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excerto de O Ramo de Ouro
Sir James George Frazer. Trad. Waltensir Dutra.
O sacramento dos primeiros frutos
Já vimos que o espírito dos grãos pode ser representado sob forma humana, e que pode ser morto na pessoa de seu representante e sacramentalmente comido. Para encontrar exemplos da eliminação real do representante humano do espírito dos grãos tivemos, natu- ralmente, de nos voltar para raças selvagens, mas as ceias após a colheita realizadas pelos nossos camponeses europeus nos proporcionam exemplos inequívocos da ingestão sacramental de animais como representantes do espírito dos grãos. Além disso, o cereal novo, como se poderia prever, é também comido sacramentalmente, isto é, como o corpo do espírito dos grãos. Em Vàrmland, na Suécia, a mulher do fazendeiro utiliza os grãos do último feixe para preparar um pão na forma de uma menina; esse pão é dividido entre toda a família e por ela comido. No caso, o pão representa o espírito dos grãos, concebido como uma menina, tal como na Escócia ele é concebido e representado pelo último feixe, ao qual é dada a forma de uma mulher e o nome de “a virgem”. Como de hábito, acredita-se que o espírito dos grãos esteja no último feixe, e comer o pão feito desse grão é, portanto, comer o próprio espírito dos grãos.
No caso, o espírito é representado e comido sob forma humana. Em outros casos, embora os grãos novos não sejam cozidos em pães de forma humana, ainda assim as cerimônias solenes com as quais é comido bastam para indicar que isso se faz sacramentalmente, isto é, como o corpo do espírito dos grãos. As cerimônias seguintes, por exemplo, eram observadas pelos camponeses lituanos ao comerem o grão novo. Mais ou menos na época da semeadura do outono, quando todo o cereal já fora colhido e a debulha já havia começado, todo fazendeiro dava uma festa chamada saba-rios, isto é, “a mistura ou reunião”. Tomava nove bons punhados de cada espécie de grão — trigo, cevada, aveia, linho, feijões, lentilhas, etc, dividindo cada um deles em três partes. As vinte e sete porções de cada cereal eram então lançadas num monte e misturadas. Devia ser usado o cereal que primeiro houvesse sido debulhado e joeirado, que era posto de lado e guardado com esse objetivo. Parte dele, depois de misturado, era empregado no preparo de pequenos pães, um para cada membro da família; o resto, depois de lhe ser acrescentada mais cevada ou aveia, era transformado em cerveja, cuja primeira fermentação era bebida pelo fazendeiro, por sua mulher e por seus filhos; a segunda fermentação era para os empregados. Pronta a cerveja, o fazendeiro escolhia uma noite em que nenhum estranho era esperado. Ajoelhava-se diante do barril de cerveja, enchia um jarro da bebida e, derramando-a na rolha do tonel, dizia: “Ó terra fértil, faze com que o centeio, a cevada e todos os tipos de grão floresçam”. Levava em seguida o jarro para a sala, onde sua mulher e seus filhos esperavam. No chão da sala havia um galo preto, branco ou pintalgado (não vermelho) e uma galinha da mesma cor e da mesma raça, que deviam ter sido chocados naquele ano. O fazendeiro ajoelhava-se, com o jarro na mão, agradecia a Deus pela colheita e pedia uma boa colheita no ano seguinte. Todos levantavam as mãos e exclamavam: “Ó Deus, e tu, ó terra, recebei este galo e esta galinha como uma oferenda de boa vontade”. Com isso, o fazendeiro matava as aves com golpes de uma colher de madeira, pois não podia cortar-lhes a cabeça. Finda a primeira oração e mortas as aves, ele jogava fora um terço da cerveja. Sua mulher cozinhava então as vítimas num recipiente novo, ainda não utilizado, depois do que era colocada no chão uma vasilha com a capacidade de um alqueire, com o fundo para cima, e, sobre ela, eram dispostos os pequenos pães já mencionados e as aves cozidas. Trazia-se então a cerveja nova, com uma concha e três canecas que só eram usadas nessa ocasião. O fazendeiro colocava a cerveja nas canecas, usando a concha para servi- la, e a família se ajoelhava em volta da vasilha que estava no chão. O pai fazia uma oração e bebia das três canecas de cerveja. Os demais seguiam- lhe o exemplo. Eram então comidos os pães e as aves, depois do que a cerveja voltava a ser tomada, até que cada uma das três canecas tivesse sido esvaziada nove vezes. Não podia sobrar nenhuma comida, mas, se isso acontecesse, era consumida na manhã seguinte com as mesmas cerimônias. Os ossos eram dados ao cachorro, e se não os comesse todos, o restante era enterrado sob o esterco no curral.
Essa cerimônia era observada no início de dezembro. No dia em que ela se realizava, não se podiam dizer nomes feios. Era esse o costume há cerca de duzentos anos ou mais.
