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André Correia (@andrecorreiapaganismo)
Os chifres e cornos são encontrados na natureza em mamíferos conhecidos como ungulados, ou seja, animais que possuem cascos. Em suas funções no meio selvagem, existem algumas propriedades mais claras, como o embate físico para demonstração grupal, disputa de força com outros machos, demarcação de território, disputa de fêmeas em períodos de acasalamento, além de apresentação, reconhecimento social e hierárquico do bando.
De maneira geral, tanto os chifres quanto os cornos são derivados da parte frontal do crânio dos animais, porém não são a mesma coisa. Os chifres basicamente, são ramificados, encontrados sobre a cabeça da maioria dos cervíveos e recobertos por uma camada fina de pele vascularizada chamada de veludo. Já os cornos, são protuberâncias revestidas de queratina e não são ramificados. São estruturas únicas que se alongam nas laterais do crânio de touros, antílopes, veados e outros animais conhecidos como ungulados artiodáctilos, que são os mamíferos com cascos que se dividem em duas partes.
Mas quando os chifres saíram da cabeça dos animais e começaram a figurar mitos de força e poder? Provavelmente essa resposta venha através da observação do comportamento dos animais na natureza, da vivência e da imersão na força desses animais.
Em registros em cavernas, os homens já acompanhavam e interagiam de forma muito intensa com grandes animais corníferos e chifrudos. Em investidas de caça, as pinturas rupestres indicam a interação mais integrativa na qual homens vestiam máscaras, peles e chifres para se misturar aos bandos de animais. Algumas dessas imagens, sugerem inclusive, as primeiras manifestações xamânicas da história. Tais iconografias rupestres estão na Gruta dos Três Irmãos, na cordilheira dos Pirineus, que separa a França da Península Ibérica.
Essas figuras representam, o que supostamente, seriam homens vestindo trajes para se camuflar, dançar ou ritualizar a força dos animais. Em qualquer uma das possibilidades, os homens “vestiam os animais”, ou seja, não só vestiam-se fisicamente, como também traziam para si os comportamentos mimetizados, seus instintos e a força espiritual dos mesmos.
O ato de trazer os animais para o corpo, seja como vestimenta ou uma incorporação xamânica, são muito antigas. Por esse motivo, não é tão distante a possibilidade de que deuses chifrudos tenham se manifestado há milênios, como os primeiros representantes do intermédio entre os seres humanos e as primeiras manifestações de proto-divindades.
Figuras encontradas na Gruta dos Três Irmãos
O DEUS CELTA
Ao falarmos de celta, é importante dizer que não eram um povo unificado, como muitos pensam. Na verdade, se caracterizam como um coletivo composto por diversas tribos diferentes, com características peculiares de cada grupo, mas que compartilhavam alguns aspectos da sua língua, religiosidade e cultura, muito mais do que qualquer correlação territorial ou sanguínea.
Os deuses dos celtas, como os de muitos povos da antiguidade, eram reflexos das localidades das quais eles estavam inseridos. Haviam os deuses da guerra, da colheita, das águas, da vida, do fogo, da morte, do inverno, etc. Por esse motivo, não é raro encontrarmos características semelhantes em deuses diferentes, pois ambos eram originados de observações do mesmo fenômeno natural. Com o passar dos tempos, muitos deuses semelhantes se fundiram, sobrepuseram mitos e tornaram-se um deus único.
Diferente do que muitos dizem, Cernunnos não é um dos grandes deuses dos celtas, mas sim, um deus galo-romano que ganhou mais visibilidade após ser adotado como o deus das bruxas na atualidade. Porém, existem manifestações pontuais desse deus em muitos locais por toda Europa. D’ESTE traz em seu livro Horns of Power que “Cernunnos foi mencionado em uma inscrição que foi descoberta em Polenza, no norte da Itália, e o que parece ser a representação de um Deus Chifrudo se encaixa em uma descrição que foi encontrada perto de Val Camonica. Variações de seu nome foram encontradas em Verespatak, Romênia, onde ele é conhecido como ‘Cernunus’; e como ‘Deo Cernunico’ em Seinsel-Rëlent na Alemanha. Uma inscrição grega encontrada perto de Montagnac, na França, é dedicada a ‘Karnonos’. É claro que as variações na forma como o nome é escrito são inevitáveis e comuns em áreas onde os romanos registravam os nomes das divindades locais”.
