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excerto de O Ramo de Ouro
Sir James George Frazer. Trad. Waltensir Dutra.
Vimos, na parte anterior deste trabalho, que, na Antiguidade, as nações civilizadas da Ásia ocidental consideravam as mudanças das esta- ções e particularmente o crescimento e a deca- dência anuais da vegetação como episódios na vida de um deus, cuja pranteada morte e ditosa ressurreição celebravam com ritos dramáticos em que se alternavam lamentação e júbilo. Mas, se a celebração era, na forma, dramática, na substância era mágica, ou seja, visava a, de acordo com os princípios da magia simpática, assegurar a regeneração primaveril das plantas e a multiplicação dos animais, que pareciam ameaçadas com as incursões do inverno. Mas essas idéias e esses ritos não se limitaram, no mundo antigo, ao Oriente Próximo, deles tendo partilhado outras raças de imaginação muito mais viva e temperamento mais quente, que habitavam o litoral e as ilhas do Egeu. Não precisamos supor, como certos estudiosos dos tempos antigos e modernos, que esses povos ocidentais copiaram de civilizações mais antigas do Oriente a concepção do deus que morre e renasce, bem como o ritual solene no qual essa concepção era exposta dramaticamente aos olhos dos adoradores. Mais provavelmente, a semelhança que se pode perceber a esse respeito entre as religiões do Oriente e do Ocidente não passa daquilo que habitualmente chamamos, embora de forma incorreta, de uma coincidência fortuita — o efeito de causas similares que agem do mesmo modo sobre a constituição semelhante da mente humana em diferentes países e sob diferentes céus. O grego não tinha necessidade de viajar a países distantes para aprender as vicissitudes das estações, observar a beleza fugaz da rosa damascena, a glória passageira do trigo dourado, o efêmero esplendor das vinhas purpúreas. Ano após ano, em sua bela terra, ele via, com natural pesar, a pompa brilhante do verão desvanecer-se com a tristeza e estagnação do inverno e, ano após ano, saudava, com natural prazer, a explosão de vida nova na primavera. Habituado a personificar as forças da natureza, a tingir-lhe as abstrações frias com os tons quentes da imaginação, a vestir suas realidades nuas com as roupagens suntuosas da fantasia mítica, ele criou para si um séquito de deuses e deusas, de espíritos e duendes, a partir do oscilante panorama das estações, e seguia as flutuações anuais de seus fados com emoções alternadas de alegria e de tristeza, que expressava na forma de ritual e de mito. Um desses mitos é o de Demetér e Perséfone.
O mais antigo documento literário que narra esse mito é o belo Hino a Demeter homérico, que os críticos atribuem ao sétimo século antes de nossa era. O objetivo do poema é explicar a origem dos mistérios de Elêusis, e o completo silêncio do poeta em relação a Atenas e aos atenienses, que, em épocas posteriores, tiveram destacada participação nos rituais eleusínios, torna provável que o hino tenha sido composto em um tempo muito antigo, quando Elêusis era ainda um pequeno Estado independente, e antes que a imponente procissão dos mistérios tenha começado a desfilar, nos belos dias de setembro, pela cadeia de baixos montes rochosos e nus que divide a plana terra agrícola eleusínia das extensões mais amplas, cobertas de oliveiras, da planície ateniense. Seja como for, o hino revela- nos a concepção que tinha o seu autor do caráter e das funções das duas deusas: suas formas naturais se destacam bem claramente sob o tênue véu das imagens poéticas. A jovem Perséfone, diz a narrativa, estava colhendo rosas e lilases, açafrões e violetas, jacintos e narcisos num prado luxuriante quando a terra se abriu e Plutão, senhor dos mortos, saindo do abismo, arrebatou-a em seu carro dourado e levou-a, para ser sua noiva e rainha do sombrio mundo subterrâneo. Sua chorosa mãe Demetér, com as louras tranças cobertas por um xale negro de luto, procurou-a por toda parte e, tendo sido informada pelo Sol da sorte da filha, afastou-se dos deuses com grande ressentimento.
