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excerto de O Ramo de Ouro
Sir James George Frazer. Trad. Waltensir Dutra.
A alma externa nos contos folclóricos
Vimos, em outra parte deste trabalho, que, na visão dos primitivos, a alma podia ausentar-se temporariamente do corpo sem provocar a morte. Essas ausências temporárias da alma, ao que se acredita, em geral envolvem um risco considerável, já que a alma que vagueia pode sofrer sérios contratempos nas mãos de inimigos É assim por diante. Há, porém, outro aspecto dessa capacidade que tem a alma de desprender-se do corpo. Se a segurança da alma puder ser garantida durante a sua ausência, não há razão pela qual ela não deva ausentar-se por tempo indefinido. Na realidade, o homem pode, por uma questão de segurança pessoal, desejar que sua alma não volte nunca ao seu corpo. Enquanto aquilo que ele chama de sua vida ou sua alma continuar incólume, o homem passa bem; se ela for ferida, ele sofre; se for destruída, ele morre. Em outras palavras, quando o homem está doente ou morre, esse fato é explicado dizendo-se que o objeto material a que chama de sua vida ou de sua alma, esteja no seu corpo ou fora dele, sofreu um dano ou foi destruído. Mas pode haver circunstâncias nas quais, se a vida ou a alma permanecerem no homem, correm o risco de sofrer um dano maior do que se estivessem guardadas em algum lugar seguro e secreto. Assim sendo, nessas circunstâncias o homem primitivo tira a alma do seu corpo e a deposita, por motivos de segurança, em algum lugar recôndito, com a intenção de reconduzi-la ao corpo quando o perigo tiver desaparecido; ou, então, se ele puder descobrir um lugar de absoluta segurança, ficará contente de ali deixar sua alma permanentemente guardada. A vantagem disso está em que, enquanto a alma continuar segura no lugar onde foi depositada, o próprio homem é imortal: nada pode matar-lhe o corpo, já que a vida não está nele.
Evidências dessa crença primitiva nos são proporcionadas por um certo tipo de contos folclóricos do qual a história nórdica do “gigante que não tinha coração no seu corpo” talvez seja o exemplo mais conhecido. Histórias desse tipo são muito difundidas em todo o mundo, e, pelo seu número e pela variedade de incidentes e detalhes que envolvem a idéia principal, podemos deduzir que o conceito de uma alma externa exerce poderosa atração sobre as mentes dos homens numa fase remota da história. O folclore é um reflexo fiel do mundo tal como ele é visto pelo espírito primitivo, e podemos ter certeza de que qualquer idéia que nele ocorra habitualmente, por mais absurda que possa parecer, deve ter sido, no passado, uma maneira comum de pensar. Essa certeza, no que se relaciona com o suposto poder de separar a alma do corpo por um período de tempo mais longo ou mais curto, é amplamente corroborada por uma comparação dos contos folclóricos em questão com as convicções e práticas reais dos selvagens.
A história da alma externa é contada, de várias formas, por todos os povos arianos, do Industão às Hébridas. Uma das suas formas mais comuns é a seguinte: um feiticeiro, um gigante ou outro qualquer ser fantástico é invulnerável e imortal porque conserva sua alma escondida bem longe, num lugar secreto; mas uma bela princesa, que ele mantém enfeitiçada em seu castelo encantado, descobre seu segredo e o revela ao herói, que procura a alma, coração, vida ou morte do feiticeiro (como pode ser chamada nas diferentes versões) e, destruindo-a, destrói ao mesmo tempo o seu dono. Assim, uma lenda hindu nos conta que um mago chamado Punchkin mantinha cativa uma rainha havia já doze anos e queria desposá-la, mas ela não o suportava. Finalmente, o filho da rainha vem salvá-la, e os dois tramam a morte de Punchkin. Dirigindo-se docemente ao mago e fingindo que havia finalmente resolvido casar-se com ele, a rainha pergunta-lhe: “Dize-me, és realmente imortal? A morte não poderia atingir-te nunca? E serás um tão grande mago que nunca sentirás o sofrimento humano?” Ao que ele responde: “É certo que não sou como os outros. Longe, muito longe, a centenas de milhares de milhas daqui, há uma região desolada coberta de densa selva. No meio dessa selva cresce um círculo de palmeiras, e, no centro dele, estão seis potes de barro cheios de água, um sobre o outro. Debaixo do sexto pote há uma pequena gaiola, com um pequeno papagaio verde; da vida do papagaio depende a minha vida; se o papagaio for morto, eu morrerei”. E acrescenta: “Mas é impossível que o papagaio sofra qualquer dano, não só porque o lugar é inacessível como também porque, por minha ordem, milhares de gênios cercam as palmeiras e matam