Ao final da colheita de arroz na ilha de Buru, nas índias holandesas, os membros de cada clã (fenna) se encontram numa refeição sacramental comum, para a qual cada membro do clã tem de contribuir com um pouco do arroz novo. Essa refeição é chamada de “devoramento da alma do arroz”, nome que indica claramente o seu caráter sacramental. Parte do arroz é posta de lado e oferecida aos espíritos. Pouco antes da colheita do arroz em Bolang Mongondo, outro distrito das Celebes, é feita uma oferenda de um pequeno porco ou uma ave. Em seguida, o sacerdote arranca um pouco de arroz, primeiro de seu próprio campo e, em seguida, dos campos de seus vizinhos. Todo o arroz por ele arrancado é posto ao lado do seu, para secar, e em seguida devolvido aos respectivos donos, que o fazem moer e cozinhar. Quando está cozido, as mulheres o levam de volta, com um ovo, ao sacerdote, que oferece o ovo em sacrifício e devolve o arroz às mulheres. Todos comem desse arroz, na família, até mesmo as crianças pequenas. Depois dessa cerimônia, os camponeses podem recolher seu arroz.
Os índios bororós do Brasil acham que seria morte certa comer o milho novo antes de ser abençoado pelo pajé. A cerimônia da bênção assim se processa: a espiga semimadura é colocada diante do pajé, que, dançando, cantando e fumando sem parar durante várias horas, acaba por atingir um estado de êxtase. Sacudindo-se e lançando gritos de tempos em tempos, ele morde a espiga. Cerimônia semelhante é realizada sempre que um animal ou peixe de grande porte é morto. Os bororós estão firmemente convencidos de que qualquer homem que toque o milho ou a carne não consagrados, antes de concluída a cerimônia, perecerá, juntamente com sua mulher e toda a sua tribo.
Até mesmo as tribos que não cultivam a terra observam, por vezes, cerimônias análogas quando colhem os primeiros frutos silvestres ou arrancam as primeiras raízes da estação. Assim, entre os índios salishes e tinnehs, do noroeste da América do Norte, os jovens, antes de comer as primeiras bagas ou raízes da temporada, sempre se dirigem à fruta ou à planta pedindo seu favor e ajuda. Em certas tribos, cerimônias regulares relacionadas com os primeiros frutos eram realizadas anualmente no momento de sua coleta ou da coleta das raízes, o mesmo ocorrendo entre as tribos que se alimentavam principalmente de salmão, quando começava a temporada desse peixe. Tais cerimônias não eram tanto ações de graças; antes, visavam a propiciar uma coleta abundante, ou um bom fornecimento do artigo desejado, pois, se não fossem realizadas da maneira adequada e com a devida reverência, os selvagens corriam o risco de ofender os “espíritos” dos frutos, raízes ou peixes, ficando assim privados destes.
Esses costumes são esclarecedores porque indicam nitidamente o motivo, ou pelo menos um dos motivos, que sublinha as cerimônias realizadas quando eram consumidos os primeiros frutos da estação. Tal motivo, no caso desses índios, é simplesmente a crença de que a própria planta está animada por um espírito consciente e mais ou menos poderoso, que deve ser apaziguado antes que possam ser comidos, sem risco, os frutos ou raízes que são supostamente parte de seu corpo. Ora, se isso se aplica aos frutos e raízes silvestres, podemos deduzir com certa probabilidade que é também exato em relação aos frutos e raízes cultivados, como os inhames, e, em particular, em relação aos cereais, como o trigo, a cevada, a aveia, o arroz e o milho. De qualquer modo, parece razoável deduzir que os escrúpulos demonstrados pelos selvagens ao comer os primeiros frutos de qualquer colheita e as cerimônias que observam antes de vencer esses escrúpulos devem-se, pelo menos em grande parte, à idéia de que a planta ou árvore é animada por um espírito ou mesmo uma divindade, cuja permissão ou cujos favores devem ser conseguidos antes que seja permitido comer com segurança os frutos da nova colheita. Isso se afirma, na verdade, com toda a clareza em relação aos ainos: eles chamam o painço de “cereal divino”, “divindade do cereal”, e a ele rezam, e o adoram, antes de comer os alimentos preparados com esse grão. E mesmo quando a divindade que habita os primeiros frutos não é afirmada expressamente, parece estar implícita, tanto pelos preparativos solenes feitos para a sua ingestão, como pelo perigo que se acredita haver para os que se arriscam a comê-los sem observar o ritual prescrito. Em todos esses casos, portanto, podemos descrever sem impropriedade o consumo dos novos frutos como um sacramento ou comunhão com a divindade ou pelo menos com um espírito poderoso.
Em algumas das festas que examinamos, o sacramento dos primeiros frutos combina-se com o seu sacrifício ou sua apresentação aos deuses ou ao espírito, e, no curso do tempo, o sacrifício dos primeiros frutos tende a obscurecer o sacramento ou talvez mesmo a substituí-lo. O simples fato de serem os primeiros frutos oferecidos aos deuses ou espíritos passa a ser considerado como um preparativo suficiente para a ingestão do grão novo. Tendo as potências superiores recebido a sua parte, o homem está livre para desfrutar do resto. Essa maneira de ver os novos frutos implica não serem mais considerados como estando, em si, impregnados de vida divina, mas simplesmente como um dom dos deuses aos homens, que expressam sua gratidão e sua homenagem aos seus divinos benfeitores devolvendo-lhes uma parte do que deram.