Passou a viver em Elèusis, onde se apresentou às filhas do rei sob o disfarce de uma velha, tristemente sentada à sombra de uma oliveira junto ao Poço das Virgens, ao qual as moças haviam ido trar água, em jarros de bronze, para a casa de seu pai. Inconformada com sua perda, a deusa não permitiu, em sua ira, que nenhuma semente germinasse na terra, mantendo-as ocultas no solo, e fez voto de nunca mais colocar os pés no Olimpo e nunca mais deixar brotar os cereais até que sua filha lhe fosse devolvida. Foi em vão que os bois arrastaram os arados de um lado para outro nos campos; inutilmente o semeador deixou cair as sementes de cevada nos sulcos marrons: nada brotou do solo ressecado e poeirento. Até mesmo a planície próxima de Elêusis, que estava sempre ondulante de plan- tações douradas, jazia nua e estéril. A humanidade teria perecido de fome, e os deuses teriam sido privados dos sacrifícios que lhes eram devidos, se Zeus, alarmado, não tivesse ordenado a Plutão que libertasse sua presa, devolvesse sua noiva Perséfone à mãe Demeter. O sombrio senhor dos mortos sorriu e obedeceu, mas antes de mandar sua rainha para o ar livre num carro dourado, deu- lhe a semente de uma romã para comer, o que faria com que ela voltasse para ele. Mas Zeus determinou que a partir de então Perséfone passaria dois terços de cada ano com a mãe e os deuses, no mundo superior, e um terço do ano com seu marido no mundo inferior, do qual deveria retornar todos os anos quando a terra estivesse feliz com as flores da primavera. Alegremente, Perséfone retornou à luz do sol, e contente sua mãe a recebeu e abraçou. Com a satisfação de re- cuperar a filha perdida, Demetér fez com que os cereais brotassem novamente das terras aradas e com que toda a terra se enchesse de folhas e flores. Imediatamente mostrou essa feliz visão aos príncipes de Elêusis, Triptolemo, Eumoupo, Díocles, e ao próprio Rei Celeu e, além disso, revelou-lhes seus sagrados ritos e mistérios. Bem- aventurado, diz o poeta, é o mortal que viu tais coisas, mas aquele que não houver participado delas em vida jamais será feliz na morte quando tiver baixado às trevas do túmulo. Assim, as duas deusas partiram, para viver felizes com os deuses no Olimpo, e o bardo conclui o hino com uma piedosa oração a Demetér e a Perséfone para que condescendam em lhe assegurar a sobrevivência em troca de sua canção.
Já foi objeto do reconhecimento geral, e na verdade dificilmente poderá ser passível de dú- vida, o fato de que o principal tema que o poeta se propôs ao compor o hino foi o de descrever a fundação original dos mistérios eleusínios pela deusa Demetér. A revelação dos mistérios é o encerramento triunfal da obra. Entre os ritos aos quais o poeta faz alusões significativas estão o jejum preliminar dos candidatos à iniciação, a marcha das tochas, a vigília por toda uma noite, o fato de sentarem-se os candidatos, cobertos de véus e em silêncio, sobre bancos cobertos de pele de ovelha, o uso de linguagem chula, as piadas indecentes e a solene comunhão com a divindade bebendo água de cevada de um cálice sagrado.
Mas há ainda um outro segredo, mais profundo, dos mistérios, que o autor do poema parece ter divulgado sob o disfarce de sua narrativa. Ele nos conta como, tão logo Demetér transformou os campos estéreis e desnudos da planície eleusínia em dourados campos de cereais, ela alegrou os olhos de Triptolemo e dos outros príncipes de Elêusis, mostrando-lhes o cereal que crescia ou já ia alto. Ao compararmos essa parte da história com a afirmação de um autor cristão do século II, Hipólito, de que o momento crucial dos mistérios consistia em mostrar aos iniciados uma espiga de cereal colhida, dificilmente poderemos ter dúvidas de que o poeta do hino estava familiarizado com esse rito solene e que pretendeu explicar a sua origem precisamente da mesma maneira pela qual explicou outros ritos dos mistérios, ou seja, representando Demetér como tendo dado o exemplo, realizando, em pessoa, a cerimônia pela primeira vez. Assim, mito e ritual explicam-se e confirmam-se mutuamente.
No hino homérico a Demetér, as figuras das duas deusas, a mãe e a filha, resolvem-se em personificações do cereal. Perséfone, a deusa que passa três ou, segundo outra versão do mito, seis meses de cada ano com os mortos, no reino subterrâneo, e o restante do ano com os vivos, na superfície; em cuja ausência as sementes da cevada se ocultam na terra e os campos jazem nus e sem vida; a cujo retorno ao mundo superior, na primavera, os cereais brotam da terra, que se torna pejada de folhas e flores — essa deusa não pode ser, certamente, senão uma personificação mítica da vegetação, e particularmente dos grãos, que permanecem enterrados no solo durante alguns meses de cada inverno e que voltam novamente à vida, como se retornassem do túmulo, nas hastes que despontam, nas flores e folhas que se abrem a cada primavera. E se a deusa-filha era uma personificação do grão jovem do ano, a deusa-mãe bem pode ser considerada como uma personificação do grão do ano passado, que deu origem às novas plantações.
