gilmara Ignea é historiadora e doutoranda em História pela USP,  autora do livro “Práticas de feitiçaria: o caso de Maria Gonçalves Cajada”, editora da Revista Aquelarre, e organizadora da Jornada de Filosofias Ocultas sobre Bruxaria na USP.  É também membro do Conselho Internacional de Dança e criadora do Coven de Dança Performágicka “All The Witches Dance®” . Seu trabalho está reunido no site Gilmara Ígnea | Dança Performágicka (gilmaraignea.com.br)

Agradecemos por seu retorno a nossa entrevista, Gilmara.

Sombrias Saudações! Primeiramente gostaria de agradecer pelo convite!

Gilmara, poderia compartilhar conosco como sua jornada acadêmica influencia e se entrelaça com suas práticas ocultistas?

Conhecer as práticas mágicas de nossos ancestrais faz toda a diferença em nossa jornada. Primeiro, porque, como disse Blavatsky, a dimensão histórica é essencial para entender os distintos contextos mágicos e, acrescento, as diferentes respostas a ele. Segundo, porque o conhecimento atávico, seja por meio de leituras, investigação documental ou experimentações pessoais, proporciona-nos informações pertinentes também a nós mesmos. Acredito que todo magista sério e interessado, em algum momento, investigou o passado, os ritos e as práticas anteriores para uma maior compreensão desse universo. Eu, particularmente, venho desde o início dos anos 2000, curiosamente, buscando informações a respeito em obras de pesquisadores e praticantes. Mas foi em 2006, quando minha jornada acadêmica começou, que iniciei esses estudos dentro das Universidades, para compreender melhor esse fenômeno, que esteve e está sempre atrelado a nós humanos. E, ao estudar o passado, foi possível compreender que existem variadas formas de praticar magia, o que me conferiu uma certa liberdade de prática.

Dito isso, acredito que minha jornada acadêmica conferiu um tom distinto às minhas práticas, pois, a partir dos meus estudos, novos elementos são compreendidos, acrescentados e experimentados em minhas operações mágickas. Permitam-me apresentar um exemplo para maior clareza: nossos ancestrais mais antigos, desde a era paleolítica, enterravam os mortos em posição fetal, orientados para o leste, acreditando que dessa forma ocorreria uma transmutação morte/vida. Com esse conhecimento em mente, podemos incorporar essa posição corporal em nossas práticas de transmutação, encerramento de ciclos e afins. A riqueza dos ritos antigos, ao serem revisitados, reinterpretados e readaptados ao nosso contexto, não apenas honra nossas origens, mas também enriquece e aprofunda nossa compreensão e eficácia mágicas.

Em sua opinião, quais são os documentos ou artefatos históricos mais significativos para entender o papel das mulheres na história do ocultismo?

Posso citar as primeiras estatuetas da era paleolítica que nos oferece um entendimento de que o feminino era cultuado – ou pelo menos desempenhava um papel participativo naquilo que entendemos como magia hoje – já em épocas bem remotas. Sabemos que existem cerca de 250 estatuetas femininas na era mais primordial do paleolítico, enquanto as masculinas são quase inexistentes. Isso deve indicar algo. Muitos artefatos arqueológicos estão sendo cada vez mais investigados e diversas teorias sobre as práticas mágicas têm surgido em torno do feminino. Cito também os tablets de argila sobre o culto à Lua e os estudos da astronomia da sacerdotisa sumeriana En-Hedu-Anna, a primeira astrônoma da história até então.

No que se refere aos documentos escritos, meu trabalho tem sido incansável na consulta dos documentos da Inquisição, em busca de desvendar as ações mágicas e conhecer mais sobre as mulheres que foram acusadas de bruxaria. Um trabalho complexo, já que os documentos não foram escritos por elas mesmas. A investigação acaba sendo por meio dos indícios que surgem nas entrelinhas, mas, ainda assim, são muito valiosos. Infelizmente pouco sabemos sobre as práticas mágicas femininas, pois as mulheres do passado geralmente não escreviam sobre elas mesmas e quase tudo que temos de literatura a respeito foi escrito por homens e pessoas alheias às práticas (a exceção temos o Grimório de Maria Perpétua, escrito no século XVIII por ela mesma, entre outras raridades). Esse cenário só mudou significativamente a partir do século XIX, quando mulheres passaram a investigar e escrever sobre magia, a exemplo cito uma das pioneiras, a russa Helena Blavatsky (1831 -1891), a anglo-indiana Margaret Murray (1863 – 1963),  a galesa Violet Mary (1890 – 1946) e muitos outras que surgiram a partir de então.