Devorar o deus
O costume de comer o pão sacramentalmente como corpo de deus foi praticado pelos astecas antes da descoberta e da conquista do México pelos espanhóis. Duas vezes ao ano, em maio e em dezembro, uma imagem do grande deus mexicano Huitzilopochtli ou Vitzilipuztli era moldada em massa comestível, quebrada em pedaços e solenemente comida pelos seus adoradores. A cerimônia de maio foi descrita pelo historiador Acosta, segundo o qual os antigos mexicanos, antes mesmo da chegada dos missionários cristãos, estavam perfeitamente familiarizados com a doutrina teológica da transubstanciação e a praticavam nos ritos solenes de sua religião. Eles acreditavam que, consagrando o pão, seus sacerdotes podiam transformá-lo no corpo mesmo do seu deus, de modo que todos os que partilhavam o pão consagrado estabeleciam uma comunhão mística com a divindade, recebendo uma parte de sua substância divina em seus próprios corpos. A doutrina da transubstanciação, ou a transformação mágica do pão em carne, também era conhecida dos árias da Índia antiga, muito antes da difusão e mesmo do aparecimento do cristianismo. Os brâmanes ensinavam que os bolos de arroz oferecidos em sacrifício substituíam os seres humanos e que eram, na realidade, transformados nos corpos reais de homens pela manipulação do sacerdote. Lemos que “quando ele [o bolo de arroz] ainda consiste em arroz, é o cabelo. Quando o sacerdote lhe joga água, transforma-se na pele. Quando mistura a água com o bolo, este se transforma na carne, pois então se torna consistente, e consistente é também a carne. Quando cozido, torna-se osso, pois então endurece um pouco, e o osso é duro. E quando o sacerdote se prepara para retirá-lo [do fogo] e o unta de manteiga, transforma-se no tutano. É essa a totalidade a que se dá o nome de o quíntuplo sacrificio animal”.
Na festa do solsticio de inverno, em dezembro, os astecas primeiro matavam seu deus Huitzilopocfitli em efígie e o comiam em seguida. Como preparativo para essa cerimônia solene uma imagem da divindade, na forma de homem, era preparada com sementes de vários tipos, das quais se fazia uma massa com o sangue de crianças. Os ossos do deus eram representados por pedaços de madeira de acácia. Essa imagem era colocada no principal altar do templo, e, no dia da festa, o rei lhe oferecia incenso. Logo na manhã do dia seguinte, ela era levada e colocada de pé num grande salão. Um sacerdote, que trazia o nome do deus Quetzalcóatl, cujo papel desempenhava, lançava um dardo com ponta de pedra no peito da imagem, atravessando-a. A isso se chamava “a morte do deus Huitzilopochtli para que seu corpo possa ser comido”. Um dos sacerdotes cortava o coração da imagem e o dava ao rei para que o comesse. O resto da imagem era dividido em pedaços pequenos, dos quais todos, grandes ou pequenos, comiam. Nenhuma mulher, porém, podia provar um pedaço. A cerimônia era chamada de teoqualo, isto é, “o deus é comido”.
Mitos “manii” em Arícia
Podemos agora sugerir uma explicação do provérbio “há muitos manii em Arícia”. Certos pães feitos com forma humana eram chamados pelos romanos de maniae, e, ao que parece, esse tipo de pão era feito especialmente em Arícia. Ora, Mania, o nome de um desses pães, era também o nome da mãe ou da avó dos espíritos a quem efígies de madeira, de homens e mulheres, eram dedicadas no festival de Compitalia. Essas efígies eram penduradas nas portas de todas as casas de Roma: havia uma para cada pessoa livre e uma para cada escravo. A razão disso era que, nesse dia, os espíritos dos mortos vagavam, ao que se acreditava, e esperava-se que, por ingenuidade ou por simples inadvertência, levariam consigo as efígies colocadas na porta e não as pessoas que viviam na casa. De acordo com a tradição, essas figuras de madeira eram substitutos de um antigo costume de sacrificar seres humanos. À base de dados tão fragmentados e incertos é impossível concluir com confiança. Mas parece que vale a pena sugerirmos que os pães de forma humana que parecem ter sido feitos em Arícia eram pães sacramentais e que, outrora, quando o divino rei do bosque era morto anualmente, os pães eram feitos à sua imagem, como as figuras dos deuses no México, na Índia e na Europa do passado, e eram comidos sacramentalmente pelos adoradores.
Um correspondente me informou que costume semelhante ainda é observado todos os anos em Frascati, nos montes Albanos, não muito longe de Arícia. Escreve ele: “Durante a Quaresma, os padeiros de Frascati vendem bolos especiais de forma humana, com três longos chifres, grãos de pimenta como olhos e uma fita vermelha em torno do pescoço. Segundo me informaram, eles representam o Demônio e são comidos como uma renúncia simbólica a ele e a todas as suas obras. O costume, porém, poderia ser anterior ao cristianismo, e a explicação, um acréscimo feito posteriormente”.
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