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Bruxaria e Paganismo

Adônis, ontem e hoje

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excerto de O Ramo de Ouro
Sir James George Frazer.  Trad. Waltensir Dutra.

Tratamos, até aqui, do mito de Adônis e das lendas que o associavam a Biblos. A análise dessas lendas levou-nos à conclusão de que, entre os povos semitas nos tempos antigos, Adônis, o divino senhor da cidade, era muitas vezes personificado por reis sacerdotes. Ao mesmo tempo, pode-se dizer que a sua morte chorada anualmente reflete um antigo costume de condenar o rei à morte, todos os anos, para revigorar a vida da natureza.

Das lendas passamos agora ao ritual de Adônis, conhecido principalmente a partir dos autores gregos que o testemunharam; e esse ritual se aplica a épocas nas quais a evolução da sensibilidade humana havia amenizado alguns dos aspectos mais brutais do culto.

Nas festas de Adônis, realizadas na Ásia oci- dental e nas terras gregas, a morte do deus era lamentada anualmente, com manifestações amargas, sobretudo pelas mulheres; imagens suas, vestidas de modo a se assemelharem a cadáveres, eram transportadas como num fune- ral e, em seguida, lançadas ao mar ou nas fon- tes. Em certos lugares, seu renascimento era celebrado no dia seguinte. Em Alexandria, imagens de Afrodite e Adônis eram exibidas em dois leitos; ao seu lado eram colocados frutas maduras de todos os tipos, bolos, plantas em vasos e abrigos de folhagens entrelaçadas de anis verde. O casamento dos amantes era cele- brado num dia e, no dia seguinte, mulheres de luto, com os cabelos em desalinho e os seios nus, levavam a imagem de Adônis morto até a praia e a entregavam às ondas. Mas não o pranteavam sem esperanças, pois cantavam dizendo que o desaparecido retornaria.

Na Ática, a festa caía no auge do verão. A frota organizada por Atenas contra Siracusa, e cuja destruição acabou definitivamente com o seu poderio, zarpou no verão, e, por uma coincidência pressaga, os ritos sombrios de Adônis estavam sendo celebrados na mesma ocasião. Ao marcharem para o porto a fim de embarcar, os soldados passavam por ruas cheias de caixões e efígies semelhantes a cadáveres, e o ar estava cheio das lamentações das mulheres pela morte de Adônis. As circunstâncias fizeram pairar uma sombra sobre a partida da mais esplêndida armada que Atenas jamais havia lançado ao mar. Muito tempo depois, quando o Imperador Juliano fez sua primeira entrada em Antioquia, encontrou também a alegre e faustosa capital do Oriente mergulhada num simulacro de dor pela morte anual de Adônis, e, se teve qualquer pressentimento de uma desgraça iminente, as vozes chorosas que lhe chegaram aos ouvidos devem ter parecido um dobrar de finados.

O caráter de Tamuz ou Adônis como um espírito do grão de cereal surge claramente em um relato de suas festas feito por um autor árabe do século I Ao descrever os ritos e sacrifícios observados nas diferentes estações do ano pelos pagãos sírios de Aram, esse autor diz: “Tamuz (julho). Em meados deste mês, ocorre a festa de el- Búgât, isto é, das mulheres carpideiras, que é a festa de Tâ-uz, celebrada em honra ao deus Tâ- uz. As mulheres o carpem porque seu senhor o matou muito cruelmente, moeu-lhe os ossos e os espalhou ao vento. As mulheres [durante a festa] nada comem que tenha passado por um moinho, limitando sua dieta a trigo molhado, ervilhas doces, tâmaras, passas, etc”.