Historicamente, Cernunnos ainda é uma incógnita mitológica, pois grande parte do que se sabe a respeito desse deus são deduções baseadas nos locais, períodos e símbolos que são relacionados a ele. Uma de suas aparições mais significativas é no Caldeirão de Gundestrup, uma tigela de prata que foi encontrada desmontada na Dinamarca, e que possui uma imagem que foi relacionada a Cernunnos. Nessa peça, o deus aparece sentado, com galhadas de um cervo idênticas a um dos animais que está ao seu lado, segurando uma serpente e um torque. Essa representação é uma das grandes contribuições que relacionam Cernunnos a um deus dos animais, conhecido como “O Senhor de todas as coisas selvagens”. Tal imagem é tida também como uma evolução histórica, que passou por uma adaptação cultural, do que seria o deus Pashupati, que possui uma iconografia bastante semelhante com a do Cernunnos do caldeirão de Gundestrup.
O Caldeirão de Gundestrup – Hoje expos to no museu de Copenhague, na Dinamarca.
Figura do Deus Cernunnos – Caldeirão de Gundestrup
Pashupati – Deidade hindu
Cernunnos é um deus galhado celta gaulês, que também tem uma de suas representações no Pilar dos Barqueiros, na antiga cidade de Lutetia, atual Paris. A imagem está presente em uma grande coluna romana levantada em homenagem ao deus Júpiter e que possui o busto de Cernunnos em destaque, com cornos curvados, ornado por dois torques, e o nome “Ernunnos”, sem a letra C ou K, que poderia completar o seu nome, mas que foi perdida pela erosão. O local onde a coluna está, sendo de chegadas e partidas para viagens, dá um indicativo de mais um significado desse deus, um deus da prosperidade, dos negócios e claro, das viagens. Mas aqui, quando digo “viagens”, não me refiro somente a viagens marítimas, mas também as viagens entre mundos. Mesmo sendo um deus muito antigo, o pilar dos barqueiros só foi encontrado em 1710 EC, o que para muitas pessoas, traz Cernunnos para um cenário muito mais moderno do que milenar.
No livro O Deus das Feiticeiras, Margaret Murray afirma que “foi só quando Roma começou a sua carreira de conquistas é que foram feitos registros escritos dos deuses da Europa Ocidental, e esses registros provam que uma divindade de chifres, a quem os romanos chamavam Cernunnos, era um dos maiores deuses, talvez até a divindade suprema da Galia. O nome dado a ele pelos romanos significa simplesmente ‘Aquele que tem chifres’. No norte da Gália, sua importância é mostrada no altar encontrado embaixo da catedral de Notre Dame de Paris”. A autora também afirma que o registro remete a um tempo muito avançado do período cristão. No entanto, o fato do registro estar relacionado a períodos já avançados do cristianismo, é importante reforçar que a presença dessa imagem referida a um deus antigo gaulês resistiu ao tempo, ao domínio romano e provavelmente devido a sua importância, foi registrada em escrita. Ressalto aqui, que muitos povos celtas, apesar de possuirem uma escrita, o ogham, realizou poucos registros, tendo as suas tradições e religiosidades transmitidas primordialmente de forma oral.
Representação de Cernunnos, no Pilar dos Barqueiros, França.
Representante da vida selvagem
Cernunnos, como um deus selvagem, é representante da vida e da morte, protetor da caça e do caçador. Sendo assim, é ele quem provê o alimento e quem se encarrega de levar os mortos para o submundo. Por esse motivo, talvez esteja no pilar dos barqueiros, pois o mar é a representação do mundo dos mortos para os celtas.
Também é uma das características mais expressivas desse deus selvagem ser o guardião dos bosques, aquele que zela pelos animais, sejam eles os predadores ou as presas, é o senhor da caça. Cernunnos é o regente da vida e da morte, aquele que caminha entre a luz e a sombra, não pendendo para um lado, nem para o outro. É justo e equilibrado, como deve ser a lei da natureza.
