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André Correia (@andrecorreiatambores)
Quando a bruxaria ainda era uma prática camponesa europeia, não existia uma organização espiritual ou hierárquica. Era algo orgânico e espontâneo, como a maioria dos ensinamentos que acontecem até os dias atuais: os mais velhos e experientes ensinam os mais novos e recém-chegados. Simples, né? Não era necessário um anel de patente, uma capa de cor diferente ou portar insígnias de títulos. Esses são recursos modernos para algo que, antigamente, era compreendido e respeitado por outros motivos.
Naquele momento da história, entre os povos rurais, nada era escrito ou documentado. Todo conhecimento era transmitido oralmente, do mais velho para o mais novo, através da observação e no cotidiano, no treino, tentativa e erro.
Todos os registros que possuímos sobre aqueles povos naquele momento do medievo têm um viés de interpretação contaminado pela ignorância folclórica e, principalmente, pelo olhar extremamente tendencioso da igreja cristã.
O conhecimento mágico, em algum momento, sai das mãos simples e acessa grupos sociais mais favorecidos financeira e culturalmente. Assim, começam a ser registrados e organizados por uma questão de necessidade. Tais sabedorias, que outrora foram transmitidas de forma oral, são codificadas para símbolos, guardadas, transformadas e totalmente ressignificadas pelas ordens iniciáticas que precisavam velar suas práticas e conhecimentos.
Séculos depois, a bruxaria ressurge, inspirada em muitas correntes filosóficas e espirituais, ordens e com elementos de muitas culturas. Nesse momento, começa a ganhar corpo, margens, conteúdos, definições e fios condutores que auxiliariam na sua reconstrução. Por décadas, muitos autores se encarregaram de colocar no papel muitas informações que estavam dispersas pelo ar.
A bruxaria ancestral não deixou nenhum fio condutor conhecido que a trouxesse imaculada até aquele momento. O que a bruxaria moderna fez foi se inspirar naquela plasticidade ancestral, unir isso aos conhecimentos mágicos que haviam evoluído junto com as ordens, redesenhar uma possível espiritualidade com símbolos e significados renovados e dar nova vida ao que se apresentaria como neopaganismo. Inclusive, concordo plenamente com esse termo, pois não é uma réplica do paganismo ancestral, mas sim uma reinvenção bem referenciada. Tanto que chamar a bruxaria moderna de “old religion” ou velha religião não reflete a verdade, pois a bruxaria moderna não é uma continuação da bruxaria antiga, mas sim uma criação moderna que se inspira no passado.
Criada essa nova religião pagã, os conhecimentos que agora poderiam ser escritos começam a ser transmitidos de maneiras diferentes. Mas algo me agrada aqui nesse ponto, dando uma menção honrosa aos ancestrais: parte do conhecimento continua sendo transmitido oralmente.
Não tendo mais a mesma estrutura física das comunidades campestres, os covens modernos replicam essa organização, reunindo pessoas por afinidades para a construção de um sagrado coletivo. Nessa organização, cada um possui uma função, cada um possui um grau de conhecimento e os mais velhos são responsáveis pelos mais novos, criando assim uma cadeia etária ou de experiência que mimetiza a transmissão de conhecimento como era feito no passado, porém, agora amparado pela escrita, pelos registros e toda a modernidade que está acessível. Isso é algo que gosto bastante, pois organiza e cria uma estrutura fundamental para o desenvolvimento de uma comunidade que busca crescimento.
Mas o que acontece quando pessoas jovens e sem experiência se veem levadas a ensinar? Isso é possível?
Acredito que pessoas possam ler livros, compreender seus conteúdos e transmitir sua compreensão. É isso que um professor de história faz, por exemplo. Ele pode ensinar quais foram as estratégias militares usadas em uma batalha, mas possivelmente não seja um bom estrategista militar. Assim também é nesse meio da bruxaria. Você pode reproduzir o que está escrito em um livro, tal qual um audiolivro, mas terá problemas catastróficos quando chegar no momento de colocar a teoria em prática. O resultado disso geralmente é uma vivência vazia e sem muito significado relevante ou um desastre psicoespiritual bastante irresponsável.
Mas o que devemos fazer diante de uma situação como essa? Sinceramente, não sei ao certo. Se, por um lado, minha vontade é de tomar a frente, soando um tanto arrogante e tentar explicar quais são os erros que estão sendo cometidos, por outro lado me coloco no papel ético de respeitar o caminho de cada um, suas crenças e suas vontades. Se a pessoa crê que aquela jornada é correta, ok. Não irei interferir. Mesmo que o deus e a deusa estejam figurados como o Mickey Mouse e a Hello Kitty.
Por conta dessa imensidão de pessoas que acreditam que a bruxaria é território fértil para o comércio, não é raro encontrarmos absurdos sobre a bruxaria. Desde ensinar truques de mágica de salão como sendo uma prática de magia, até mesmo criações espontâneas de todo um ritual amparado no mais profundo achismo e suposição. E o pior é que essas coisas são vendidas absurdamente caras, se passando por verdades absolutas. Se você compra uma invenção sob o título de “uma técnica nova desenvolvida por mim”, ela é coerente e honesta. Mas dizer que uma invenção atual é algo antigo e tradicional é triste de ver.
Lembra do início desse texto? Onde falo que não existiram ensinamentos escritos e os conhecimentos orais eram transmitidos com o objetivo de educar os mais novos? Penso aqui, com o receio de esbarrar novamente no arrogância, que talvez devêssemos em alguns momentos ser os mais velhos orientando os mais jovens. Pelo menos tornando o conhecimento acessível. Não é necessário proselitismo, arrebanhamento ou algo assim. O objetivo não é laçar ovelhas desgarradas no campo, mas sim não permitir que a bruxaria vire o carnaval maluco que muitas pessoas parecem fazer.
André Correia. Psicólogo atuante em clínica desde 2007, adepto da bruxaria eclética, construtor de tambores ritualísticos. Coordenador do Círculo de Kildare e autor da obra musical Tambores Sagrados.
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