O camponês grego orava a Demetér, cheio de inquietação e pressentimentos, enquanto se- meava e quando já havia feito a colheita e levado com alegria as espigas amarelas para a eira, pagava à deusa generosa o que lhe era devido rendendo graças com uma oferenda de grãos dourados. Teócrito pintou-nos, em cores brilhantes, um quadro de uma colheita, num luminoso dia de outono há cerca de dois mil anos, na pequena ilha grega de Cós. O poeta nos conta como foi com dois amigos da cidade
a uma festa dada pelos agricultores, que ofere- ciam a Demetér os primeiros frutos da colheita de cevada com a qual ela lhes havia enchido os celeiros. “Tudo cheirava a verão”, diz o poeta, “mas cheirava também a outono.” Na verdade, o dia era realmente outonal, pois um pastor que encontrou os amigos a caminho das festividades rurais perguntou-lhes se iam à pisa do vinho no
lagar. Mais tarde, deitados em macios leitos de fragrante lentisco, passaram as horas do calor cantando canções, alternadamente, enquanto uma rústica imagem de Demetér, a quem cabiam as honras do dia, sorria ao lado de um monte de grão amarelo na eira com talos de trigo e papoulas nas mãos. O dia imortalizado por Teócrito era um desses dias outonais de muito calor e fulgurante beleza que na Grécia podem ocorrer a qualquer momento, até às vésperas do próprio inverno.
Podemos deduzir, portanto, que nas áreas rurais da Grécia antiga os camponeses ofereciam os primeiros frutos da colheita da cevada a Demetér, no outono, mais ou menos na época em que as uvas eram pisadas no lagar e as maçãs e peras maduras se amontoavam no chão dos pomares. A oferenda grega dos primeiros frutos era feita assim tarde do ano porque não a motivava tanto a gratidão pelas benesses passadas quanto o desejo de cortejar favores futuros, e talvez essa interpretação do costume não seja injusta para com a têmpera fria e refletida do espírito bucólico, mais suscetível de ser movido pelas considerações de lucro do que de sentimento. Na Grécia, o verão não tem praticamente chuvas, e, durante os longos meses de calor e seca, o cultivo dos dois cereais antigos, a cevada e o trigo, é suspenso. As primeiras chuvas do outono caem aproximadamente em meados de outubro, que era, para o camponês grego, o grande momento de arar e semear. Era de se esperar, portanto, que ele fizesse suas oferendas dos primeiros frutos à deusa dos grãos pouco antes de iniciar essas operações, e tal previsão se confirma perfeitamente pela data que o depoimento de Teócrito nos permite deduzir para a oferenda. Assim, o sacrifício da cevada a Demetér no outono parece menos um ato de agradecimento do que uma tentativa de suborno, feita judicio- samente no exato momento do ano em que os serviços da deusa eram mais necessários.
Quando, com o progresso da civilização, várias pequenas comunidades agrícolas se fundem num único Estado que para a sua subsistência depende principalmente do cultivo do solo, acontece habitualmente que, embora todos os agricultores continuem a cumprir, por si mesmos, os simples e velhos ritos destinados a assegurar as bênçãos dos deuses para suas plantações, o Estado chama a si a celebração de ritos semelhantes, embora mais imponentes e complicados, em nome de todo o povo e para que a negligência do culto público não venha a atrair para o país a ira das divindades ofendidas. Apesar de toda a sua pompa e esplendor, as festas nacionais desses Estados são, com freqüência, meras cópias ampliadas e embele- zadas dos ritos e cerimônias simples realizados pelos camponeses em campos abertos, em ce- leiros e em eiras. No Egito antigo, a religião de Isis e Osíris nos proporciona exemplos de solenidades que foram elevadas, da humilde condição de festas rurais, à dignidade de cele- brações nacionais. Podemos acompanhar, na Grécia antiga, uma evolução semelhante na re- ligião de Demetér. Se o camponês grego orava a Demeter e ao Zeus Subterrâneo antes de colocar a mão no arado no outono para que lhe dessem uma boa colheita, as autoridades do Estado ateniense, por sua vez, celebravam, mais ou menos na mesma época e pelas mesmas razões, um festival público em honra de Demeter em Elêusis. Era chamado de Proerosia, que significa “antes de arar”, e como era dedicado à deusa, a própria Demetér passou a ter o nome de Proerosia.