Poderia explicar como a revista “Aquelare” se posiciona no debate contemporâneo sobre o ocultismo e que impacto você espera que ela tenha na comunidade?

A revista Aquelarre foi concebida com o propósito de oferecer conhecimentos sobre os universos das bruxarias e outros assuntos ocultos, por meio de textos exclusivamente escritos por mulheres, uma vez que elas são frequentemente excluídas. Nosso objetivo é também proporcionar manifestos e novas visões, muitas vezes polêmicas, para estimular o debate. Trata-se de uma iniciativa que desafia o status quo, pois não acreditamos em verdades absolutas, não seguimos cartilhas ou regras e temos um senso crítico aguçado. Este é o impacto que desejamos para nossas leitoras (es), despertando nelas (es) o senso crítico no contexto da magia e incentivando-as a abandonar – ou pelo menos refletir sobre – a adesão cega a regras e cartilhas preestabelecidas. Ao promovermos uma abordagem inclusiva e questionadora, buscamos quebrar paradigmas e inspirar uma reflexão mais profunda e autêntica sobre as práticas mágicas. Não que sejamos contra quem segue as cartilhas, mas segui-las com senso crítico é muito mais enriquecedor. Além disso, a revista pretende ser um farol para aqueles que se aventuram nos caminhos escuros da magia, oferecendo não apenas conhecimento, mas também um espaço seguro e acolhedor para a expressão feminina. De forma geral, nosso compromisso é com a diversidade de pensamento e a liberdade de expressão, na esperança de que essa pluralidade fomente uma comunidade mágica mais fértil, consciente e com respeito às diferenças.

Como a dança se integra à sua prática e estudo do ocultismo, especialmente considerando os rituais que envolvem movimento e expressão corporal?

Uma dança intencional é, em essência, um ato mágico, especialmente quando direcionada à transformação da realidade. E, nesse caso, o nosso corpo é nosso maior instrumento mágicko. Para esse propósito existe uma multiplicidade de formas e possibilidades infinitas. Venho, há muitos anos, estudando e experimentando diversos sistemas mágickos e criando exercícios e rituais com esse objetivo, incluindo o corpo que dança, afinal não devemos ter apenas controle sobre a nossa mente, mas também sobre o nosso corpo! Tenho experienciado transformações extraordinárias e tenho sido testemunha de muitas transmutações, principalmente dentro do Coven que oriento. Posso dizer que uma das abordagens possíveis consiste em trabalhar com os pontos de energia em nosso corpo, como os chakras, os ossos, o sangue e certos órgãos. Autores como Aleister Crowley e Osmar Spare já destacavam a importância do corpo nas práticas por meio do Yoga, por exemplo. O movimento e a expressão corporal, longe de serem estáticos, são vivos e dinâmicos, sendo também linguagens que, muitas vezes, evoca uma gestualidade mágicka, despertando em nosso ser muitos canais de poder, de êxtase, que beira os liminares, espaço ideal para prática de magia. Os xamãs já utilizavam a dança há milênios e as bruxas já dançavam em seus rituais de Sabá há séculos. Não há nada de novo, a minha inovação é experimentar isso dentro dos rituais de magia, criando formas, talvez inéditas, de trabalhar a magia e a performance dentro daquilo que conceituei como Dança Performágicka.

Quais são os desafios mais comuns que você enfrenta como editora de uma revista focada em ocultismo feminino e como você os supera?

Os obstáculos existem, em diversas esferas e em vários níveis, principalmente em relação a uma revista de via sinistra composta por mulheres! O que uma mulher diz nem sempre é recebido com a mesma força que um homem dizendo o mesmo. Essa é uma realidade. Consequentemente, uma revista como a nossa não tem a mesma aceitação das revistas comuns escritas por homens famosos no cenário. No entanto, essa postura não me surpreende, considerando que ainda vivemos em uma sociedade misógina e cheia de status, embora muitas vezes de forma velada ou até inconsciente.