qualquer pessoa que delas se aproxima”. Mas o filho da rainha supera todas as dificuldades e apodera-se do papagaio, levando-o de volta até a porta do palácio do mago, onde fica brincando com ele. Vendo aquilo, Punchkin tenta convencer o rapaz a entregar-lhe o papagaio. “Dá-me o meu papagaio!”, grita ele. O rapaz então arranca uma das asas da ave e, ao fazê-lo, o braço direito do mago cai no chão. Punchkin estende então o braço esquerdo, gritando: “Dá-me o meu papagaio!” O príncipe arranca a segunda asa da ave, e o braço esquerdo do mago cai igualmente. “Dá-me o meu papagaio!”, grita Punchkin, e tomba de joelhos. O príncipe arranca a perna direita do papagaio, e a perna direita do mago cai; arranca a perna esquerda do papagaio, e a perna esquerda do mago também cai. Nada resta de Punchkin, exceto o corpo e a cabeça, mas ele ainda revira os olhos e grita: “Dá-me o meu papagaio!” “Pois fica então com o teu papa- gaio!”, exclama o rapaz, torcendo o pescoço da ave e atirando-a sobre o mago; naquele momento, a cabeça de Punchkin se retorce de uma maneira horrível, e ele morre com um grunhido.
Pode-se mostrar que a idéia da alma externa ocorre comumente nas histórias populares de povos que não pertencem à raça ariana. Ela está presente, por exemplo, na antiga lenda egípcia dos “dois irmãos”, escrita no reinado de Ramsés II, cerca de 1 300 a.C. É, portanto, mais antiga do que Homero e muito mais velha do que a Bíblia. Essa história, em suas linhas mestras que nos interessam aqui, é a seguinte. Havia dois irmãos; o nome do mais velho era Anpu e o do mais novo, Bata. Anpu tinha uma casa e uma mulher, e seu irmão mais novo morava com ele, como seu criado. Era Bata quem fazia as roupas, e todas as manhãs, quando clareava, levava as vacas a pastar. Enquanto caminhava atrás delas, as vacas lhe diziam: “O capim está bom neste ou naquele lugar”. E ele ouvia o que lhe diziam e as levava para os bons pastos por elas desejados. Por isso, as vacas engordaram e se mul- tiplicaram. Certo dia, quando os dois irmãos trabalhavam no campo, o mais velho disse: “Corre, vai buscar sementes na aldeia”. O mais novo correu e disse à mulher do irmão mais velho: “Dá-me sementes para que eu possa voltar ao campo, pois meu irmão me mandou buscá-las dizendo para não demorar”. Ela res- pondeu: “Vai ao celeiro e toma o que quiseres”. Bata foi e encheu todo um jarro de trigo e de cevada, e voltou, carregando-o nos ombros. Quando a mulher o viu, seu coração bateu por ele e ela, agarrando-o, disse-lhe: “Vem, descansemos juntos uma hora”. Mas ele respondeu: “És para mim como minha mãe, e meu irmão é para mim como um pai”. Assim, sem lhe dar ouvidos, colocou o jarro às costas e voltou para o campo. A noite, quando o irmão mais velho retornava do campo, sua mulher teve medo do que havia dito. Assim, cobriu-se de fuligem e disfarçou-se como se tivesse sido espancada. E quando Anpu chegou, disse-lhe: “Quando teu irmão mais novo veio buscar as sementes, disse-me para deitarmos uma hora juntos, mas eu não quis, e ele me bateu”. O irmão mais velho ficou furioso como uma pantera do sul, afiou sua faca e postou-se atrás da porta do curral. E quando o sol se pôs e o irmão mais novo chegou carregado de todas as ervas do campo, como lhe cabia fazer todos os dias, a vaca que andava na frente do rebanho lhe disse: “Cuidado, teu irmão mais velho está com uma faca para te matar. Foge dele”. Ao ouvir isso, ele olhou por sob a porta do curral e viu os pés do irmão mais velho, uma faca em sua mão. Fugiu, e o irmão o perseguiu. Mas Bata gritou por socorro ao Sol, e o Sol o ouviu, e fez com que uma grande água surgisse entre ele e o irmão mais velho, e era uma água cheia de crocodilos. Os dois irmãos ficaram um de cada lado da água, e o mais novo contou ao mais velho tudo o que havia acontecido. Anpu arrependeu-se do que fizera e elevou sua voz e chorou. Mas não podia passar para o outro lado por causa dos crocodilos. O irmão mais novo então lhe disse: “Volta para casa e cuida tu do gado, pois não viverei mais no lugar onde estás. Vou para o vale da Acácia. Mas eis o que deves fazer por mim: Virás procurar-me e cuidarás de mim se algo de mau me ocorrer, pois encantarei meu coração e o colocarei no alto da flor da acácia; e, se cortarem a acácia, meu coração cairá ao chão, tu irás buscá-lo e, quando o tiveres encontrado, o colocarás numa vasilha de água fresca. Então voltarei a viver. Este é o sinal de que um mal me terá ocorrido: a caneca de cerveja em tua mão ferverá”. E ele se foi para o vale da Acácia. O irmão desolado cobriu a cabeça de pó e voltou para casa, onde matou a mulher lançando os pedaços aos cães.