O deus galhado é aquele que fertiliza o solo para que haja uma plantação saudável, garantindo alimentação para as famílias e um bom comércio, cheio de prosperidade. Inclusive, em algumas representações de Cernunnos, é possível observá-lo em posse de uma bolsa de objetos que poderiam ser interpretados como moedas ou grãos, mas que em ambas as formas, representam riqueza e fartura.
Por ser um deus que possivelmente absorveu a mitologia de outros deuses galhados e corníferos de menor expressão, existem representações que podem se diferenciar em alguns detalhes e características que eventualmente se destacam mais em alguns lugares do que em outros.
A COROA DO REI
Cernunnos carrega sobre si uma galhada muito protuberante, que conecta os céus e a terra com seus cascos. Com fortes e grandes chifres, é um deus que carrega a força masculina como expressão maior, estando sobre sua cabeça a coroa de um soberano.
Foi baseado nos chifres dos animais galhados, que as coroas começaram a ser colocaras sobre a cabeça dos reis. Segundo o Dicionário dos Símbolos, a coroa, assim como os chifres dos animais “remete à ideia de elevação e iluminação. Tanto o chifre como a coroa estão elevados acima da cabeça, e são distintivos de poder e luz”.
OS DEUSES GALHADOS E OS CHIFRES DO DIABO
Por muito tempo deuses galhados foram celebrados em templos pagãos. Ilustravam altares e oratórios sendo representados por animais vivos, estátuas de animais e crânios chifrudos. Com o avanço da igreja católica, os templos começaram a ser ora destruídos e ora invadidos para que missas fossem realizadas naqueles locais.
O objetivo dessas invasões teria sido o fato de que, os pagãos, considerando o local sagrado, continuariam frequentando esses lugares para cultuar os deuses antigos, mas estando ali, seriam expostos às pregações dos sacerdotes do Deus único do cristianismo. Dito isso, é fácil compreender o movimento que aconteceu após as invasões. Se somente o Deus cristão era pregado como único e verdadeiro, logicamente os demais deuses que habitavam aqueles locais começaram a ser apontados como antagonistas do Deus cristão, como demônios, diabos, Satanás e tantos outros nomes.
Dessa forma, os deuses chifrudos, que antes eram símbolo de força, proteção, virilidade, fecundação, prosperidade, vida e morte, começaram a figurar o lado destrutivo da nova religião que se impunha através da força. Assim, muitos deuses foram subjugados e muitas das características relacionadas a eles começaram a ser vinculadas aos aspectos negativos do ser humano.
Sabbath das Bruxas, Goya
O CULTO MODERNO A CERNUNNOS
Deuses galhados com certeza não são algo da modernidade, mas acabaram se tornando a figura masculina mais presente nos cultos neo-pagãos. A possibilidade mais aceita sobre Cernunnos ter sido adotado como o Deus das Feiticeiras é provavelmente a sua relação direta com as forças selvagens da natureza. “A Wicca é uma religião baseada na Natureza e tem por Deusas básicas a fértil Mãe-Terra e a cíclica Senhora Lua, cuja sabedoria é intuitiva. O Deus principal é ‘naturalmente’ (no sentido literal) a poderosa força da Natureza, que não podemos deixar de lado sem risco”, é o que afirma Stewart e Janet Farrar em sua obra O Deus das Bruxas.
Duas controvérsias em relação a Cernunnos na prática moderna estão relacionadas a sua filiação e parceria amorosa. Janet e Stewart Farrar descrevem o deus chifrudo wiccano como “uma expressão vívida do filho e amante da Mãe-Terra”. Porém, em nenhum momento da história existe alguma menção mínima sequer, que expresse a existência de qualquer pai ou mãe de Cernunnos, como acontece em muitos outros mitos celtas. Também não existe nenhuma citação sobre uma parceira ou parceiro amoroso ou sexual do deus. Na verdade, Cernunnos, historicamente nunca foi representado ao lado de nenhuma figura como parceira, nem com falo ereto, como acontece com outros deuses galhados. A única relação com uma possível sexualidade de Cernunnos é o fato de ser um deus fertilizador.