Essa concentração, por assim dizer, da natureza de Adônis nas plantações de cereais é característica do estágio cultural a que haviam chegado os seus adoradores já no período his- tórico. Estes haviam deixado a vida nômade de caçadores e pastores errantes bem para trás: há muito tempo já se haviam fixado na terra e dependiam, para a sua subsistência, principal- mente dos produtos da agricultura. As pequenas frutas rasteiras e as raízes dos terrenos incultos, o capim dos pastos, que eram de importância vital para seus rudes antepassados, pouca significação tinham agora para eles: seus pensamentos e energias voltavam-se cada vez mais para o elemento básico de sua existência, o cereal. Cada vez mais, portanto, a preocupação com os deuses da fertilidade em geral, e com o espírito dos grãos em particular, tendia a se transformar no aspecto central de sua religião. O objetivo que se haviam fixado ao celebrar os ritos era totalmente prático. Não era um vago sentimento poético que os levava a saudar com alegria o renascimento da vegetação e prantear seu declínio. A fome, experimentada ou temida, era a mola principal do culto de Adônis.

Já se disse que as lamentações por Adônis constituíam essencialmente um rito de colheita, destinado a tornar propício o deus dos grãos, que então perecia sob as foices dos ceifadores ou era pisado até a morte pelos cascos dos bois na eira.

Assim interpretada, a morte de Adônis não é a decadência natural da vegetação em geral sob o calor do verão ou o frio do inverno, mas sim a violenta destruição do cereal pelo homem, que o ceifa nos campos, pisoteia na eira e tritura até transformar em pó, no moinho. Que era esse, na realidade, o aspecto principal sob o qual Adônis se apresentava, em épocas mais recentes, aos povos agrícolas do Levante, não se pode negar; mas, se, desde o início, Adônis representou apenas o cereal e nada além do cereal, é algo que pode ser posto em dúvida. Num período anterior, Adônis pode ter sido, para o pastor sobretudo, a relva tenra que desponta depois da chuva, oferecendo pastagem rica para o gado magro e faminto. Num período ainda mais remoto, pode ter personificado o espírito das nozes e das pequenas frutas rasteiras que as florestas do outono oferecem ao caçador selvagem e à sua companheira. E tal como o chefe de família tem de fazer com que lhe seja propício o espírito dos grãos que consome, assim também o pastor tem de apaziguar o espírito do capim e das folhas que seu gado come, e o caçador tem de agradar ao espírito das raízes que arranca e das frutas que colhe nos ramos.

Há razões para se pensar que, em tempos mais antigos, Adônis era por vezes personificado por um homem vivo, que encontrava morte violenta nessa representação do deus. Há, além disso, evidências que mostram que, entre os povos agrícolas do Mediterrâneo oriental, o espírito dos grãos, qualquer que fosse o seu nome, era representado com freqüência todos os anos, por vítimas humanas sacrifica- das no campo que estava sendo colhido. Se assim era, parece provável que a propiciação do espírito dos grãos tendesse a se confundir, até certo ponto, com o culto dos mortos. Isso porque os espíritos dessas vítimas podiam voltar à vida nas espigas que seu sangue havia nutrido e ter uma segunda morte ao ser colhido o cereal.

A melhor prova de que Adônis era uma divindade da vegetação, especialmente dos cereais, talvez nos seja proporcionada pelos jardins de Adônis, como eram chamados. Eram cestos ou vasos cheios de terra, nos quais trigo, cevada, alface, funcho e vários tipos de flores eram semeados e cuidados durante oito dias, sobretudo ou exclusivamente por mulheres. Estimuladas pelo calor do sol, as plantas cresciam rapidamente, mas, não tendo raízes, murchavam com igual rapidez e, ao fim de oito dias, eram levadas junto com as imagens de Adonis morto e lançado ao mar ou em outras águas.

