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Texto de Kadmus Herschel. Traduzido por Caio Ferreira Peres.
A pré-história dos deuses está repleta de conflitos primordiais, os ecos de guerras antigas. Mas entre quem ou o que essas guerras realmente acontecem?
Continuando o caminho que tracei há alguns dias, gostaria de discutir um dos exemplos clássicos de um conflito entre os deuses e um exemplo menos conhecido do mesmo contexto cultural. Esses exemplos são a guerra entre os titãs e os olimpianos e o roubo do Oráculo de Delfos por Apolo de uma deusa da terra por meio da morte da serpente pítia.
Apolo matando a Serpente Pítia
Enquanto as religiões monoteístas, frequentemente baseadas no exemplo bíblico, baseiam a história da criação na fala e na linguagem, as religiões pagãs são muito mais atraídas por visões inspiradas em experiências corporais. O mito nórdico da criação é, em última análise, um mito de desmembramento e revela um fascínio pela constituição corporal e pelo processo de decomposição em novos materiais. A podridão e a fertilidade associadas ao que parece morto preenchem esses mitos nórdicos nebulosos do início. Os gregos, por outro lado, eram fascinados pelo imperativo corporal do sexo e da reprodução. Enquanto os deuses nórdicos dão vida a um mundo a partir de um enorme cadáver, os deuses gregos parem um cosmo.
Os conflitos gregos tendem sempre à forma de dramas familiares, e seus mitos sobre as mais antigas guerras entre os deuses não são diferentes. Do abismo primordial (Caos) surgiu a Terra, que se auto-reproduzia, e ela, por sua vez, uniu-se ao seu primeiro filho homem, o Céu. A história é bem conhecida: Céu se deitou com muita força sobre a Terra e procurou prolongar o ato sexual indefinidamente. Por meio de um processo de estupro contínuo, ele forçou os filhos dela a permanecerem perpetuamente em seu ventre, enquanto ela estava condenada a uma impregnação sem fim. Por fim, por meio de suas próprias maquinações, seu filho Cronos, ainda não nascido, foi armado com uma foice dourada com a qual ele cortou a ferramenta do estupro prolongado de seu pai. Cronos, por sua vez, subiu ao domínio, enquanto o Céu e a Terra ficaram em segundo plano.
Cronos se casou com sua irmã Reia, mas em seus pensamentos sempre se escondia a lembrança assustadora de sua própria rebelião contra o pai. Aqui testemunhamos os principais aspectos da situação problemática na qual surgiu a história padrão do conflito entre os deuses gregos. Vemos, em primeiro lugar, a primazia do poder feminino de reprodução. O primeiro dos deuses é a deusa Terra, e ela não precisou de nenhuma contraparte masculina para criar a partir de seu próprio ser. Ela é, em última análise, autossuficiente. Foi essa primazia da força criativa feminina que gerou em sua prole/amante masculino o medo de sua outra prole. Sua capacidade de dar à luz representava tanto sua independência dele quanto seu poder, incorporado em seus filhos, de derrubá-lo. A equação aqui é simples e todo o estado de espírito grego está constantemente envolvido nessa problemática. A mulher é a mais poderosa e esse poder assume sua forma mais concreta em sua prole, e assim a condenação do homem grego é declarada: “Por seus filhos você será derrubado”.
Cada geração seguinte de deuses está destinada a propor uma nova solução para esse dilema. A resposta do Céu foi congelar o tempo. Envolvido em uma penetração sexual perpétua, ele procurou interromper a marcha da reprodução e congelar a força temporal feminina das gerações seguintes. Isso, por sua vez, fracassou, e a negação do tempo resultou na perda do próprio sexo (representada pelo desmembramento do órgão reprodutor do Céu). Cronos aprendeu muito bem o erro de seu pai e, por isso, se engaja na estratégia oposta que, por sua vez, define sua natureza como um deus. Cronos, senhor do tempo e da morte, procura acelerar a passagem do tempo para seus filhotes, de modo que eles caiam do ventre de suas mães diretamente no túmulo de sua boca escancarada. O pai do tempo devora seus filhotes quando eles nascem, de modo que, nas palavras de Beckett, Reia “dá à luz em cima de um túmulo”.
Reia, seguindo o modelo de sua mãe, conspira com seu filho Zeus para derrubar seu esposo. Agora Zeus enfrenta o dilema, e que nova estratégia ele pode produzir para superar o fato básico de que o poder masculino é derivado da força fértil feminina? Em todo o sórdido drama familiar, o perigo do poder sexual foi entrelaçado com a natureza do tempo e, portanto, a resposta de Zeus ao drama deve envolver tanto uma resposta ao problema da diferença sexual quanto à natureza do tempo.
Enquanto Cronos aplicava o julgamento do tempo, de que todas as coisas devem morrer, e isso muito rapidamente, aos seus filhos, Zeus opta por aplicá-lo à sua parceira. Em outras palavras, ele devora sua primeira parceira sexual, Metis. Ao fazer isso, ele toma para si o poder feminino da criação e, assim, dá à luz sua própria filha primogênita. Essa criança, que se encaixaria no molde de Cronos e Zeus, não nasce da mãe, mas do pai. Esse nascimento, além disso, quebra todas as regras do tempo, pois a criança nasce adulta.