Por muitos dias, depois disso, o irmão mais novo viveu sozinho no vale da Acácia. De dia, caçava os animais do campo, mas de noite deitava-se sob a acácia, no alto de cuja flor estava o seu coração. E, muitos dias depois disso, construiu para si uma casa no vale da Acácia. Os deuses, porém, tiveram pena dele, e o sol disse a Khnumu: “Dá uma mulher a Bata, para que ele não viva só”. Assim, Khnumu deu-lhe uma mulher para viver com ele, que era perfeita de corpo como nenhuma outra na terra, pois todos os deuses estavam nela. E a mulher viveu com ele. Mas, um dia, um cacho de seus cabelos caiu no rio e desceu flutuando até a terra do Egito, até a casa das lavadeiras do faraó. O aroma dos cabelos impregnou as roupas do faraó, e as lavadeiras foram responsabilizadas, pois se disse: “Um odor de perfume nas roupas do faraó!” O coração do encarregado das roupas do faraó entristecia-se com as queixas que eram feitas a cada dia, e ele foi ao rio, onde viu o cacho de cabelos flutuando na água. Mandou alguém apanhá-lo, e, como seu perfume fosse suave, levou-o ao faraó. Este mandou chamar seus magos, que disseram: “Este cacho de cabelo pertence a uma filha do Sol, que tem em si a essência de todos os deuses. Que sejam enviados mensageiros a todas as terras estranhas para procurá-la!” Dessa forma, a mulher foi levada do vale da Acácia com carros e arqueiros e muita gente, e toda a terra do Egito se regozijou com sua vinda, e o faraó a amou. Mas, quando lhe perguntaram pelo seu marido, ela disse ao faraó: “Que cortem a acácia, e a destruam!” Foram mandados homens com instrumentos para cortar a acácia. Chegaram até a árvore e cortaram a flor sobre a qual estava o coração de Bata; e ele caiu morto naquela triste hora. Mas, no dia seguinte, quando clareou e o irmão mais velho entrou em casa e se sentou e lhe deram uma caneca de cerveja, esta ferveu em suas mãos; deram-lhe um jarro de vinho e este turvou-se. Anpu tomou então seu cajado, calçou suas sandálias e dirigiu-se ao vale da Acácia, onde encontrou o irmão mais novo morto em sua casa. Procurou o coração de Bata sob a acácia. Durou três anos a procura, mas, no quarto ano, ele finalmente o encontrou no bago da acácia. Colocou-o então numa vasilha de água fresca. E quando chegou a noite, e o coração já havia absorvido muita água, Bata moveu seus membros e reviveu. Bebeu então a água da vasilha onde estava seu coração, e este voltou para o seu lugar, e Bata viveu como antes.
Um poema tártaro descreve como o herói Kartaga lutou com a Mulher-Cisne. Muito tempo durou a luta. As luas cresceram e minguaram e eles continuavam lutando; os anos passaram, e a luta prosseguia. Mas o cavalo malhado e o cavalo preto sabiam que a alma da Mulher-Cisne não estava nela. Sob a terra negra fluem nove mares; quando estes se encontram e formam um só, o mar chega à superfície da terra. Na embocadura dos nove mares ergue-se uma rocha de cobre; ela se eleva até a superfície da terra, ela se eleva entre o céu e a terra, essa rocha de cobre. Ao pé dela há uma arca negra, na arca negra há um cofre de ouro e, no cofre de ouro, está a alma da Mulher- Cisne. Sete pássaros pequenos são a alma da Mulher-Cisne; se forem mortos, ela morrerá imediatamente. Assim, os cavalos correram até o pé da rocha de cobre, abriram a arca negra, retiraram o cofre de ouro. O cavalo malhado transformou-se então num homem calvo, abriu o cofre de ouro, cortou as cabeças dos sete pássaros e a Mulher-Cisne morreu.