Assim como a prece que o camponês fazia a Demetér antes de mergulhar o arado na terra era tomada e ampliada, por assim dizer, ao máximo de volume de som nas orações públicas que o Estado ateniense oferecia anualmente à deusa antes de iniciar-se a aradura e em favor de todos, assim também a simples oferenda dos primeiros frutos da cevada feita à Demetér rústica sob a frondosa sombra dos choupos e dos olmos farfalhantes nas eiras de Cós era repetida, ano após ano, em grande escala, com os primeiros frutos da colheita da cevada e do trigo, que eram apresentados à mãe dos grãos e à virgem dos grãos em Elêusis, não só por todos os agricultores da Ática, mas também por todos os aliados e súditos de Atenas, próximos ou distantes, e até mesmo por muitas comunidades gregas livres de além-mar. Oferendas continuaram a ser trazidas a Elêusis até o fim do paganismo, muito depois de ter caído o império ateniense. A festa era chamada de haloa, ou festa da eira, e era celebrada em dezembro, distinguindo-se portanto da debulha do cereal. Acredita-se que tenha incluído certos ritos místicos observados apenas pelas mulheres, que se banqueteavam e embriagavam com vinho, ao mesmo tempo em que se diziam umas às outras graças picantes e mostravam bolos cozidos com a forma de órgãos reprodutores masculinos e femininos. Podemos supor que tais indecências, como certas obscenidades que parecem ter feito parte dos grandes mistérios de Elêusis, não eram apenas explosões ocasionais de paixão licenciosa; antes, eram praticadas deliberadamente como ritos destinados a promover a fertilidade do solo por meio da magia homeopática ou imitativa.
Outras festas realizadas em Elêusis em honra de Demetér e Perséfone eram conhecidas como a Festa Verde e a Festa dos Talos de Trigo. Nada sabemos sobre a maneira pela qual eram celebradas, exceto que incluíam sacrifícios oferecidos a Demetér e Perséfone. Seus nomes, porém, bastam para mostrar que estão ligadas com o cereal já verde e crescido.
Parte do drama religioso representado nos mistérios de Elêusis pode ter sido um casamento entre o deus do céu, Zeus, e a deusa do cereal, Demeter, representados pelo hierofante e pela sacerdotisa da deusa, respectivamente. A história desse casamento era conhecida por Homero, pois, na lista de beldades que ele faz Zeus, num acesso de sinceridade, confessar que lhe haviam conquistado o coração demasiadosensível está o nome da “Rainha Demetér de belos cabelos”, e, em outro trecho, o poeta re- presenta o ciumento deus fulminando com um raid o amante na companhia do qual a deusa esquecia a sua dignidade entre os sulcos de um campo em pousio. Além disso, segundo uma tradição, o próprio Dioniso foi o fruto da ligação entre Zeus e Demetér. Ao mesmo tempo, porém, há razões para supormos que o casamento sagrado se fazia não entre Demetér e Zeus, mas entre Perséfone e Plutão, irmão de Zeus e deus do mundo inferior. Sabemos que, nesses ritos, os fiéis olhavam para o céu e gritavam “Chuva!”; em seguida, olhavam para baixo, para a terra, e gritavam “Concebei!” Nada poderia ser mais adequado num casamento entre o deus do céu e a deusa dos grãos ou da terra que essas invocações aos céus para que despejasse a chuva e à terra ou ao cereal para que concebessem a semente sob o aguaceiro fertili- zante. Na Grécia, nenhuma outra ocasião poderia ser mais propícia a essas orações do que a data em que eram celebrados os grandes mistérios de Elêusis, ao fim da longa seca do verão e antes das primeiras chuvas de outono.
Diferentes tanto dos grandes mistérios como das oferendas dos primeiros frutos em Elêusis eram os jogos ali celebrados em grande escala, a cada quatro anos, e, em menores proporções, a cada dois anos. Esses jogos incluíam disputas atléticas e musicais, uma corrida de cavalos e uma competição que tinha o nome de Competição
Ancestral ou Hereditária, que pode ter constituído o núcleo original dos jogos.