Contactando-se com Cernunnos
Mesmo sendo possuidor de tantas características hostis e selvagens, Cernunnos se mostra um deus bastante acessível, receptívo ao contato com as pessoas e muito expressivo em suas manifestações.
O culto a esse deus não é algo trabalhoso e nem requer muitos instrumentos e ritualísticas complexas. Na verdade, eventualmente, somente sentar-se em locais com muitas árvores e se dedicar a uma meditação aberta para a comunicação já é uma forma bastante eficaz de prestar culto e sentir sua presença.
Em suas manifestações, não raro, é possível ouvir seus cascos, sentir seu cheiro, ouvir sua respiração e perceber fortemente a sua chegada. Com toda a carga de um deus selvagem, é importante ressaltar que sua impressão não é delicada, sutil e serena. Apesar de não ser ameaçadora, sua presença é imponente e muito impactante.
Dias sagrados
Não existem datas antigas ou registros históricos que relacionem o culto de Cernunnos a dias específicos ou a algum festival sazonal. No entanto, no período moderno, existem alguns dias relacionados ao seu culto, esses são: 26 de janeiro, 12 de maio e 23 de abril.
O dia 23 de abril se relaciona mais especificamente com a figura do Greenman, que na Wicca pode ser interpretado como uma das faces de Cernunnos, que é tido como um deus trino, em equivalência a deusa. No entanto, vale lembrar que o Greenman é uma figura relativamente moderna e bastante ecumênica, estando presente em muitas culturas e religiões, até mesmo em catedrais católicas. Porém, por ser um símbolo forte do espírito da natureza, no paganismo moderno foi absorvido totalmente e pareado com o Cernunnos em muitos aspectos.
Sobre as datas, gostaria de ressaltar que, apesar dessas serem datações modernas, isso não invalida em absolutamente nada como dias registrados de culto a esse deus. Afinal de contas, em algum momento da história, dias foram determinados por algumas pessoas para o culto de alguns deuses específicos. Na ausência de dias específicos para Cernunnos na antiguidade, acho extremamente válido que alguns grupos e tradições validem tais datas como sendo de celebração desse deus.
Oferendas
Algumas oferendas possíveis para Cernunnos são de pães, carnes cruas, carnes assadas, grãos, frutas, cerveja, vinho e hidromel. Porém, não somente alimentos são bons sacrificios, também é possível ofertar músicas em tambores, chocalhos de casco de bode, sons de cornetas e berrantes, poemas, velas ou até mesmo simples batidas de pés no chão (imitando a batida de cascos de animais).
Prece a Cernunnos
Deus selvagem que caminha pelos bosques
Senhor dos campos e encruzilhadasEu te saúdo com o toque do tambor
Eu te honro com a força de um trovão
…
Deus galhado da sombra e da morte
Que aterra o mal sob os seus cascos
Esteja comigo quando a terra tremer
Me fortaleça no corpo e na alma
…
Que os ventos soprem levando o teu nome
Que as árvores cantem espalhando as suas bençãos
Que os ossos se agitem diante da sua força
Que o coração acelere com a sua chegada
Que não morra um inocente sem a sua proteção
Que não nasça uma semente sem a sua permissão
…
Senhor de cascos e chifres
Que seu nome seja sempre lembrado e honrado
Faça do passado suas raízes, do presente seu tronco e do futuro suas folhas
Cernunnos, que os tambores cantem em sua devoçãoHoje e sempre.
(prece ritual por André Correia)
Fontes:
- https://www.dicionariodesimbolos.com.br/coroa/
https://brasilescola.uol.com.br/biologia/cornos-chifres.htm - MURRAY, Margaret, O Deus das Feiticeiras, Editora Gaia, São Paulo, 2002
- FARRAR, Janet & Stewart, O Deus das Bruxas – O senhor da dança, Editora Alfabeto, São Paulo, 2021
- D’ESTE, Sorita, Horns of Power, Editora Avalonia, Londres, 2008
André Correia. Psicólogo atuante em clínica desde 2007, adepto da bruxaria eclética, construtor de tambores ritualísticos. Coordenador do Círculo de Kildare e autor da obra musical Tambores Sagrados.
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