A alma externa nos costumes populares
A idéia de que a alma pode ser depositada por um período mais longo ou mais curto de tempo em algum lugar seguro fora do corpo encontra-se nos contos populares de muitas raças. Resta demonstrar que ela não é um simples ornamento destinado a embelezar um conto, mas sim um artigo real da fé primitiva, que deu origem a uma série de costumes que lhe correspondem.
Certo dia, James Macdonald estava sentado na casa de um chefe hlubi, esperando pelo grande homem, que estava ocupado com a ornamentação de sua pessoa. Um nativo apontou para um par de magníficos chifres e, dirigindo-se a ele, disse: “Ntame tem sua alma nesses chifres”. Os chifres haviam pertencido a um animal que havia sido sacrificado e eram considerados sagrados. Um mago os havia prendido ao teto para que protegessem a casa e seus moradores contra os trovões. “A idéia”, acrescenta o Sr. Macdonald, “não é estranha ao pensamento sul-africano. No sul da África, a alma de um homem pode morar no teto de sua casa, numa árvore, numa fonte de água ou num abismo da montanha”.
Nos contos folclóricos, a vida de uma pessoa está, por vezes, tão ligada à vida de uma planta que, se esta murchar, a morte da pessoa ocorrerá imediatamente. Da mesma forma, entre os nativos do rio Pennefather em Queensland, quando um visitante se torna muito agradável e se despede, uma efígie sua, de cerca de um metro ou um metro e vinte, é cortada em alguma árvore de madeira bem macia, como a Canarium australasicum, de modo a ficar voltada para a direção tomada pelo estrangeiro que se tornou tão popular. Depois disso, pelo estado da árvore, os nativos deduzem o correspondente estado de saúde de seu amigo ausente, cuja doença ou morte são, na crença dos nativos, pressagiadas pela queda das folhas ou da árvore. Em Uganda, quando uma nova aldeia real, com suas numerosas casas, era construída para um novo rei, árvores eram plantadas na entrada principal pelos sacerdotes de cada uma das principais divindades, e oferendas eram colocadas, sob cada árvore, para o deus a ela correspondente. A partir de então, as árvores eram cuidadosamente tratadas e vigiadas, pois se acreditava que, com seu crescimento e florescimento, da mesma forma cresceriam e floresceriam a vida e o poder do rei.
Certo dia em que a nuvem que pairou sobre os últimos anos de vida de Sir Walter Scott dissipou- se um pouco, e ele soube que seu livro Woodstock havia vendido mais de oito mil libras, escreveu em seu diário: “Tenho uma fantasia curiosa: plantarei duas ou três bolotas de carvalho e julgarei pelo êxito de seu crescimento se terei êxito em meus planos ou não”. Na velha estrada de Hannover a Osnabrück, na aldeia de Oster-Kappeln, havia um velho carvalho que deu seus últimos brotos no ano de 1849. Era tão antigo esse carvalho que se acreditava que fosse contemporâneo dos guelfos. No ano de 1866, tão fatal para a casa de Hannover, numa calma tarde de verão, sem qualquer motivo visível, a velha árvore caiu de repente com um estrondo e ficou atravessada na estrada. Os camponeses consideraram sua queda como um mau presságio para a família reinante, e, quando o Rei Jorge V recebeu a notícia, deu ordens para que o gigantesco tronco fosse levantado novamente, o que foi feito com grande trabalho e muitas despesas; o tronco passou a ser mantido na posição por correntes de ferro amarradas às árvores vizinhas. Mas os esforços do rei para melhorar a sorte decadente de sua casa foram inúteis; poucos meses depois da queda do carvalho, Hannover passava a integrar a monarquia prussiana.