Na medida em que as escassas evidências de que dispomos nos permitem julgar, os jogos eleusínios, como os mistérios de Elêusis, pare- cem ter relação principalmente com Demetér e Perséfone como deusas da agricultura. Pelo menos é o que diz expressamente o velho co- mentarista de Píndaro, e é confirmado pela prá- tica de recompensar os vencedores com medidas de cevada. Talvez a Competição Ancestral, que bem pode ter sido o núcleo original dos jogos, fosse uma disputa entre os segadores da sagrada planície para ver quem terminava a tarefa que lhe cabia em primeiro lugar. Para o êxito nessa competição nada seria mais ade- quado do que uma medida da cevada sagrada que o vencedor acabara de ceifar no campo. Disputas semelhantes entre ceifadores têm sido comuns nos campos da Europa moderna e não parecem ser puramente competições atléticas: seu objetivo não é simplesmente o de demons- trar a maior força, atividade e habilidade dos vencedores, mas assegurar, para determinada fazenda, a posse da florescente virgem dos grãos do ano, considerada como a personificação do grão vigoroso, e transferir para vizinhos menos hábeis a idosa mãe dos grãos do ano passado, considerada como a materialização das energias já gastas e esgotadas do grão. Não teria sido assim também em Elêusis? Não teriam os segadores disputado entre si a posse do jovem espírito do grão, Perséfone, e procurado livrar-se do espírito já velho, Demetér? O prêmio em cevada que recompensava o vencedor na Competição Ancestral não conteria, nas espigas maduras, uma personagem não menos importante do que a própria virgem dos grãos, Perséfone?
Se aceitarmos o depoimento dos antigos em relação aos ritos de Elêusis, incluindo, sob essa denominação geral, os grandes mistérios, os jogos, a Festa que Precede a Aradura (proerosia), a Festa da Eira, a Festa Verde e a Festa dos Talos de Trigo, bem como as oferendas de primeiros frutos, provavelmente nos inclinaremos a concordar com o mais erudito deles, o romano Varrão, que, segundo o relato que Santo Agostinho faz de sua opinião, “interpretou todos os mistérios eleusínios como relacionados com o cereal que Ceres (Demetér) havia descoberto, e com Prosérpina (Perséfone), que Plutão lhe havia roubado. E a própria Prosérpina, disse ele, representa a fecundidade das sementes, cujo desaparecimento em certa época fez com que a terra chorasse de esterilidade, dando com isso ensejo à opinião de que a filha de Ceres, que é a própria fecundidade, havia sido raptada por Plutão e era prisioneira no mundo inferior; e quando a escassez já havia sido publicamente chorada e a fecundidade retornado, houve alegria com a volta de Prosérpina e ritos solenes foram instituídos. Depois disso, ele diz”, prossegue Santo Agostinho tra-zendo-nos a opinião de Varrão, “que muitas coisas foram ensinadas em seus mistérios que só se relacionavam com a descoberta do cereal”.
Nesses mistérios, a idéia da semente enterrada no solo para renascer para uma vida superior sugere imediatamente uma comparação com o destino humano e fortalece a esperança de que, para o homem, também a sepultura
pode ser apenas o começo de uma existência melhor e mais feliz em um luminoso mundo desconhecido. Essa reflexão simples e natural parece perfeitamente suficiente para explicar a associação da deusa dos grãos em Elêusis com o mistério da morte e a esperança de uma imortalidade bem-aventurada. Os antigos consideravam a iniciação nos mistérios eleusínios como uma chave para abrir os portões do pa- raíso, como se evidencia pelas alusões que au- tores bem-informados fazem à felicidade que espera os iniciados na outra vida. Os gregos, como nós, tendo a morte à sua frente e um grande amor pela vida no coração, não se de- tinham muito no exame dos argumentos a favor e contra a possibilidade de imortalidade humana. O pensamento que satisfez a São Paulo e tem trazido conforto a milhares de cristãos que sofrem ao pé do leito de morte ou do túmulo aberto de seus entes queridos era bastante bom para ter sido aceito pelos pagãos antigos, quando também eles inclinavam a cabeça sob o peso do sofrimento e, com a candeia da vida diminuindo a cada dia, voltavam os olhos para as trevas do desconhecido. Não estaremos, portanto, diminuindo a dignidade do mito de Demetér e Perséfone — um dos poucos nos quais a claridade ensolarada do gênio grego é sombreada pelo mistério da morte — se atribuirmos sua origem a alguns dos mais familiares, embora eternamente presentes, aspectos da natureza, à melancólica e sombria decadência do outono e ao frescor, à luminosidade e ao verdor da primavera.
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