Esses jardins de Adônis são, muito naturalmente, interpretados como representações do deus, ou manifestações de seu poder, que, de acordo com a sua natureza original, tomavam forma vegetal, ao passo que suas imagens, com as quais eram levados e jogados à água, o retratavam sob sua forma humana, posterior. Todas essas cerimônias de Adônis, se estamos certos, eram originalmente realizadas como sortilégios para promover o crescimento ou renascimento da vegetação, e o princípio pelo qual se supunha que  produziriam  tal  efeito  era  o  da  magia homeopática ou imitativa. As pessoas ignorantes acham que imitando o efeito

desejado estão, na realidade, contribuindo para que ele ocorra. Assim, aspergindo água, estão provocando a chuva, acendendo uma fogueira, estão atraindo o sol e assim por diante. Da mesma forma, imitando o crescimento das plantações, esperam conseguir uma boa colheita. O rápido crescimento do trigo e da cevada nos jardins de Adônis pretendia fazer com que os cereais crescessem depressa, e o ato de jogar esses jardins e as imagens de Adônis na água era um sortilégio para assegurar a vinda da chuva fertilizadora. Idêntico, ao que nos parece, é o objetivo do gesto de jogar as efígies da Morte e do Carnaval na água, nas cerimónias correspondentes da Europa moderna. Sem dú- vida, o costume de encharcar de água uma pes- soa vestida de folhas, que certamente personi- fica a vegetação, existe ainda na Europa com o objetivo expresso de provocar chuva. Da mesma forma, o costume de lançar água sobre o último cereal colhido na estação, ou sobre a pessoa que o leva para casa (costume observado na Alemanha e na França e, até recentemente, na Inglaterra e na Escócia), é praticado em certos lugares com a intenção reconhecida de assegurar chuva para as plantações do ano seguinte.

A opinião de que os jardins de Adônis são essencialmente sortilégios para promover o crescimento da vegetação, especialmente das plantações, e que pertencem à mesma classe dos costumes folclóricos relacionados com a primavera e o solsticio do verão, na Europa moderna que já descrevemos, não se baseia apenas na probabilidade intrínseca do caso. Podemos, felizmente, mostrar que os jardins de Adônis (se nos for permitido usar a expressão num sentido geral) ainda são plantados pelos camponeses europeus no solsticio de verão.

Em certas partes da Baviera, é costume semear o linho num vaso nos três últimos dias do Carnaval; com as sementes que brotam melhor faz-se um sortilégio para saber se há de ser a primeira, a segunda ou a terceira semeadura que dará melhor colheita. Na Sardenha, os jardins de Adônis ainda são plantados na festa do Solsticio de Verão, que lá tem o nome de festa de São João. No final de março ou a 1.° de abril, um jovem da aldeia se apresenta a uma moça, pede- lhe para ser a sua comare (comadre ou namorada) e oferece-se para ser seu compare. O convite é considerado como uma honra pela família da moça e aceito com satisfação. No fim de maio, a moça faz um vaso com a casca de um sobreiro, enche-o de terra e nele semeia um punhado de trigo e cevada. Como o vaso é colocado ao sol e regado com freqüência, os grãos brotam com rapidez e, na véspera do solstício (véspera de São João, 23 de junho), já está bem desenvolvido. O vaso é então chamado erme ou nenneri. No dia de São João, o rapaz e a moça, vestidos com suas melhores roupas, acompanhados por uma grande comitiva e precedidos de crianças que correm e brincam, vão em procissão até uma igreja fora da aldeia. Ali quebram o vaso, lançando-o contra a porta do templo. Sentam-se em seguida em círculo na grama e comem ovos e verduras ao som da música de flautas. O vinho é misturado numa taça servida a todos, que dela vão bebendo, passando-a adiante. Em seguida dão-se as mãos e cantam “Namorados de São João” (“Compare e comare di San Giovanni”) várias vezes, enquanto as flautas tocam durante todo o tempo. Quando se cansam de cantar, levantam-se e dançam alegremente em círculo até a noite.