Devemos fazer uma pausa para nos maravilharmos com as inversões que ocorreram. A mãe se tornou pai e o pai, ao dar à luz, inverteu o próprio tempo para que a criança nascesse adulta. Tudo isso serve de pano de fundo para o fato mais importante, mas que muitas vezes passa despercebido, de que o primeiro filho de Zeus nasce, em vez disso, uma mulher. Atena, o filho destinado a destronar Zeus, tornou-se o espelho de sua tomada do manto do poder feminino. Ela, por sua vez, é uma mulher no lugar destinado (de acordo com a estrutura mítica) a um homem. Portanto, ela é uma deusa da guerra e da estratégia masculinas, nascida adulta com as roupas de um soldado. Em vez de derrubar o pai, ela é o baluarte mais firme e menos questionador do governo dele. Além disso, ao permanecer como pai e rei, Zeus, por sua vez, congelou o envelhecimento de seus filhos, de modo que, enquanto seus irmãos Hades e Poseidon se igualam a ele em maturidade, seus filhos permanecem eternamente infantilizados e condenados a nunca envelhecerem completamente.
Vale a pena observar a continuação dessa história na condenação de Tróia. Aquiles é filho do mortal Peleu e da deusa Tétis. De Tétis foi profetizado, pela mãe de Zeus, Réia, que seu filho seria “maior que seu pai”. Isso, uma aparente bênção para alguns, era a pior das desgraças para os deuses masculinos. Antes dessa profecia, Tétis era muito desejada por Zeus e Poseidon. Mas, depois de ouvir a profecia, Zeus a casou com um mortal como outra estratégia para evitar seu destino de ser derrubado por seus filhos. Apesar disso, com a fúria de Aquiles e seu destino voltado para a destruição de Tróia, os deuses e a deusa entram em conflito em campos de batalha que refletem a guerra que poderia ter sido. Se Aquiles tivesse nascido de Zeus, poderíamos imaginar o cerco ao Olimpo e não apenas a Tróia.
Outra forma que o conflito que discutimos assume no contexto da Grécia Antiga está na história mítica do centro religioso mais importante da Grécia Antiga, o Oráculo de Delfos. O Oráculo de Delfos era sagrado para o deus Apolo, mas nem sempre foi assim. A lenda de Delfos dizia que o oráculo era originalmente sagrado para a deusa da terra e era ocupado por uma terrível serpente ou dragão sagrado para ela. Para que o santuário se tornasse seu, Apolo teve que matar a Serpente Pítia. Ouça um fragmento da história contada no Hino Homérico a Apolo:
“Mas perto dali havia uma fonte de água doce, e ali
com seu forte arco, o senhor, filho de Zeus, matou a
grande dragonesa inchada, um monstro feroz que costumava fazer grandes
males aos homens na Terra, aos próprios homens e às suas ovelhas magras; pois ela era uma praga muito sangrenta…
Quem quer que encontrasse a dragonesa, o dia
de desgraça o varreria, até que o senhor Apolo, que trata da
morte de longe, disparou uma forte flecha contra ela. Então ela, dilacerada por
dores amargas, ficou deitada, respirando fundo e rolando
e rolava por aquele lugar. Um barulho terrível e indescritível se avolumou enquanto ela
se contorcia continuamente para um lado e para o outro em meio à floresta, e assim ela
deixou sua vida, exalando-a em sangue”.
Aqui testemunhamos um eco da guerra primordial entre a força originária da Deusa e as tentativas masculinas de usurpar esse poder. No entanto, como sempre, a força não pode ser totalmente superada. Zeus teve que se tornar a mulher, e seu filho, a filha, para que o padrão fosse invertido. O templo de Apolo, por sua vez, manteve na antiguidade a figura de sua natureza antiga. O caráter único do templo de Apolo e seu poder de profetizar o futuro dependiam do fato de ele abrigar um corpo de sacerdotes e sacerdotisas. As sacerdotisas eram dotadas do dom profético, que aparentemente nem mesmo Apolo podia roubar, mas era um dom perdido na obscuridade e amaldiçoado a parecer sem sentido por si só. Como as verdades primordiais que esses mitos prefiguram, as vozes das sacerdotisas não podiam transmitir a verdade diretamente. Elas falavam em linguagem sem sentido, sem significado para todas as pessoas normais. Se as sacerdotisas mantinham uma conexão com a verdade básica e a força da terra, toda poderosa, mas sem sentido, os sacerdotes representavam a clareza solar e a compreensão do próprio Apolo. Aos sacerdotes cabia a tarefa de entender e interpretar a linguagem profética e misteriosa das sacerdotisas.
Os conflitos entre os deuses podem ser lidos em vários registros. Há o registro metafísico, no qual vemos o conflito entre a força da fertilidade que gera o crescimento, a mudança e o tempo contra o impulso de negar o tempo ou virá-lo contra si mesmo, submetendo a força da vida criativa a uma força devoradora da morte. Depois, há o registro histórico e cultural, no qual vemos o conflito entre diferentes épocas em que o mundo e a sociedade eram compreendidos de acordo com linhas diferentes ou o conflito entre culturas muito diferentes que incorporavam valores e estruturas sociais diferentes. Até aqui, temos muito pouco para continuar. Será que esses mitos incorporam um conflito entre alguma cultura pré-micênica na qual o poder de decisão era reservado às mulheres? Uma cultura que acabou sendo derrubada pela guerra, como a sociedade micênica, que deu origem ao que se tornaria os mitos gregos? Ou, (talvez e), será que vemos aqui um conflito entre aeons históricos, como os mapeados por Crowley em seu Aeon de Ísis, superados pelo Aeon de Osíris? Talvez aqui vejamos que o Aeon de Ísis, concentrado na força fértil básica da mulher e negando as mudanças cíclicas que se tornariam nossa imagem básica do tempo, entra em conflito com o Deus moribundo destinado, como o sol sempre nascente e as estações mutáveis, a nascer sempre de novo.
Link para o original: https://starandsystem.blogspot.com/2015/01/the-wars-of-gods-two-aeons-and-sexes.html?m=0
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