Mas esse detalhe não nos abala! A nossa proposta é legítima e não precisamos provar nada! A resistência aos resquícios do paternalismo se dá justamente pela ação da revista, só por ela existir. Nós persistimos com determinação, enquanto desejarmos, conscientes de que nossa voz é essencial e que nossas perspectivas enriquecem profundamente o campo da magia e do oculto. Acreditamos firmemente na importância de promover e valorizar a contribuição feminina, enfrentando e desafiando quaisquer barreiras de preconceitos históricos e culturais. Assim, não esperamos alcançar um público mais amplo, mas, muito mais, inspirar outras mulheres a se expressarem e a reivindicarem seu espaço no universo mágico e além, oferecendo sempre uma abordagem de cunho crítico.

Poderia descrever uma experiência específica onde a dança ajudou você ou suas alunas em suas práticas mágicas?

Após compreender que o meu corpo é meu maior instrumento mágicko e que a Dança é um excelente veículo, tudo mudou em minha vida. Por meio dela passei a me conectar melhor com a natureza e com as forças que habitam o Oculto. Além de escavar meus abismos mais sombrios e desconhecidos. Dessa forma, além de me conhecer melhor, ter mais facilidade de acessar os espaços liminares e ter maior domínio sobre mim mesma, pude superar muitos desafios e transformar muitas realidades indesejáveis.

Em relação ao meu Coven All The Witches Dance, toda nossa prática é fundamentada em uma intenção e, por meio dos rituais com danças e trabalhos meditativos, nós alcançamos os nossos intentos. Como diz uma de nossas decanas integrantes, a Shalah Hekateris: “Vivenciar um ritual através da dança possibilita materializar a energia que costumamos nos esforçar para visualizar no modo estático tradicional. O movimento intuitivo e intencional, direcionado pela dança ritualística permite fluir a transmutação no mundo físico e sutil tanto quanto conseguimos nos desprender e conectar ao mesmo tempo”.

Como tudo é muito particular, posso citar apenas que, apoiadas na força de nossa egrégora, muitas de nós já superamos diversos obstáculos da vida e do cotidiano comum através de nossas operações mágickas, como transmutações de doenças graves, sentimentos e sensações indesejáveis, depressão, baixa autoestima, dificuldades relacionadas ao profissional e afins.

Sobre o que é sua tese de doutorado? Há nela alguma intersecção entre história e práticas ocultas femininas?

Desde 2006 venho dedicando minha pesquisa acadêmica às práticas de magia feminina. Todos os meus trabalhos de pesquisa, desde a graduação, passando pelo mestrado e agora no doutorado, concentram-se nesse tema, incluindo o meu livro Práticas de feitiçaria: o caso de Maria Gonçalves Cajada de 2017. Atualmente, estou investigando as práticas mágicas indígenas, analisando o caso de duas mulheres acusadas pela Inquisição em Belém no século XVIII. Essas mulheres transgressoras são nossas ancestrais e deixaram uma marca indelével na história da magia no Brasil colonial.

Minha pesquisa busca investigar e trazer à tona a vida dessas mulheres, cujas histórias foram silenciadas e marginalizadas pelos poderes coloniais e euro cristãos. Por meio da análise cuidadosa dos registros da Inquisição, tento reconstruir não apenas os atos que lhes valeram a acusação de bruxaria, mas também as complexas redes de saberes e práticas que elas preservavam e transmitiam.

Essas mulheres, ao resistirem às normas impostas, não só desafiaram a opressão de seu tempo, mas também abriram caminhos para futuras gerações. Elas são símbolos de resistência e sabedoria, cujas práticas mágicas continuam a inspirar e a enriquecer nosso entendimento não só sobre a magia, mas também sobre a história cultural e o universo religioso do Brasil. Espero, com isso, contribuir para uma reavaliação crítica de nossa herança cultural, destacando a importância das mulheres na construção e na perpetuação do conhecimento mágico. Este trabalho, além de acadêmico, é um ato de reconhecimento e celebração da força e da resiliência de nossas ancestrais.