Nesses costumes de verão da Sardenha, é possível que São João tenha substituído Adônis. Vimos que os ritos de Tamuz ou Adônis eram celebrados comumente no verão e, segundo São Jerônimo, sua data era em junho. Além da data e de sua semelhança em relação aos vasos de ervas e cereais, há outra afinidade entre as duas festas, a pagã e a cristã. Em ambas, a água tem um papel destacado. Em sua festa de verão na Babilônia, a imagem de Tamuz, cujo nome significa “verdadeiro filho da água profunda”, era banhada em água pura; em sua festa de verão em Alexandria, a imagem de Adônis, com a de sua divina amante Afrodite, era lançada às ondas; e, nas comemorações de verão na Grécia, os jardins de Adônis eram jogados no mar ou numa nascente. Ora, um aspecto importante da festa do Solstício de Verão ligado ao nome de São João é, ou costumava ser, a tradição de banhar-se no mar, nas nascentes, nos rios ou no sereno, na noite da véspera ou no próprio dia da festa do Solsticio. Assim, por exemplo, em Nápoles há uma igreja dedicada a São João Batista com o nome de São João do Mar (San Giovan a mare); e era hábito antigo homens e mulheres banharem-se no mar na véspera de São João, isto é, na véspera do Solsticio de Verão, acreditando que, com isso, todos os seus pecados eram lavados também. Nos Abruzos, ainda se acredita que a água adquira certas propriedades maravilhosas e benéficas na noite de São João. Por isso, muitas pessoas se banham no mar ou nos rios naquela data, especialmente no alvorecer.

Em Marsala, na Sicília, há uma nascente numa

gruta subterrânea, chamada Grotto della Sibila. Ao seu lado, há uma igreja de São João que se supõe ocupar o lugar onde antes se erguia um templo de Apolo. Na véspera de São João, a 23 de junho, mulheres e moças visitam a gruta e, bebendo da água profética, ficam sabendo, as que são casadas, se seus maridos lhes foram fiéis no ano que passou e as solteiras, se haverão de casar-se no próximo ano. Também os enfermos imaginam que, banhando-se na água, ou dela bebendo, ou ainda mergulhando nela três vezes em nome da Trindade, ficarão curados.

Talvez se possa dizer que esse costume gene- ralizado de banhar-se na água ou no sereno, na véspera ou no dia do Solsticio de Verão, tenha origem puramente cristã, tendo sido adotado como modo adequado de celebrar o dia dedicado ao Batista. Na realidade, porém, o costume é mais antigo do que o cristianismo, pois foi denunciado e proibido como pagão por Santo Agostinho, e até hoje é praticado no verão pelos povos islâmicos do norte da África.

Podemos conjeturar que a Igreja, incapaz de acabar com esse resquício do paganismo, seguiu sua habitual política de acomodação, dando ao rito um nome cristão e aquiescendo, com um suspiro, em sua realização. E, ao procurarem um santo para suplantar o patrono pagão dos banhos, os doutores cristãos dificilmente poderiam ter encontrado um sucessor mais adequado do que São João Batista.

Quanto a isso, uma declaração bem conhecida de São Jerônimo talvez seja significativa. Ele nos diz que Belém, segundo a tradição o lugar de nascimento de Nosso Senhor, ficava à sombra de um bosque daquele senhor sírio ainda mais antigo, Adônis, e que, ali onde o Menino Jesus havia emitido seu primeiro choro, o amante de Vênus era pranteado.

Embora não o diga claramente, São Jerônimo parece ter pensado que o bosque de Adônis havia sido plantado pelos pagãos depois do nascimento do Cristo com o propósito de profanar o lugar sagrado. Nisso talvez estivesse enganado. Se Adônis  foi  realmente,  como  argumentamos,  o espírito dos grãos, dificilmente poderia ser encontrado um nome mais adequado para a sua morada do que Belém, “a casa do pão”, e ele bem pode ter sido adorado ali, em sua “casa do pão”, muitos séculos antes Daquele que disse: “Eu sou o pão da vida”.

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