Mas, na prática, como nos contos folclóricos, não é apenas a objetos inanimados ou plantas que se acredita que ocasionalmente uma pessoa se possa unir por esse tipo de laços de simpatia física. Esses mesmos laços, ao que se supõe, podem existir entre um homem e um animal de tal modo que o bem-estar de um dependa do bem-estar do outro e que, quando o animal morre, o homem também morre. A analogia entre o costume e os contos é ainda mais próxima porque, tanto nos contos como para o costume, o poder de afastar dessa maneira a alma do corpo e guardá-la num animal é, com freqüência, privilégio especial dos magos e bruxas. Assim, os iacutos da Sibéria acreditam que todo xamã ou mago guarda sua alma, ou uma de suas almas, encarnada num animal, que é cuidadosamente escondido do mundo. “Ninguém pode encontrar minha alma externa”, disse um famoso mago, “ela está escondida muito distante, nas montanhas de Edjigansk.” Apenas uma vez por ano, quando as últimas neves se derretem e a terra se torna negra, essas almas externas dos magos aparecem, na forma de animais, nos lugares habitados pelos homens. Elas perambulam por toda parte, mas só os magos as vêem. As mais fortes caminham com ousadia e ruído, as fracas se esgueiram rápida e furtivamente. Com freqüência brigam entre si, e o mago cuja alma é vencida adoece ou morre. Os magos mais fracos e mais covardes são aqueles cujas almas estão encarnadas na forma de cães, pois o cão não dá descanso ao seu duplo humano, morde-lhe o coração e destrói-lhe o corpo. Os magos mais poderosos são aqueles cujas almas externas têm a forma de garanhões, gamos, ursos negros, águias ou javalis. Os samoiedas da região de Turukhininsk afirmam que todo xamã tem um espírito familiar na forma de um javali, que ele leva por toda parte numa correia mágica. Com a morte do animal, o próprio xamã morre. Contam-se histórias de batalhas entre magos que enviam seus espíritos à luta antes de se encontrarem pessoalmente.
Na Melanésia, um curandeiro nativo estava atendendo a um doente. Nesse momento, “uma grande águia voou sobre a casa, e Kaplen, meu caçador, ia atirar nela, quando o curandeiro deu um salto, evidentemente alarmado, e disse: ‘Oh! Não dispares! É o meu espírito (niog, literalmente “minha sombra”). Se disparares, eu morro’. Em seguida, disse ao velho doente: ‘Se vires um rato esta noite não o espantes, é o meu espírito (niog); ou uma cobra que virá esta noite, também ela é o meu espírito’ “. Não se sabe se o curandeiro em questão, como o gigante ou o feiticeiro dos contos, mantinha seu espírito permanentemente na ave ou no animal, ou apenas o transferia temporaria- mente para aquelas criaturas com o objetivo de habilitar-se para melhor realizar a cura, enviando, talvez, sua própria alma numa ave ou num animal para buscar e trazer de volta a alma perdida do paciente. De qualquer modo, ele parece ter achado, como o gigante ou o feiticeiro dos contos, que a morte do pássaro ou do animal provocaria também a sua própria morte.
A teoria da alma externa depositada num animal parece ser muito comum no oeste da África, particularmente na Nigéria, nos Camarões e no Gabão. Na segunda metade do século XIX, dois missionários ingleses, estabelecidos em San Salvador, capital do reino do Congo, perguntaram repetidamente aos nativos se haviam visto o estranho e grande bode originário do leste africano que Stanley havia dado a um chefe em Stanley Pool, em 1877. Mas suas indagações foram infrutíferas, pois nenhum nativo admitia ter visto o animal.
Alguns anos depois, os missionários descobriram por que não lhes fora possível obter nenhuma resposta. Ao que constataram, todos acreditavam que os missionários pensavam que o espírito do rei de Salvador estava encerrado naquele bode e desejavam apossar-se do animal para exercer uma influência maligna sobre Sua Majestade. Essa crença, do ponto de vista dos selvagens do Congo, era bastante natural, já que, naquela região, alguns chefes ligam, regularmente, sua sorte à de um animal.
Entre os índios da Guatemala e de Honduras, o nagual ou naual é “o objeto animado ou inanimado, geralmente um animal, que tem uma relação paralela com um determinado homem, de modo que o bem-estar do homem depende da sorte do nagual”. De acordo com um autor antigo, muitos índios da Guatemala “são levados pelo diabo a acreditar que sua vida depende da vida desse ou daquele animal (que consideram o seu espírito familiar), e acham que, quando o animal morrer, eles também têm de morrer; quando o animal é escorraçado, seu coração se acelera; quando ele enfraquece, também os índios enfraquecem; e mais, aconteceu que, por uma ilusão que só pode ser obra do diabo, eles apareceram na forma desse animal (que é comumente, pela sua escolha, um gamo, uma corça, um leão, um tigre, um cão, uma águia) e, sob essa forma, receberam tiros e foram feridos”.
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