Como você percebe a evolução do papel das mulheres no ocultismo ao longo dos séculos e como isso se reflete na sociedade moderna?

Ainda observo uma notável escassez de participação feminina na cena ocultista e nas práticas espirituais, principalmente de Via Sinistra. Embora as mulheres tenham desempenhado papéis significativos ao longo da história do ocultismo, muitas ficaram encobertas pelos mantos masculinos e essa invisibilidade feminina, infelizmente, refletiu nos tempos atuais, pois é só observarmos que ainda somos poucas, estamos sempre em menor número e muitas vezes enfrentamos um silenciamento por parte de grupos que não valorizam plenamente a presença e a contribuição feminina. Reconheço que estamos em um processo contínuo e lento de avanço nessa área, e espero contribuir para essa evolução. É essencial que as vozes femininas sejam cada vez mais ouvidas e respeitadas nos círculos ocultistas, pois nossa perspectiva única e nossa sabedoria enriquecem imensamente o campo espiritual e mágico.

Há algum pensador(a) ou obra literária que tenha sido particularmente influente em sua própria abordagem ao ocultismo? Como isso moldou seu pensamento e prática?

Diversos pensadores e obras exerceram significativas influências sobre minha prática, incluindo Aleister Crowley, Kenneth Grant, Austin Osman Spare, Rosaleen Norton, Nietzsche, Stephen Flowers, entre outros. Embora eu frequentemente discorde parcialmente de cada um deles, reconheço que todos os livros que li até hoje me proporcionaram algum grau de lampejos. A influência de Crowley e Grant, por exemplo, pode ser vista na importância dos estudos dos chakras e da prática corporal do Yoga. Austin Osman Spare, além do yoga, contribuiu com sua abordagem única ao inconsciente e à técnica do sigilo, elementos que incorporei em minhas práticas. Nietzsche, numa pegada mais filosófica, fortaleceu minha rebeldia com seus questionamentos e transvaloração de valores. Assim como a Norton, que trouxe uma desobediência que quebrou paradigmas do ser mulher e de fazer arte. Flowers, por outro lado, é notável por seus estudos e pesquisas sobre LHP, corrente com a qual me identifico. Nota-se que a maioria tinha ou valorizava a relação da Arte com a Magia.

Um dos últimos livros que li, “Anatomy of a Witch” da Tempest Zakroff, teve um impacto substancial em minha prática mágica corporal. Zakroff introduziu novos elementos, ou pelo menos novas perspectivas, sobre como partes do corpo podem ser exploradas na prática mágica. Ela, que também é uma dançarina, trouxe novas formas de entender, sentir e usar o corpo, tendo-o como um instrumento ativo e dinâmico na bruxaria. Ao integrar esses princípios na prática de Dança Performágicka, que eu já vinha desenvolvendo há anos, pude enriquecer ainda mais esse sistema.

Finalmente, como você vê o futuro do ocultismo? Existem novas direções ou tecnologias que você acredita que irão ou que precisam existir para transformar este campo?

Particularmente, vejo com grande convicção que a liberdade mágica, o respeito ao diferente, a valorização da subjetividade e o senso crítico precisam ser urgentemente despertados por aqueles interessados nesse campo. Enquanto permanecermos inertes, aguardando receitas prontas, sem cultivar nosso poder criativo, sem questionar nada e simplesmente seguindo a correnteza, temo que a cena ocultista continue a vagar superficialmente, sem mergulhar nas profundezas dos abismos mais desconhecidos. Acredito firmemente que, uma vez superadas as barreiras que nos prendem à complacência e à conformidade, se houver um comprometimento com o despertar consciente, com a liberdade de exploração mágica, que desafia dogmas e tradições obsoletas do velho Aeon, um futuro repleto de riqueza e transformação se abrirá para aqueles que trilham este caminho, então, em minha opinião, só assim poderemos vislumbrar um horizonte de possibilidades infinitas, onde a magia, profunda e transformadora, aguarda aqueles que ousam explorar além das fronteiras do convencional.

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